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3 abril 2025
Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O legado de um apaixonado

​​​​​​Do atendimento ao público à preservação de uma coleção museológica, a Farmácia Monte é a farmácia histórica mais completa da Europa.​

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​Quem percorre a Rua Dr. António José de Almeida, em Vila Viçosa, encontra não apenas uma, mas duas Farmácias Monte. Uma moderna, que abriu no final de 2019, e outra centenária, inaugurada em 1912. Ambas estão ligadas à mesma família, a dos descendentes de António Victor do Monte.

Pela discreta fachada da antiga Farmácia Monte, não se adivinha o recheio. Uma placa em mármore – pedra característica da região – atesta a existência de uma farmácia, entra por razões de saúde ou bem-estar encontra o que não está à espera. A centenária Farmácia Monte é agora uma coleção visitável, graças à colaboração dos descendentes do fundador, do município de Vila Viçosa e do apoio de vários parceiros, entre os quais o Museu da Farmácia, unidos na preservação deste património único.


Laboratório de preparação de óvulos ou pomadas. A mesa foi feita à medida e aproveitando caixotes de medicamentos para gavetas

Entrar na Farmácia Monte – Coleção Visitável é dar um salto ao início do século XX. Neste espaço amplo e de pé direito alto, impõem-se dez vitrinas em madeira repletas de frascos com substâncias químicas e botânicas. Também chamam a atenção quatro arcadas, tendo as duas primeiras as inscrições Honor et Scientia (honra e conhecimento) e Labor et Progressio (trabalho e desenvolvimento), frases que descrevem o espírito e a dedicação de António Victor do Monte.


Sala onde até aos anos de 1950/60 se faziam desde comprimidos a pomadas

O encanto (e o espanto) não termina neste imponente espaço, onde até outubro de 2019 ainda funcionava o atendimento ao público. Ao fundo, portas identificadas como Laboratório e Escritório dão acesso a um conjunto de salas que parecem ter ficado suspensas no tempo e onde se consegue perceber como funcionava um laboratório farmacêutico de meados do séc. XX – já de alguma dimensão, pois enviava medicamentos para todo o país. Uma fotografia de António do Monte a trabalhar no “Laboratório de Empôlas”, na zona de preparação de injetáveis, comprova que os espaços se mantêm exatamente como eram.​

Do mobiliário feito à medida aos equipamentos, às substâncias, o que no decorrer dos anos possa ter sido modificado foi reposto no lugar de origem, para preservar a autenticidade do espaço. O carinho e o orgulho da família são evident​es, como bem revela o neto de António, Victor do Monte, pelo espaço onde entrou pela primeira vez com um mês de idade. A filha, Inês, também trabalhou na farmácia criada pelo bisavô e revela o impacto da mudança para o novo estabelecimento: «foi muito estranho», confessa, «uma parte da nossa identidade acaba por se desvanecer um bocadinho». Não apenas para si, mas também para o resto da equipa, que além da saída deste espaço emblemático teve, poucos meses depois, de lidar com a pandemia de COVID-19.


António Victor do Monte começou a trabalhar como aprendiz aos 11 anos

Um homem curioso e inovador
Nascido no Redondo e sobrinho de farmacêuticos, António do Monte foi aos 11 anos trabalhar na Farmácia da Misericórdia de Vila Viçosa, gerida pelo seu padrinho. Tal como revela o espaço que deixou para a posteridade, «dedicou-se muito à farmácia, para ele foi uma paixão», conta o neto. A família – filhos, genro, neto, a mulher deste e a bisneta – seguiu-lhe os passos, cuidando do seu património com a consciência de que, por ser «tão completo» é um caso raro de preservação.


Inês e António, bisneta e neto de Victor do Monte

Um episódio, contado pelo neto, mostra bem o caráter, os interesses e as capacidades do fundador. Tinha António do Monte 15 anos quando um cliente entrou na Farmácia da Misericórdia perguntando pelo seu padrinho, o farmacêutico. António responde que não estava naquele momento, mas que ele próprio estava «ali para ajudar». O seu interlocutor disse-lhe que «não queria ser atendido por um gaiato». A resposta veio pronta: «Há gaiatos que nunca o foram e há homens que nunca o serão».

Tirado o curso de Farmácia, com 18 valores, instalou-se em Silves. Apesar de haver «umas três ou quatro farmácias… ou mais» em Vila Viçosa, quando soube que havia um posto vago na farmácia onde foi aprendiz, regressou e arrendou o estabelecimento. Marcada pelo imponente Paço Ducal – D. Carlos e o príncipe herdeiro vinham de Vila Viçosa quando foram assassinados ao chegar a Lisboa - pela indústria de extração do mármore e pela agricultura, entre outras atividades, Vila Viçosa era à época «uma terra muito dinâmica e um polo de encontro de personalidades».

António Victor do Monte no "Laboratório de Empôlas", cuja configuração se mantém na atualidade. Todos os móveis foram feitos à medida do espaço e das funções a que se destinavam

Quando decidiu ter a sua própria farmácia, mudou-se para a Rua Dr. António José de Almeida. Ao longo dos anos, a «sua dedicação e ambição de crescer» levaram ao aumento do espaço físico da farmácia, que terá atingido o «seu auge pelos anos 40». Sempre curioso e inovador, quando queria desenvolver um medicamento ou um aparelho ia «nem que fosse à Cochinchina, mas fazia-o». Da tinta para escrever às pastilhas de mentol – produtos que também se vendiam nas farmácias – António do Monte fazia de tudo. O neto dá um exemplo: «Temos aí uma máquina de fazer pastilhas de mentol, em que o processo tradicional era fazer uma a uma». O avô «chegou a uma fábrica e arranjou maneira de lhe construírem uma máquina para fazer seis pastilhas de cada vez. Eram evoluções para resolver os problemas». Outra das suas muitas inovações, já que se focava em «arranjar soluções para que os medicamentos fossem administrados da melhor maneira», foi a de melhorar o sabor do óleo de fígado de bacalhau, que «todos nós [crianças] bebíamos, mas tinha um sabor intragável». António do Monte arranjou maneira de lhe dar um sabor a baunilha, tornando-o «agradável para qualquer criança tomar».


Materiais usados numa pequena prensa onde um tipógrafo vinha imprimir rótulos de medicamentos e formulários

Com o passar do tempo, a Farmácia Monte começou a vender medicamentos e produtos para outras farmácias que «não tinham tempo ou conhecimento» para as fabricar, chegando a vender praticamente para todo o país. «Veja-se o caso de pequenas farmácias em Lisboa que se foram desenvolvendo e transformando em laboratórios farmacêuticos», comenta Victor do Monte. «Como esta era em Vila Viçosa não tinha a hipótese de se transformar em laboratório, pois não tinha o ambiente necessário para poder crescer».

Pode não ter sido esse o seu destino, mas neste momento a Farmácia Monte distingue-se por ser a farmácia histórica mais completa de toda a Europa e está em vias de ter o seu património classificado. Visitável todos os dias, exceto segundas-feiras e feriados, vale a pena visitar este espaço e conhecer o seu «equilíbrio muito perfeito, peça a peça», como descreve Víctor do Monte.

 
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