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25 março 2019
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira

Uma aldeia com medo

​​​​​​​Seria traumático para as pessoas perderem a farmacêutica que cuida delas há 25 anos.

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Farmácia Vale de Prazeres - Vale de Prazeres

Que nunca acabe esta farmácia, que nunca acabe, faz cá muita falta», exclama José Caria Antunes, a aflição misturada num sorriso travesso. «Estou doente e venho cá muitas vezes buscar remédios». Aos 89 anos caminha quase dois quilómetros para se abastecer na Farmácia Vale de Prazeres, que serve a aldeia com o mesmo nome há mais de 60 anos.

O antigo padre da freguesia partilha esse sentimento. «Quero cá a farmácia, faz muita falta», declara José Atanásio Mendes. Ao seu lado, Luísa Cardoso, antiga cozinheira de profissão, acena com a cabeça. O restaurante onde trabalhava foi à falência. Quando o pároco foi atacado por uma doença crónica, ela encontrou ocupação a tratar dele. De início, teve medo de não conseguir fazer uma transição tão drástica de ofícios. Foi a farmácia que lhe valeu e a ensinou a ser uma cuidadora segura e competente. «Não sabia nada. Hoje sinto-me completamente apoiada nos cuidados que presto», expõe Luísa Cardoso.


«Se não forem tomadas medidas, a farmácia vai mesmo ter de fechar», lamenta Maria João Rodrigues

O povo sabe que Vale de Prazeres corre mesmo o risco de ficar sem a sua farmácia. «É uma luta diária», desabafa a farmacêutica Maria João Rodrigues, proprietária e directora-técnica há 25 anos. Já esteve na iminência de fechar a porta e de pedir transferência para outro local. Mas não se revê «no trabalho da cidade». Mora por cima da farmácia. Sempre que é preciso, atende fora do horário e manda entregar os medicamentos à casa das pessoas. Contam com ela para tudo, até para chamar o INEM quando há uma urgência.

Esse serviço, tão próximo, constante e tão antigo, pode desaparecer de repente. «Se eu vender, o novo proprietário transfere o alvará com certeza. Não tem laços, a população não lhe diz nada, não são 25 anos aqui. Mas será esse o futuro da Farmácia Vale de Prazeres, se não forem tomadas medidas», avisa a farmacêutica.

Um futuro sem farmácia preocupa Lurdes Sequeira, Ana dos Santos Rodrigues e Maria da Conceição Caria, todas moradoras na aldeia ou nas proximidades. Não estão a ver como poderiam deslocar-se a Alpedrinha, a cinco quilómetros, ou ao Fundão, a 12, sempre que precisassem de um medicamento.


«Toda a vida da aldeia passa pela farmácia», explica o presidente da Assembleia de Freguesia

Antigamente, muitas crianças começavam a trabalhar no campo com seis e sete anos. Não chegavam a conhecer a escola. Hoje, são idosos analfabetos. O Presidente da Assembleia de Freguesia traduz em palavras o sentimento que muitos não sabem expressar. «Toda a vida da aldeia passa pela farmácia, é um dos pontos mais importantes na vida da comunidade», explica José Branco. Mais do que à farmácia, a grande ligação é à farmacêutica. Ao fim de 25 anos de cuidados, seria traumático para muitos ficar sem Maria João Rodrigues. «É a pessoa a quem o povo recorre quando está numa aflição. Não seria o mesmo se tivéssemos aqui um dispensador de medicamentos », considera o autarca.

As dificuldades arrastam-se há 15 anos. Maria João tinha acabado de contrair um empréstimo bancário avultado para abrir as instalações actuais da farmácia. Primeiro veio a liberalização da venda de medicamentos não sujeitos a receita médica (MNSRM), depois os cortes nos preços e nas margens. «Vi-me numa situação muito delicada», conta a farmacêutica. Mudou a residência da Covilhã para Vale de Prazeres para poupar nas deslocações. Apertou o cinto. Aprendeu a «viver um dia de cada vez».



Desde então, «a farmácia está sempre a respirar pela palhinha». Há meses em que é muito complicado fazer face a todas as despesas. A Farmácia de Vale de Prazeres factura menos de metade de uma farmácia média nacional. Desde que abriu portas, a população diminuiu na mesma proporção. Hoje, serve 1.700 pessoas, na sua maioria idosos, de uma freguesia que se estende ao longo de 23 quilómetros. Vende muito pouco para além do receituário médico. Tem de se concentrar nos genéricos e nos medicamentos de preço mais baixo, que não dão grandes margens. «Se eu vendesse as marcas mais caras, as pessoas acabavam por não fazer a terapêutica indicada pelo médico», explica a farmacêutica.

