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2 janeiro 2025
Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Fotografia de Eduardo Martins Fotografia de Eduardo Martins Vídeo de Nuno Santos Vídeo de Nuno Santos

Uma botica onde se fez política

​​​​​​​​​​​​​​Em Vila Praia de Âncora, pai e filho dedicaram a vida à Farmácia Brito. Além da dispensa de medicamentos e prestação de cuidados de saúde, foi um local de tertúlia contra a monarquia e, depois, o Estado Novo.​
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Entrar na Farmácia Brito, em Vila Praia de Âncora, é regressar ao século XIX». A observação é de Paulo Ferreira, proprietário da farmácia mais antiga da vila, há dez anos. Fundada na transição do século XIX para o XX, os sucessivos proprietários mantiveram-na quase inalterada ao longo das suas 13 décadas de existência.
O fundador, João José de Brito era irmão de Júlio José de Brito, farmacêutico retratado na edição de dezembro da Revista Saúda. Antes de abrir a sua própria farmácia em Covas e, posteriormente, em Ponte de Lima, Júlio trabalhou em Vila Praia de Âncora com o irmão. 

«Sempre ouvi dizer que João Brito era uma pessoa muito querida de todos, porque estava sempre pronto a ajudar», recorda Olga Brito Rodrigues, neta do fundador e também farmacêutica. No final de 1800, e na primeira metade do século XX, numa vila voltada para a pesca, onde a vida era frequentemente difícil, João Brito fornecia medicamentos a crédito, que as pessoas iam pagando quando podiam. «Já nessa altura levava medicamentos a casa das pessoas», revela Olga. O farmacêutico de Gontinhães, como se chamava Vila Praia de Âncora até 1924, quando recebeu a atual designação, também prestava cuidados de saúde e aplicava injeções. «Naquela altura fazia-se de tudo nas farmácias», relembra, acrescentando que também se recorda de ver o pai, Durval Brito, executar as mesmas tarefas.
 
​À esquerda, Durval Brito com a neta, filha de Olga. À direita, o fundador da farmácia, João José de Brito

Na sua botica, como foi conhecida até tarde, João Brito não se limitava a cuidar da saúde da comunidade. Republicano convicto e opositor ao Estado Novo, a farmácia era também um ponto de encontro para aqueles que se opunham à monarquia e, mais tarde, ao regime de Salazar. «O meu avô era muito ativo politicamente», afirma Olga Brito Rodrigues, «tanto que esteve preso pela PIDE durante dois anos».

Francisco Sampaio, ex-presidente da Região de Turismo do Alto Minho e grande defensor das tradições locais, escreveu em 2008, por ocasião da morte do amigo Durval Brito, que as tertúlias da farmácia deram origem a iniciativas cívicas, como o Clube Recreativo Ancorense, fundado em 1906, «onde pontificava o não menos histórico Grémio dos 21».

Texto de homenagem a Durval Brito, escrito pelo amigo Francisco Sampaio

Este Grémio – a que João Brito pertencia – desempenhou um papel importante na criação de instituições como a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Praia de Âncora, em 1917, e o Sindicato de Iniciativa (posteriormente Junta de Turismo), em 1923. «Está aqui (segundo penso) a génese do associativismo, que, desde esses tempos, vem marcando a sociedade civil e a cidadania da Vila Praia de Âncora, até hoje», considerava Francisco Sampaio, também já falecido.

João Brito dedicou-se tanto à farmácia que, segundo a sua neta, terá morrido ao balcão, em 1948. O filho, Durval Brito, assumiu o negócio, seguindo o mesmo caminho de dedicação. «A vida do meu pai era a farmácia. Não tinha férias, nunca ia passar um fim de semana fora. Nada, absolutamente nada. Por isso diziam que, como o pai, iria morrer ao balcão da farmácia», comenta Olga. De facto, Durval continuou a trabalhar até que a saúde o obrigou a afastar-se, pouco tempo antes de morrer, aos 86 anos.

À esquerda, Paulo Ferreira, atual proprietário da Farmácia Brito. À direita, Olga Rodrigues, que também trabalhou na farmácia fundada pelo avô

Paulo Ferreira, o atual proprietário, lembra-se bem da relação de respeito e camaradagem com Durval Brito. Quando comprou a Farmácia Moderna, há cerca de 25 anos, concorrente da Farmácia Brito, não perdeu tempo a apresentar-se. «Ele gostava muito de conversar comigo, e eu com ele», recordando que «era uma pessoa prestigiada na vila». Davam-se tão bem que, quando Paulo Ferreira ia de férias, era Durval quem «fazia a substituição do diretor-técnico» da Farmácia Moderna, o que na altura era permitido. «Ia mesmo perguntar se estava tudo bem, se era necessária alguma coisa».

Durval teria cerca de 25 anos quando o seu pai, João José de Brito, morreu. Embora formado em Magistério Primário e já a dar aulas, foi a necessidade que o levou a tirar o curso de Farmácia e assumir o negócio da família. Herdou não apenas o ofício, mas também a generosidade – «sempre ajudou quem lhe pedisse», continuando a tradição de anfitrião das tertúlias contra o Estado Novo, embora o seu envolvimento político fosse «mais resguardado».

À esquerda, antigas etiquetas de substâncias vendidas na farmácia. À direita, o fresco que decora o teto da Farmácia Brito

Olga recorda o pai como uma pessoa bem-humorada, cheia de histórias para contar. «Depois das 19 horas, não havia movimento, principalmente no inverno. Então apareciam os amigos dele, hoje um, amanhã outro, outras vezes juntavam-se mais do que um, contavam histórias e anedotas. Muitas vezes dizia-me: “Agora tens de ir embora, que isto é conversa de gente grande. Não podes ouvir”».

Segundo Francisco Sampaio, Durval «era um conversador nato, sem pressas», que manteve a Farmácia Brito «como nos tempos do pai»: «Uma verdadeira tertúlia, fiel às tradições democráticas da família, sendo poiso obrigatório de republicanos e local de convergência contestatária ao regime caído em 25 de Abril». Após a Revolução, o ponto de reunião manteve-se, mas numa toada mais leve, dedicada às muitas histórias e anedotas contadas por Durval e companheiros.

Imagem da farmácia Brito antes de ter sido substituído o balcão e os candeeiros que o encimavam

Quando adquiriu a Farmácia Moderna, Paulo Ferreira nunca pensou vir a ser proprietário desta farmácia histórica. Hoje, a Farmácia Brito é também uma atração turística de Vila Praia de Âncora, que vê a população duplicar no verão. «Muitos turistas gostam tanto da farmácia que pedem para fotografá-la», conta. Os móveis antigos, o ferro forjado, os azulejos e os frascos azuis que contiveram os ingredientes da antiga farmacopeia encantam os visitantes. Em 130 anos, apenas um balcão e dois candeeiros foram retirados.

Manter uma farmácia assim exige esforço e cuidado. «Às vezes as pessoas não têm noção», observa Paulo Ferreira, referindo-se à atenção que é preciso ter no manuseamento destes objetos do passado. Apesar do uso constante, os móveis originais permanecem em ótimo estado. «Já não se fazem móveis assim», afirma, alertando que não são peças decorativas, mas de trabalho. «Abrimos várias vezes ao longo do dia estas janelas e olhe, olhe como estão!», exclama com orgulho.

 

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