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6 setembro 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Bairrada vintage

​​​​​​Palácios, bosques e vinhos de sonho.​

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​O Curia Palace Hotel SPA & Golf ergue-se imponente, ladeado pelo jardim ao estilo francês. Ao lado, o muro com ameias em jeito de castelo anuncia a entrada no Hotel e Parque das Termas da Curia. Entre a vegetação exuberante sobressaem o chilrear dos pássaros, o canto das cigarras e o perfume intenso das tílias e das roseiras de Santa Teresinha. O cenário é mágico. Temos a sensação de viajar no tempo, até às primeiras décadas do século XX, época de festas elegantes, concursos de vestidos de chita e passeios em florestas exuberantes.


A farmacêutica Maria Manuel Silva é a directora-técnica da Farmácia Termal

Aqui, é fácil imaginar a atmosfera estimulada pelas termas que, entre a Páscoa e o final do Verão, atraía à Curia a nata da sociedade portuguesa. A pretexto dos tratamentos termais, famílias inteiras ali se alojavam duas, três ou mais semanas. Durante o dia, deambulavam entre as majestosas árvores do parque ou em passeios de barco no maior lago artificial da Península Ibérica. Ao anoitecer, vestiam as melhores roupas para se divertirem no casino, no cineteatro, na sala de chá ou nos glamorosos bailes organizados pelo Curia Palace Hotel. Havia concursos de vestidos de chita, passeios a cavalo, torneios de natação, esgrima e ténis, celebrava-se a festa das vindimas. «Era um ambiente muito elegante e distinto», confirma Maria Manuel Silva, proprietária da Farmácia Termal. A Curia estival que conheceu a partir da década de 70, tempos menos elitistas, não era menos animada.
 
Quase um século depois, a Curia permanece um destino de charme para quem quer umas férias relaxantes, fugindo às opções tradicionais de praia. O hotel continua a receber a visita daqueles que, ainda crianças, correram pelos seus jardins e hoje trazem os filhos, netos e bisnetos, num ritual de perpetuação. Para muitos bairradinos é a escolha natural para os momentos importantes da vida. Foi aqui que a farmacêutica que nos convida se casou. É inequívoca a ligação sentimental ao hotel criado em 1926, expoente máximo da Arte Nova, que mereceu cinco Prémios Valmor.


O Hotel da Curia, inaugurado em 1926, é um expoente da Arte Nova


O hotel conserva intacto o velho PBX, testemunha de grandes conversas de amor e de negócios

Basta transpor as enormes portas de madeira e vidro, encimadas por vitrais coloridos, para perceber porquê. Em 2011, o hotel reabriu depois de uma remodelação que preservou a traça e os objectos de origem. O elevador em ferro forjado, as escadarias atapetadas em vermelho e dourado, o mobiliário, os lustres, os vitrais, o cheiro a cera tradicional que emana do chão de madeira. «Sentimos o respirar de um hotel dos anos 20», resume a actual directora, Elisabete Saraiva. Aqui funcionou o primeiro posto de correios da Curia, o acesso ao moderno spa faz-se passando pela antiga central telefónica do hotel, por todo o lado documentos e fotografias recordam a época áurea do Palace. É como visitar um museu, com o privilégio de nele viver temporariamente.


As curas nas Termas da Curia eram pretexto para férias de luxo e diversão


Desta fonte jorram águas com propriedades medicinais
A magia continua do outro lado da rua, ao longo dos 14 hectares arborizados do parque, nas pontes tecidas de troncos, e nos recantos e túneis construídos em pedra. Convida ao passeio, a pé, de bicicleta ou pedalando as gaivotas no lago. «O parque está feito para as pessoas se evadirem», confidencia a professora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, que guarda do parque boas memórias. No Verão, é lá que decorrem os eventos musicais e culturais. No edifício termal centenário, as águas ricas em sulfato de cálcio e sulfato de magnésio são uma resposta natural para problemas renais, apesar das recentes alternativas farmacológicas, e mantêm a relevância terapêutica no caso das doenças reumáticas e musculoesqueléticas.

A 15 minutos de automóvel, o Luso, com os seus palacetes e casas de época trepando a colina da serra do Bussaco, é uma referência pela excelência da água. Quem por ali vive tem o hábito de abastecer-se no fontanário. «É a água mais leve, pode beber-se uma barrigada. Tem o sabor da água». Sérvio Melo sabe do que fala: durante 30 anos trabalhou nas Termas do Luso. 


