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25 março 2019
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

A mulher sem espinhas

​​​​​​​​​​​​​Como uma farmacêutica investiu e vai tornar a investir na vila mais pobre dos Açores.

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Farmácia Borges da Ponte - Rabo de Peixe

No Snack Bar Canadiano, monumento de homenagem à terra mítica para gerações de emigrantes, a televisão fica ligada das seis da manhã à meia-noite, assim como a bisca, o dominó e a palraria em meias-palavras característica do dialecto oficial de Rabo de Peixe.


A clientela do Snack Bar Canadiano guardava as costas da farmacêutica nas noites de serviço

– Mêm de veras, ma qués burre!

O estabelecimento vende “minies”, gelados Kalise e mata-bichos. Nas paredes, forradas a lotarias e raspadinhas, salta à vista um poster dos Modern Talking. Os fatinhos brancos dos dois cantores alemães resistem sem um vinco desde os tempos heróicos em que Maria Filomena Ponte se encheu de coragem e comprou a farmácia da frente, do outro lado da estrada. Aos 27 anos, a farmacêutica era uma rapariga solteira e muito morena, mal regressada da aventura em Lisboa para tirar o curso.

– A minha mãe apanhou um desgosto.

Aquele não era – Santo Deus, não poderia ser – o lugar sonhado por Inês da Estrela para a sua única filha mulher. Rabo de Peixe era notícia quando havia uma apreensão de droga, a polícia mandava toda a gente parar e soprar no balão, ou a CEE punha cá fora a estatística das regiões mais pobres da Europa. Esse embaraçoso campeonato deu à terra muitos títulos nos jornais.


«A farmácia é um pilar da Saúde Pública», afirma António Pedro da Costa, antigo presidente da Câmara da Ribeira Grande

A má fama inspira-se como o cheiro pútrido a isco e a lixo a céu aberto do porto de mar. Com o seu olfacto nervoso, a comunicação social decompôs os factos, expirou estigmas e espirrou preconceitos, para desgosto e censura de António Pedro da Costa, antigo presidente da Câmara da Ribeira Grande, sede do município.

– Rabo de Peixe é uma terra de gente maltratada e mal retratada.

O retrato verdadeiro é a cores. Um “rapexim” autêntico nasce e vive na ilha de São Miguel, mas com a fé na festa e a chinela a fugir para o carnaval de um puro terceirense.

– Entra a música!

As duas filarmónicas e os dois ranchos folclóricos nativos disputam audiências nas festas do Espírito Santo. A grande competição é entre os “balhos” dos “homens da terra” e dos “homens do mar”. São dois grupos de homens que se distinguem pelos trajes de trabalho e representam na folia as duas comunidades ancestrais da freguesia. Cantam, dançam e largam assim a desfilar, muito alegres e desembaraçados, com animadas castanholas atadas às mãos. Dantes, a metade de cima, dos proprietários rurais, nunca caía daí abaixo. Por uma lei não escrita, os casamentos entre jovens das duas comunidades eram proibidos. Amores, só impossíveis. O 25 de Abril e a televisão mudaram costumes, contratos e destinos. Hoje, os pescadores até já podem ser mordomos do Espírito Santo, quanto mais casar com as raparigas da terra.


As crianças já se aguentam na escola, aprendem música, nadam e jogam futebol nos clubes do bairro. Rabo de Peixe é a vila mais jovem de Portugal
 
A alegria anda à solta como as crianças. A Ribeira Grande é o concelho mais jovem de Portugal. Nos últimos censos, realizados em 2011, metade da população tinha menos de 25 anos. O planeamento familiar foi o primeiro grande desafio de Filomena Ponte. Mal tomou conta da farmácia, em 1988, entraram-lhe pela porta magotes de adolescentes grávidas e de raparigas na casa dos vinte e poucos anos já com um rancho de filhos.

– Ó doutora, sou eu atoleimada em ir para o quinto, se minha mãe me deu nove irmãos?

Famílias com dez e até 15 filhos eram tão naturais como o mar ficar “rófe” no Inverno, atirando os homens para os cafés e o prejuízo. As crianças cresciam na rua. Antes dos 15 anos, um terço abandonava a escola. Para muita gente, a vida era trocar alianças e fazer filhos. As habitações do bairro piscatório abarrotavam de casais de várias gerações. Os governos regionais respondiam com bairros sociais e casas de quatro assoalhadas de chave na mão, mas pareciam sempre atrasados em relação às vagas imparáveis da natalidade.

Nos primeiros anos, a farmacêutica de Rabo de Peixe foi sugada até à espinha. Trabalhava 12 horas por dia. Para a auxiliar, só tinha uma técnica com registo de prática. De segunda a sexta-feira, ficava ao balcão até às dez, 11 da noite, à espera da última consulta de um médico particular vizinho. Depois de fechar a porta, no caminho para casa, ainda entregava medicamentos ao domicílio. Para não a deixar sozinha, a mãe passou muitos serões na farmácia. 

– Eu tinha de assumir o compromisso perante a população.


«Tenho amizade, amizade entre aspas, pela doutora», diz Dionísio Marques, "médico de carros" reformado​

Dionísio Marques, 76 anos, recorda-se de lhe levarem os medicamentos a casa. Era «médico de carros», carreira que lhe deu especial sensibilidade ao profissionalismo em saúde. Antes de andar emigrado pelo Canadá tinha a sua oficina de bate-chapas ao lado da farmácia. A equipa cresceu, tem agora dois farmacêuticos e quatro ajudantes técnicos. Todos ainda o recebem com um «sorriso de orelha a orelha». Na hora de gozar a reforma, o dermatologista de automóveis comprou um andar nas Calhetas, mas continua a vir à Farmácia Borges da Ponte aviar as receitas médicas. 

