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6 junho 2019
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira

O interior às portas de Lisboa

​​​​​​​​​​​​​Como no Alentejo, a população faz da farmácia ponto de socorro.

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A 15 quilómetros da capital, no concelho de Odivelas, o histórico Moinho da Laureana anuncia a chegada a Famões. Helena Pimenta, de 86 anos, mudou-se para aqui com a família em 1990. Foi por necessidade, depois das cheias que atingiram Odivelas em Novembro de 1983. Hoje, vive com o marido numa casa cedida pela câmara municipal. 


A Farmácia de Famões abriu há 17 anos numa zona carenciada​

Há meses, caiu e passou nove horas no hospital, com duas costelas rachadas. «Isto agora só lá vai com o tempo, dizem eles», desabafa, reclamando da gripe que apanhou nas urgências e a deixou dois dias de cama. Como é hábito, foi na Farmácia de Famões que aviou os medicamentos. «Enquanto eu cá andar peço a Deus que nunca saia daqui. Se me tiram a farmácia, até morro mais depressa», adverte.

Na região saloia, como em Trás-os-Montes ou no Alentejo, a população recorre às farmácias em caso de indisposição e doença súbita. Os farmacêuticos comunitários conhecem os problemas de saúde de cada um. Medem tensões e glicémias, ouvem queixas e sinais de alerta, fazem trabalho de triagem. A palavra do farmacêutico é decisiva para encaminhar para uma consulta médica doentes com tendência para adiar, assim como casos em risco para as urgências. Por outro lado, as farmácias todos os dias evitam sobrecarregar os hospitais de centenas de urgências desnecessárias, tranquilizando os doentes e aliviando sintomas.

Aos 71 anos, Maria Almeida não se vê sem a sua farmácia. É aqui que a ajudam a gerir a diabetes. «Todos me conhecem», anuncia. Ao fundo, ouve-se a voz de uma das farmacêuticas: «E ralhamos quando é preciso». A custo, a septuagenária lá confessa que nem sempre mede os valores de glicémia.

A Farmácia de Famões abriu portas há 17 anos: «Sabia que esta era uma zona carenciada», justifica José Cardoso, o farmacêutico proprietário. Até aí, os residentes tinham de se dirigir às freguesias vizinhas sempre que precisavam de um medicamento. A farmácia funciona em horário alargado, mas chega a ter serviços nocturnos «sem qualquer movimento, porque nada está a funcionar à noite em Odivelas», refere o director-técnico.


A Farmácia de Famões «é essencial para os idosos sem transporte», avisa o senhor Domingos

Domingos Gomes, de 62 anos, fala com preocupação acerca dos conterrâneos idosos, incapacitados e sem meios de deslocação. «A minha farmácia é esta e não compro medicamentos em mais lado nenhum», assegura.

 


Também em Bucelas é a farmácia a tomar conta dos doentes crónicos no dia-a-dia. «Temos muitos utentes diabéticos e com níveis de colesterol elevados», conta a directora-técnica da Farmácia Central, Patrícia Morais, «e as consultas de especialidade no hospital são cada vez mais espaçadas». Os utentes, que antes eram vistos apenas de seis em seis meses, são agora acompanhados quinzenalmente por uma nutricionista. O objectivo é a redução de peso, mas também dos níveis de colesterol e da hemoglobina glicada.

Às portas de Lisboa também há envelhecimento, despovoamento e pobreza. Nesta região de vindimas e bons vinhos, a menos de vinte quilómetros de Lisboa, fazem falta as crianças e os jovens. José Lima queixa-se de ver a sua terra parada. Ao longo dos seus 47 anos, viu fechar escolas, creches e até o aviário onde trabalhava. «Temos aqui tanto potencial que não é aproveitado», desabafa.

A farmácia, aberta há 98 anos e a funcionar em horário alargado, é a única na zona. É lá que Amélia Dionísio, de 81 anos, vai todos os meses buscar os medicamentos. «Infelizmente, com esta idade é preciso medicação para ajudar», lamenta, «e aqui sempre me trataram bem». Nunca andou na escola, por isso não sabe ler nem escrever. Mas isso não é problema. «Até agora nunca me perdi!», conta, orgulhosa. Nos dias em que precisa de aviar receitas, apanha o autocarro em Vila de Rei que a leva até Bucelas. E aproveita para dar um passeio.