Maria João dispensa muitos medicamentos a fiado, embora saiba bem que não é a melhor estratégia para a sustentabilidade da farmácia. Muitas vezes, os utentes não têm receita porque não conseguiram consulta médica atempada. Ela não tem coragem de cobrar a parte comparticipada pelo Estado, até chegar a receita. «Uma farmácia aqui não é como nos grandes centros urbanos. É difícil dizer a uma pessoa que tem 200 euros de reforma que vai pagar 55 euros por um antidiabético oral. Ficamos nós à espera que a receita venha», desabafa a directora-técnica. Claro que dispensa medicamentos a crédito às pessoas com pensões agrícolas e de sobrevivência, idosas e com muitas patologias. «Se não o fizesse, deixavam de tomar os medicamentos, não tinham outra solução. Sem tudo o que filtramos e minimizamos na farmácia, aumentariam as urgências nos hospitais», recorda.

 


A equipa da farmácia é a farmacêutica directora e dois ajudantes técnicos. Chega a trabalhar 11 ou 12 horas por dia. Faz voluntariado em instituições de cariz social desabafa a directora-técnica. Claro que dispensa medicamentos a crédito às pessoas com pensões agrícolas e de sobrevivência, idosas e com muitas patologias. «Se não o fizesse, deixavam de tomar os medicamentos, não tinham outra solução. Sem tudo o que filtramos e minimizamos na farmácia, aumentariam as urgências nos hospitais», recorda.

A equipa da farmácia é a farmacêutica directora e dois ajudantes técnicos. Chega a trabalhar 11 ou 12 horas por dia. Faz voluntariado em instituições de cariz social e religioso. Prepara a medicação semanal dos idosos, para que não haja enganos nas tomas. É a forma de retribuir a quem escolhe os serviços da farmácia. «Muitas farmácias oferecem descontos, eu ofereço o meu trabalho e tempo. Não posso dar outra coisa», refere a farmacêutica. Toda a família trabalha para manter a farmácia aberta. O pai ajuda com as entregas ao domicílio. O marido faz alguns empréstimos à farmácia para superar os piores momentos de falta de liquidez. Os quatro filhos, já crescidos, habituaram-se a ver a profissão da mãe como um calvário. «Nenhum quer ser farmacêutico!», ri-se Maria João.



A crescente comunidade estrangeira é uma lufada de ar fresco na aldeia. Ingleses e holandeses são uma esperança para a sustentabilidade da farmácia, assim como os reformados que regressaram das grandes cidades. Não compram medicamentos noutro lado, «valorizam os laços». A população luta pela sobrevivência da farmácia.

A petição “Salvar as Farmácias, Cumprir o SNS” ajudou a aumentar a consciência sobre as dificuldades. De início, algumas pessoas achavam que a farmacêutica era “queixinhas” por falar da crise, até porque as farmácias tinham fama de “dar mundos e fundos”. Com o passar do tempo, o problema foi-se tornando evidente. «Esta campanha veio dar força às minhas palavras dos últimos anos», refere Maria João Rodrigues. Com a visita do presidente da Associação Nacional das Farmácias e as notícias que saíram no Jornal do Fundão, «agora são elas que me perguntam se vou conseguir aguentar esta fase mais complicada».


«SE A FARMÁCIA FECHAR, NÓS VAMOS ATRÁS»

Na aldeia de Orca, a menos de 10 quilómetros de Vale de Prazeres, encontramos a Liga dos Servos de Jesus. Apoia 26 idosos, entre o centro de dia e o serviço de cuidados domiciliários. Muitos deles enfrentam sozinhos a última etapa da vida. «Os nossos idosos são muito dependentes das funcionárias, das irmãs. As famílias vêm pouco, outros não têm quase família», explica a Irmã Maria Emília Galante, responsável da instituição.


A farmacêutica e a directora da Liga dos Servos de Jesus aproveitam as sobras de medicamentos para ajudar os mais pobres

A religiosa e a farmacêutica desenvolveram há muitos anos uma parceria estratégica. «Eu tinha pouco, a farmácia tinha pouco, começámos a ajudar-nos mutuamente», explica a Irmã Emília. Criaram entre elas um curioso sistema de partilha de fármacos. Se a Farmácia Vale de Prazeres recebe sobras de medicamentos da parte dos respectivos utentes, Maria João Rodrigues verifica o prazo de validade e a integridade das formas farmacêuticas. Como apoia a Irmã na planificação da medicação individual dos utentes, sabe logo quais as cápsulas e os comprimidos que lhes podem ser úteis e encaminha-os para a instituição religiosa. Maria Emília, a pensar nos mais carenciados da aldeia, faz o mesmo. A farmácia não aumenta as receitas, mas ganha a confiança dos utentes e ajuda os mais carenciados a ter acesso à saúde. «Se pudermos aliviar os idosos com esta partilha, ganhamos todos, até o Estado, pois evita-se o desperdício», considera a farmacêutica.

 


Une-as um relacionamento afectivo, muito além do comercial. Já por duas vezes Maria Emília recebeu propostas de «farmácias da cidade», com descontos no preço de venda ao público. Recusou-as liminarmente, porque sente a obrigação de lutar pela sobrevivência da Farmácia Vale de Prazeres. «Os que estão perto de casa é que nos socorrem nas aflições», justifica Maria Emília. «Quero preservar a farmácia porque seria o caos termos de andar a caminho do Fundão para comprar a medicação para 26 idosos. Se a farmácia fechar, acho que vamos atrás», explica a freira.

SC / SB / PV
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