– A minha ligação à farmácia é familiar. Tenho amizade, amizade entre aspas, pela doutora.

Filomena teve de enfrentar o destino para conquistar o respeito de todos e fazer amigos atrás de amigos ao balcão. Ali pelo terceiro ano de curso, começou a acordar com dores cada vez mais insuportáveis nas articulações. O corpo não queria andar, parece que não lhe obedecia. Fez exames, foi ao médico, sentou-se e ouviu de punhos cerrados um diagnóstico para toda a vida.

– A menina tem artrite reumatóide.
 
Aos 22 anos, a doença crónica forjou uma mulher de mãos à obra. Maria Filomena respondeu à rigidez muscular com uma ideia ainda mais fixa: acabar o curso. Contrariava as dores com uma vontade de ferro e a inflamação das articulações com sais de ouro importados da Alemanha. Fechava-se dias em casa, a estudar para os exames. Quando chegava o dia, se não era capaz de se arrastar até à paragem do autocarro, ia de táxi para a Faculdade de Farmácia de Lisboa.

Terminou o curso em 1986. O esforço foi recompensado com estágios topo de gama, na Farmácia das Fontaínhas, de João Cordeiro, e nos serviços farmacêuticos do Hospital Militar. Um estágio complementar, coordenado por Aranda da Silva e Aloísio Marques Leal, professores de referência, levou-a a percorrer vários hospitais e a tratar por tu as melhores práticas da profissão. Quando regressou a São Miguel, foi contratada pelo hospital de Ponta Delgada e para dar aulas de Farmacologia na Escola Superior de Enfermagem da Universidade dos Açores. Havia falta de farmacêuticos, ainda para mais com a preparação dela. Nos primeiros cinco anos em Rabo de Peixe, acumulou os três empregos.

– Para comprar a farmácia, fiquei com uma dívida ao banco para honrar.

Aos 27 anos, a nova obsessão de Maria Filomena era viabilizar o investimento numa farmácia comunitária na terra mais pobre dos Açores. Em Rabo de Peixe, ainda hoje quase ninguém compra nada para além dos medicamentos receitados pelos médicos e comparticipados pelo Governo Regional.  Naquele tempo, antes do rendimento mínimo, a miséria era pior. Para aliviar o sofrimento dos clientes de todas as idades, era preciso dispensar fiado e muitas vezes a fundo perdido.

– As pessoas que trabalham na farmácia são muito “sociais”.

A descrição é de José Domingos Machado, 85 anos. Tinha 22 quando emigrou para o Canadá. Trabalhou duro nas minas do urânio, venceu a fome e perigos maiores nesta vida. Voltou às origens «por amor à camisola». E «por amor à camisola» foi presidente da Casa do Povo durante 40 anos. Montou três creches, um centro de saúde e o lar de idosos onde agora vive.

– Atendem tão bem os velhos como os novos, sempre com língua doce.

O que custava mais à farmacêutica não eram as noites ao balcão, mas as tardes de sábado. As amigas iam para a praia e apareciam bronzeadas, saíam para a borga e voltavam com romances na ponta da língua. Ela ficava a dispensar medicamentos e a aconselhar as raparigas de Rabo de Peixe a cuidar dos filhos.

– Foi uma prisão. Chorei muitas vezes de raiva de estar ali fechada!

A farmácia é contemporânea da sida. Numa terra com todos os grupos de risco, era preciso combater o medo e deitar mãos à obra. Em Maio de 1995, Odette Ferreira e Filomena Ponte foram à Escola Secundária de Rabo de Peixe prevenir a juventude para o perigo. Como no Casal Ventoso, o Programa Troca de Seringas funcionava com uma unidade móvel.

A farmacêutica nunca teve medo. Sentiu-se bem recebida e até acarinhada desde o primeiro dia. Quando um viciado em cocaína ou heroína se aproximava da farmácia à procura de dinheiro fácil, os clientes do café Canadiano atravessavam a estrada e clareavam as ideias ao intruso.

– Pelo’ê! Pega drêt!

Desaparecia, desaparecia, ai dele se não percebesse a mensagem. Durante quatro anos, a Farmácia Borges da Ponte administrou metadona de substituição, a pedido da associação ARRISCA, que distribui as seringas e se dedica à recuperação dos toxicodependentes. Vacinação, nutrição, colesterol, glicémia, protecção solar de uma população muito exposta ao cancro da pele. Em Rabo de Peixe, há serviços farmacêuticos como na Avenida de Roma, com colaboração de enfermeira e nutricionista.

– A farmácia é um pilar da Saúde Pública.

António Pedro acredita no futuro. Se há mais de três mil munícipes da Ribeira Grande a viver do rendimento social de inserção, há dez anos eram o dobro. Uma em cada quatro crianças ainda é beneficiária, mas já quase todas se aguentam na escola, aprendem música, nadam e jogam futebol nos clubes do bairro.



O peixe dá ao rabo e Filomena Ponte é a prova disso. Vai investir numa farmácia nova, com estacionamento, Farmadrive e vários gabinetes, para consultas farmacêuticas e outros serviços. Está muito mal-enganado quem imaginar a farmacêutica de Rabo de Peixe fora da água.

– Fizemos a nossa casa definitiva aqui e é aqui que vamos ficar. A farmácia é como se fosse a minha filha mais velha. E a minha casa é em Rabo de Peixe, sem dúvida nenhuma.
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