Em Ribamar, mãe e filho servem a população há 20 anos

Os problemas típicos do Interior chegam ao litoral do concelho de Mafra. Há muitos idosos a viver isolados, com pensões de reforma no limiar da sobrevivência. Nas ruas estreitas e pinceladas de casas em tons de azul de Ribamar vê-se pouca gente. José Bernardino, nascido e criado na vila, vem todos os dias beber o seu café no snack-bar do filho. «É aqui que eu vivo e é daqui que vou para a outra terra», diz, em tom de brincadeira. Aos 80 anos, reclama da próstata, do coração e da pedra na bexiga, que o obrigam a tomar oito comprimidos por dia. «A reforma é pequena, por isso tenho de comprar uma caixa de cada vez».


Antes de haver farmácia em Ribamar, José Bernardino fazia dez quilómetros a pé para comprar medicamentos

Viúvo há 17 anos e a viver sozinho, conforta-o saber que, a poucos passos de casa, tem um lugar onde o ajudam em tudo o que precisa. Vagarosamente, vai recordando como, em tempos, era preciso caminhar dez quilómetros para ir à farmácia. «Os meus pais diziam: “vai lá tu, que és mais novo”. E eu lá ia. Pelo caminho, contava as moedas para ver se chegavam». Agora, quando precisa de sair da vila, é o filho que o leva: «Às vezes tenho problemas a andar e a atravessar passadeiras, sabe como é?».

Em 2011, os censos contavam 1.800 habitantes em Ribamar. Porém, daí para cá a população residente continuou a cair, porque «a mortalidade vai aumentando e a natalidade diminuindo», como explica Miquelina Geraldo, directora-técnica da Farmácia Oceano. A única farmácia da freguesia de Santo Isidoro abriu portas há 20 anos e a população não abdica do seu serviço. «Há muita gente aqui que não tem carro», relata a utente Fernanda Reis, de 60 anos, «e como não há grandes transportes, há quem se desloque à farmácia a pé ou à boleia».

«Há pessoas que vêm de Santo Isidoro no autocarro das nove da manhã e eu tenho de as atender rapidamente para o apanharem novamente na volta», conta a farmacêutica, de 55 anos. Numa aldeia sem correios e sem bancos, os idosos chegam até a pedir aos farmacêuticos que lhes depositem os vales da reforma.

Miquelina Geraldo não tem dúvidas de que a solidão é um mal que afecta grande parte dos seus utentes. «Eu lembro-me de uma senhora que costumava vir à farmácia, mesmo quando não precisava de nada, só para passar o tempo. Às vezes, pousava a minha mão no braço dela e isso deixava-a feliz».


«O que seria de nós sem as farmácias de aldeia?», pergunta Fernanda Francisco, portadora da Doença de Ménière

Fernanda Francisco, de 55 anos, é uma filha da terra. E não quer ouvir falar da possibilidade de ficar sem a sua farmácia. «O que seria de nós sem as farmácias da aldeia?». A pergunta é retórica. «O meu sogro, que faleceu com 91 anos, dizia sempre: a farmácia foi a melhor coisa que veio para Ribamar».

Há seis anos foi diagnosticada com Doença de Ménière, uma condição crónica e incurável, que exige um controlo apertado da medicação. «Num momento estou bem e de repente começam os zumbidos, as tonturas e os vómitos», esclarece Fernanda. Em situações de crise, em que não pode deslocar-se, a farmácia vai a casa dela.

A dez quilómetros de Santo Isidoro, a Farmácia Nova Popular, da Encarnação, foi trespassada para a actual proprietária há três anos, depois de um processo de insolvência. «Num meio rural e com uma população maioritariamente envelhecida, alcançar a sustentabilidade é um desafio», explica Ana Clara Costa, de 37 anos.

Para a directora-técnica, é fundamental promover a Saúde Pública. Por isso, a farmácia proporciona rastreios gratuitos, que têm como principal alvo os utentes mais idosos e com menor literacia em saúde. «Tentamos estar em contacto com a população e assegurar o nosso papel na comunidade», conclui a farmacêutica.