Azulejos, frescos e vitrais magníficos. O Palace Hotel do Bussaco é um festival de artes decorativas

Chegados ao Luso, é olhar para cima e percorrer mais meia dúzia de quilómetros. Na serra do Bussaco há uma floresta encantada, de uma riqueza natural, arquitectónica e cultural só equiparada à de Sintra. As semelhanças não são fortuitas. No final do século XIX, Dona Maria Pia quis ali recriar uma «pequena Sintra», explica Sofia Ferreira, dos Serviços Educativos da Fundação Mata do Bussaco. Passou-se de um Bussaco austero, marcado desde o século XVII pela vivência em isolamento dos frades Carmelitas Descalços, para um Bussaco romântico, que acolheu a corte de D. Carlos. O antigo palácio de caça do rei é hoje o Palace Hotel do Bussaco, ricamente decorado com painéis de azulejos do ceramista Jorge Colaço e frescos de João Vaz, o mesmo pintor dos Passos Perdidos da Assembleia da República, que recriam os versos de Camões nos Lusíadas. No interior, destaca-se um imponente vitral central sob a escadaria. A arquitectura em estilo neomanuelino é do italiano Luigi Manini, que também assinou a Quinta da Regaleira, em Sintra, e foi cenógrafo do Teatro Nacional de São Carlos.


Dona Maria Pia queria fazer um palácio real no Bussaco. Acabou por dar num hotel para a corte e burguesia

A intenção de Dona Maria Pia de construir um palácio real no Bussaco, inicialmente pensado para as Portas de Coimbra, foi contrariada pelo ministro Emídio Navarro, que argumentou insuficiência de fundos. A solução foi «a construção de um “hotel do povo”, destinado a albergar a corte e a burguesia», explica Sofia Ferreira. O local escolhido foi a zona do convento, o que implicou a sua destruição. Do convento original restam hoje a igreja, algumas capelas e o claustro. O Palace Hotel foi a última construção feita para os reis de Portugal. A obra decorreu de 1888 a 1907. Em 1910, aqui pernoitou D. Manuel II, quando veio inaugurar o Museu Militar do Bussaco. Poucos dias depois seria implantada a República e o rei obrigado ao exílio.

O hotel pertence, desde 1917, ao grupo Alexandre de Almeida, ele próprio natural da zona do Luso. Foi o primeiro do grupo e ainda hoje pertence à mesma família, já na terceira geração. «O Palace Hotel do Bussaco é um postal da zona Centro de Portugal», defende o director, Leandro Santos. Ali pernoitaram Mário Soares, Cavaco Silva, Ramalho Eanes, José María Aznar e o imperador do Japão, Naruhito. Não raras vezes, o hotel foi cenário cinematográfico e dizem que foi aqui que Agatha Christie terá escrito “Um Crime no Expresso do Oriente”. A romancista, hóspede habitual, deve ter passeado muitas vezes pelos 105 hectares da Mata do Bussaco com Hercule Poirot na imaginação.


Os Carmelitas Descalços levantaram o Convento de Santa Cruz no século XVII

Por esses caminhos, ainda hoje podemos percorrer a Via Sacra, recriada pelos frades Carmelitas Descalços em 1644, à escala da original, em Jerusalém. São 20 passos (seis da prisão e 14 da paixão de Cristo), com esculturas de terracota da autoria de Costa Motta (sobrinho), datadas de 1939, ao longo de um trilho de grande beleza natural. Atraídos pelo isolamento, a natureza e as muitas nascentes de água, fonte de vida, os frades chegaram à serra do Bussaco em 1628 e construíram o Convento de Santa Cruz. Com a extinção das ordens religiosas em Portugal, em 1834, passaram a ocupar a mata na condição de arrendatários, até 1860, data em que morre o último frade.


As Portas de Coimbra eram a única entrada na Mata do Bussaco no tempo dos Carmelitas

Os Carmelitas Descalços ergueram uma cerca para isolar a mata do resto do mundo. A única entrada fazia-se pelas Portas de Coimbra, encimada por duas bulas papais, de Gregório XV e Urbano VIII. A primeira ditou a obrigação dos Carmelitas Descalços de cuidar da natureza e proibia o abate de árvores sem autorização, sob pena de excomunhão. «Foi uma das primeiras leis ambientalistas escritas», nota Sofia Ferreira. A segunda ameaçava com igual castigo as mulheres que se atrevessem a entrar na mata, «para não tentar os monges». As Portas de Coimbra e o convento estão ricamente decorados com pedras brancas e pretas, alusivas a temas ligados à Natureza, uma técnica a que se dá o nome de embrechados. O convento é rico em cortiça, material isolante, pobre e abundante à época. 


