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2 outubro 2025
Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Texto de Teresa Oliveira | WL Partners

140 anos de história no coração da Foz Velha

​​​​​​​​​Fundada em 1885 por António Ferreira Campos, a Farmácia Campos atravessou gerações, quase sempre liderada por mulheres.

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​​«Para mim, esta farmácia é tão única e tão especial… Se eventualmente mudasse de localização, talvez pensasse em alterá-la, mas, aqui, faz todo o sentido mantê-la com esta configuração». O comentário é de Isabel Real, a diretora técnica da Farmácia Campos, localizada na Foz Velha, no Porto, numa rua onde o tempo parece ter parado.

Quem entra na farmácia encontra um estabelecimento praticamente inalterado desde o século XIX. O mobiliário antigo, a grade junto ao balcão, os frascos originais da tia-bisavó Laura, transportam quem a procura para outra época. Nem um computador se vê e, se não fossem os medicamentos e produtos modernos dentro dos armários e no balcão, não se imaginaria estar no séc. XXI. Tal como nas farmácias do passado, o atendimento é feito na grade e não no balcão. Para assuntos que exigem recato, são disponibilizadas pequenas salas.

Muitos turistas já procuram a Farmácia Campos. «Gostam muito e tiram imensas fotografias. Alguns estranham a ida à grade», refere Isabel Real, «e é engraçado, porque vários se admiram por a farmácia ter mais de 100 anos, o que para eles já é muito tempo». Apesar das mudanças na vizinhança e de todos os dias aparecerem pessoas a falar outras línguas, muitos dos utentes são os mesmos de sempre, mesmo quando vão morar para fora do bairro da Foz.

«Temos muitas famílias, desde o neto ao avô, e é muito gratificante porque até há pessoas que agora moram longe e continuam a vir à nossa farmácia». Sendo aquela zona «quase uma aldeia», não há que estranhar que haja quem lá passe diariamente, nem que seja para trocar dois dedos de conversa ou até para pedidos de ajuda invulgares. «Uma pessoa vinha cá para saber quando é que jogava o Sporting», revela Isabel Real. «Esse género de pedidos», a que atendem com gosto. «Na nossa profissão vejo muito o objetivo de tentar ajudar».



Antigos kit de administração de insulina e medicamentos vendidos em farmácia


A história desta farmácia histórica começa com o trisavô de Isabel, António Ferreira Campos, que teve uma farmácia na Trofa, antes de se fixar na Foz. Numa família de muitos farmacêuticos, o irmão, Francisco, foi-o igualmente em Ponte de Lima, onde chegou a ser presidente da Câmara nos primeiros tempos da República. António Campos «também era pela causa republicana, embora não tenha exercido cargos», conta a sua descendente.

Em jovem, António Campos tinha trabalhado na farmácia de um primo, Joaquim Monteiro Laranjeira, que se situava ali mesmo na Foz. Quando Joaquim Laranjeira morreu, a sua mulher, Maria Emília, deixou-a em testamento: «Ao meu primo António Ferreira Campos deixo toda a armação e mais aprestes e utensílios da farmácia que foi do meu marido. Este meu primo poderá, querendo, comprar por 1.500 contos de réis o prédio».

Com o conteúdo da farmácia do primo, instalou-se no número 186 da Rua Direita, hoje 943 da Rua Padre Luís Cabral. A data de fundação da farmácia é 22 de fevereiro de 1885, dia do primeiro registo do “copiador de receituário” da Farmácia Campos. «O copiador é um registo das receitas. Era obrigatório fazê-lo sempre. Tinha a data, o médico que prescrevia, o medicamento e a pessoa a quem havia sido prescrito», explica Isabel Real. «No fundo, nele era feito o registo de todo o movimento da farmácia».



O "copiador de receituário" que assinala a data de fundação da Farmácia Campos e um dos medicamentos criados por Laura Campos


A história da Farmácia Campos também se conta pelas mulheres que a marcaram. Isabel Real sublinha a importância que o seu trisavô teve na formação das filhas: «António foi pai de nove filhos, mas só seis sobreviveram e, destes, vários foram farmacêuticos, nomeadamente três filhas: Maria, Ana e Laura. Admiro-o muito por ter conseguido que todas as filhas fossem formadas». Orgulhoso, o progenitor descreveu minuciosamente os estudos das filhas, e até o restaurante onde comemoraram a aprovação no exame de uma delas.

Entre António Campos e a filha mais nova dá-se uma revolução no ensino da farmácia. Se o pai se tornou farmacêutico através da prática, as filhas mais velhas já foram a exame e a mais nova formou-se na primeira licenciatura do Curso Superior de Farmácia da Universidade do Porto, que decorreu entre 1916 e 1920. «Coincidiu com a autonomia das Escolas de Farmácia, até então anexas às Escolas Médico-Cirúrgicas, e Laura licenciou-se com 18 valores, aos 23 anos. Foi até convidada a ser professora na Faculdade de Farmácia».

Esse destino pioneiro não se concretizaria. Laura foi trabalhar para a Farmácia Campos com o pai, na altura já com a saúde debilitada e idade avançada. Viria a morrer em 1992, aos 95 anos, depois de uma vida dedicada à farmácia e à população que servia. «No dia do funeral, o comércio local encerrou para lhe prestar homenagem. Ganhara o respeito do povo da Foz do Douro (Porto), a quem ajudava desinteressada- mente, permanecendo ainda na sua memória», escreveu Fernando Real, tio de Isabel, num texto que apresentou na Ordem dos Médicos.



António Ferreira Campos, com a esposa e as filhas farmacêuticas: Ana Costa Campos (em cima à esquerda), Maria Campos (em cima à direita) e Laura Campos (em baixo ao centro)


As capacidades de Laura ficaram bem patentes através de vários medicamentos que desenvolveu, entre os quais o xarope para a tosse Sedogenol «deixámos de o vender não assim há tanto tempo», esclarece Isabel Real ― e a Hemogenina, para o tratamento da anemia e clorose, o nome antigo para um tipo de anemia, geralmente em meninas e mulheres jovens, caracterizada por palidez, fraqueza e falta de apetite, e a que também se chamava “doença do amor”. Ambos rotulados com «fórmula de Laura A. Campos, farmacêutica-química pela Universidade do Porto».

Maria Angelina Campos, filha de Ana, sobrinha de Laura e avó de Isabel Real, viria a suceder-lhe. Seguiria o exemplo da tia ― que a educou desde os nove anos ― com igual empenho, dedicação à farmácia e reconhecimento da comunidade da Foz. À Revista Saúda, em 2016, já com 96 anos, disse que «o normal era seguir a profissão da família, sempre soube isso desde criança». A neta conta que «tinha muito jeito também para letras e pintava. Acho que se tivesse sido ela a escolher…». Maria Angelina, entretanto falecida aos 102 anos, afirmou que aprendeu a gostar do ofício que lhe fora destinado. Foi diretora técnica da farmácia até 2020, quase a fazer 100 anos, altura em que seria substituída pela neta Isabel. «É para mim a grande referência. A sua maneira de ser era muito especial, muito alegre».

140 anos depois da fundação, e um século com mulheres ao comando, a Farmácia Campos mantém-se fiel a si mesma, pertencendo à história.

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