Na Encarnação, tudo se passa no Largo Central da Igreja, onde está instalada a farmácia

A maioria dos serviços concentra-se no Largo Central da Igreja. «Temos de andar vários quilómetros até encontrarmos alguma coisa nos arredores», descreve a dona da papelaria. Desde que abriu o negócio, tem vindo a perceber que muitos clientes são pessoas solitárias, a precisar de carinho e atenção. «Nós temos um bocadinho o papel de padre», brinca Marina Martins, de 36 anos.


Marina Martins deixa o aviso: «Sem farmácia, a terra morre»

Entre os vizinhos do largo, o espírito é de entreajuda. «As pessoas deixam aqui medicamentos fora de prazo para eu entregar na farmácia. Outras vezes, os farmacêuticos pedem-me para guardar um medicamento para alguém que o vem levantar ao domingo», conta Marina Martins. E avisa: «Sem a farmácia, a terra morre».

Faça chuva ou faça sol, os utentes das localidades vizinhas andam quilómetros a pé para ir buscar os medicamentos ou tratar dos seus afazeres. É o caso de Domingos Tomás, de 83 anos. Vários dias por semana, no seu vagar, vem da aldeia de São Domingos até à Encarnação para fazer as compras, passar na farmácia e visitar a família.

 


Para muitas pessoas, a farmácia é sinónimo de família. É o caso de Odete Rosa, de 69 anos, residente em Casal das Figueiras, na freguesia de Sobral de Monte Agraço. De visita à Farmácia Moderna, recorda os tempos em que andava com uma das farmacêuticas ao colo. «Eu já gostava desta farmácia, mas desde que ela começou a trabalhar aqui ainda venho mais vezes». Se pudesse, vinha todos os dias, mas de casa aqui ainda são 20 minutos de carro. Leva a insulina e o coração cheio.

As farmácias são o serviço de apoio permanente que resta a muita gente. Isso explica a mobilização em torno da petição “Salvar as Farmácias, Cumprir o SNS”, que em dois meses recolheu 120 mil assinaturas. Em Sobral de Monte Agraço, a comunidade está habituada a lutar contra o encerramento de serviços. «Tentaram tirar-nos os correios. Se fechassem, tínhamos de ir para Arruda dos Vinhos ou Torres Vedras. Mas o pessoal juntou-se. Fomos à câmara e a coisa lá se compôs», conta Helena Ascensão, de 67 anos. Mudou-se há dez anos para a vila para concretizar o sonho dos filhos, que desde crianças tinham uma paixão pelos bombeiros. «Na minha zona não havia, então cedemos», recorda, entre sorrisos.


Helena Ascensão conta com a farmácia para a ajudar na gestão da sua doença oncológica

​Para Helena, farmácia há só uma. «A Farmácia Moderna é a minha farmácia», afirma. Por ser doente oncológica, os medicamentos são o «pão nosso de cada dia». Quando não tem consulta a tempo de renovar a receita, a farmácia empresta-lhe os medicamentos, para que não interrompa a terapêutica.

A dispensa a crédito e a fiado, típica das regiões do Interior, também acontece na área metropolitana de Lisboa. É possível graças à relação de confiança que as pessoas estabelecem com as farmácias de proximidade. E é necessária porque as pensões e os salários de muita gente não chegam para adiantar a parte comparticipada pelo Estado até à consulta médica seguinte.

«A maioria dos nossos utentes são idosos com dificuldades económicas», explica Luísa Cuco, directora-técnica da Farmácia Moderna. De modo a garantir que cumprem os tratamentos, a equipa escolhe sempre os genéricos mais baratos. «É a forma que nós temos de os ajudar», desabafa a farmacêutica.

Ainda a combater os efeitos da crise e tentando gerir diariamente as falhas de medicamentos, a farmácia faz o que pode para apoiar a comunidade. Os utentes mais carenciados, no dia em que recebem a reforma, saldam a dívida do mês anterior e aviam as receitas para o mês seguinte. «Eu costumo dizer que a última fica por minha conta», remata, a sorrir, a farmacêutica.
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