Mata do Bussaco inspirou aventuras de Poirot, o célebre detective de Agatha Christie

Entre os trilhos da mata do Bussaco, um dos mais belos é o da floresta primitiva, feita de árvores de troncos retorcidos que lembram uma floresta mágica, sobretudo na zona da Cruz Alta. Outro imperdível é o trilho de fetos do tamanho de árvores, oriundos da Tasmânia, que desembocam na escadaria da Fonte Fria, criada no tempo em que a mata já não era habitada pelos Carmelitas Descalços, mas pela burguesia e a corte que vinha passar temporadas no Palace Hotel do Bussaco.


O Museu Militar do Bussaco guarda a memória da Terceira Invasão Francesa

Logo ali ao lado, o Museu Militar do Bussaco guarda a memória da Terceira Invasão Francesa, quando em 1810 as tropas anglo-lusas infligiram pesadas baixas aos homens do marechal Massena. A batalha, decorrida na serra do Bussaco, «marcou um momento decisivo na Guerra Peninsular», explica o major Lino Graça, do Exército português. A 27 de Setembro de 1910, para assinalar o centenário da batalha, foi inaugurado o Museu Militar do Bussaco, com a presença de D. Manuel. O museu guarda a memória da batalha, com material de ambas as facções: espingardas, pistolas, peças de artilharia, insígnias, fardamento, tambores, bandeiras, maquetes que representam as tropas no terreno. Ao lado, a capela de Santa Maria da Vitória, construída em 1783, funcionou como “hospital de sangue”, onde os frades Carmelitas Descalços deram apoio às duas facções, num gesto humanitário pouco comum à época.


O leitão é o prato mais conhecido da região

Hoje, o leitão à moda da Bairrada é uma instituição nacional, mas a região é pródiga noutros pratos, como a chanfana, os rojões ou o cozido à portuguesa. Numa mesa bairradina não pode faltar o vinho. Bebe-se vinho à mesa sempre. «Não é um luxo, é um alimento», garante Maria Manuel Silva. A região afirmou-se à escala planetária pelo vinho tinto monocasta (Baga), «muito taninoso», e pelo espumante, «um dos melhores do mundo». Nas últimas décadas, apareceram vários produtores «com qualidade excepcional». A Quinta dos Abibes, do farmacêutico Batel Marques, professor da Faculdade de Farmácia de Coimbra, tem coleccionado prémios em concursos internacionais. 


Os espumantes e o vinho tinto da casta Baga têm levado a Bairrada aos quatro cantos do mundo

Há adegas cooperativas e caves na Anadia, Mealhada, Sangalhos e Oliveira do Hospital. A adega Campolargo, uma «casa de lavrador» onde se faz vinho há três gerações, é o chapéu de várias marcas, todas elas ligadas aos locais onde o vinho é produzido. Vale de Azar, Entre II Santos ou Vinha da Costa «não são nomes de fantasia, têm a ver com a nossa terra», diz com pragmatismo Carlos Campolargo, um dos quatro proprietários. A adega produz vinhos brancos, tintos, rosé e espumantes. A proximidade do mar e o solo calcário da Bairrada favorecem os vinhos brancos e os espumantes, e criam condições extraordinárias para produzir vinhos com uma acidez «brilhante», explica o produtor. Nos espumantes, conta, o segredo é maximizar o tempo de estágio em cave, que às vezes chega a 13 anos. «Quanto mais tempo, melhor o vinho fica». 

Todos os anos as vindimas começam em Agosto e estendem-se até meados de Outubro, explica a enóloga Raquel Carvalho. Da varanda que circunda a sala de provas avista-se um mar de verde. São 160 hectares em duas propriedades: São Mateus e Vale de Azar. Ao fundo, o contorno das serras do Bussaco, Caramulo e Estrela. O fim do dia apanha o viajante de corpo farto e alma cheia. A brisa quente agita as folhas das árvores, as andorinhas rodopiam em voo picado, parecendo dizer, simplesmente: «Até breve!».​
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