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3 outubro 2024
Texto de Telma Rocheta | WL Partners Texto de Telma Rocheta | WL Partners Fotografia de Ricardo Castelo Fotografia de Ricardo Castelo Vídeo de Nuno Santos Vídeo de Nuno Santos

Uma autópsia que fez história

​​​​​​A Farmácia Moreno, com 220 anos, tem no currículo a realização da autópsia de um crime que agitou o país no século XIX.​

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Em 1890 um crime agitou Portugal, com repercussões maiores do que o ‘caso Maddie’, no entender de Ricardo Dinis-Oliveira, professor da Universidade do Porto que estuda o Crime da Rua das Flores há 17 anos. Os factos ocorreram a 200 metros de distância da Farmácia Moreno, mas a relação deste estabelecimento com o crime não se ficou pela proximidade.

A Farmácia Moreno, no Largo de São Domingos, no Porto, onde desemboca a Rua das Flores, abriu portas em 1804. Nessa altura, a cidade só tinha outra casa do género.


O proprietário da farmácia, Rodrigo Moreno, fez a autópsia de uma das vítimas do Crime da Rua das Flores, em 1890

Quando o crime aconteceu, a propriedade da loja, numa das zonas mais chiques da cidade, estava nas mãos de Rodrigo Moreno, farmacêutico e médico conceituado chamado a realizar a autópsia de uma das vítimas. Joaquim Ferreira da Silva, um professor de Química – que seria um dos fundadores da Universidade do Porto – procedeu à análise toxicológica.

Foi a primeira vez que uma autópsia foi apresentada como prova em tribunal, refere Ricardo Dinis-Oliveira: «Este caso fez história. Marcou o início da Universidade do Porto e levou à criação da Medicina Legal portuguesa». Inúmeras personalidades conhecidas da época envolveram-se no debate público que se seguiu – incluindo o escritor Camilo Castelo Branco –, os jornais nacionais e internacionais dedicaram-lhe mui- tas páginas e peritos estrangeiros prestaram depoimento. O desfecho levou à condenação de Vicente Urbino de Freitas, um dos médicos mais ilustres do Porto, a oito anos de prisão e 20 de degredo em Angola, pelo envenenamento de um cunhado e um sobrinho.


Na época, a cidade do Porto só tinha duas farmácias. A Moreno localizava-se numa das zonas mais chiques

Nos 134 anos que decorreram, muito mudou na história desta farmácia e do meio envolvente. Belisa Moreno, filha do último proprietário com este apelido, recorda que o pai vendeu a farmácia para se dedicar apenas ao laboratório de análises em Gaia. A jovem não tinha apetência pelas Ciências Farmacêuticas e o negócio na zona da Sé já não era atraente.    Ironicamente, a sua vida seria dedicada à Justiça, embora só recentemente tivesse sabido da ligação entre a Farmácia Moreno e o Crime da Rua das Flores, refere. Antiga funcionária judicial, agora reformada, Belisa ainda conserva um banco da antiga farmácia e uma memória distante de «visitar o senhor Luís», já muito idoso, e então único funcionário.

Em 1982, quando a farmácia passou para as mãos da família Almeida, «o negócio estava mal. No geral, havia muitas dívidas ao Estado», recorda João Almeida, atual proprietário e diretor técnico. O prédio estava arruinado, cheio de buracos na madeira de onde se viam os pisos de baixo, não havia muito a preservar. No terceiro piso do edifício ainda se guarda uma divisória em madeira e vidro antiga, e um banco, mas pouco mais restava digno de nota para salvar.

«Encontrámos uma farmácia muito degradada, sem condições físicas, nem humanas, contrariamente à memória dos tempos de sucesso. A farmácia tinha tido um quadro muito qualificado, vários dos funcionários eram farmacêuticos, havia professores da Escola Médico Cirúrgica», refere. João Almeida localizou anúncios na imprensa do início do século XX em que a Farmácia Moreno se orgulhava de ter seis farmacêuticos. «Hoje uma farmácia média tem cerca de três. Era uma dimensão brutal para a altura e totalmente fora do comum», explica.

A área onde está inserida a Farmácia Moreno sofreu um destino semelhante, empobreceu. «Quando cá chegámos, toda a zona da Sé era muito complexa do ponto de vista socioeconómico», explica João Almeida. Mas, recorda o licenciado em Ciências Farmacêuticas, o pai pressentiu que seria um negócio com futuro, e «foi uma excelente aposta». Quando fizeram as obras, a fachada emblemática em ferro fundido foi pintada no azul que agora chama a atenção dos transeuntes, quase todos turistas. A peça terá sido colocada umas décadas após a abertura do estabelecimento, com assinatura da Fundição de Fradelos, fábrica que só começou a laborar em 1877, e acompanha o gosto da Belle Époque pelo ferro.

Ao mesmo tempo que a farmácia se reerguia, a zona envolvente foi mudando o seu carácter. Os prédios degradados tornaram-se alojamentos locais e hotéis, o comércio antigo e as pequenas fábricas – a produção da pasta medicinal Couto era neste largo – mudaram-se para longe. Hoje, os turistas enchem as ruas.


Fátima Pinto, frequentadora da farmácia desde sempre, salienta a confiança e cuidado nas explicações

Maria de Fátima Pinto, assistente social de profissão, é uma das poucas habitantes da freguesia de São Nicolau que não deixou a casa onde nasceu. «Se somos 400 residentes agora, é muito. Não devemos regressar ao passado, não era bom, as casas tinham péssimas condições. Contudo, a autenticidade está a perder-se», considera. E explica que há uma maneira de identificar os moradores antigos: é olhar para cima e ver onde há roupa às janelas. «Acho que a minha fotografia a estender roupa já passou por todo o mundo», conta.

Mas salienta um aspeto positivo: «A relação entre os residentes antigos e os novos é excelente». Frequentadora da Farmácia Moreno «desde sempre», Fátima Pinto sublinha a importância da «simpatia, confiança e o grande cuidado na explicação da medicação» por parte dos funcionários da farmácia na interação com a população residente: «pes​soas muito vulneráveis, com fracos recursos e uma escolaridade muito baixinha, que quase não conseguem ler uma receita e interpretar a prescrição».

O futuro das farmácias é «cada vez mais serem a porta de entrada no Serviço Nacional de Saúde». A Farmácia Moreno orgulha-se da equipa resultado do «esforço para atrair e reter profissionais competentes, motivados e qualificados em várias vertentes».


João Almeida, diretor técnico e atual proprietário, orgulha-se de «fazer a ponte entre passado e futuro»

João Almeida assume o desejo de fazer da sua farmácia uma ponte entre a história e o futuro. Em fase adiantada está a criação de um museu no primeiro andar do edifício, onde se contará o passado da farmácia com 220 anos, com o espólio que tem vindo a reunir.

Prova de que a história continua no presente, é o facto de ser a única farmácia portuguesa que ainda tem produtos seus registados para venda. «No início do século XX muitas farmácias eram representantes de produtos internacionais. Também era comum fazerem manipulados e terem os seus produtos próprios. Mas esta farmácia começou a produzir em larga escala». Ainda hoje são vendidos o Calicida Moreno e o laxante Doce Alívio, que deixaram de ser feitos na loja do Largo de São Domingos, e passaram para unidades industriais.

Lá fora os turistas posam em frente à fachada azul, testemunha da passagem do tempo.

 


220 anos em festa


Para assinalar tantos anos de vida a Farmácia Moreno convidou amigos, parceiros, utentes, representantes da Academia, da Associação Nacional das Farmácias e da Ordem dos Farmacêuticos para uma festa no Palácio do Freixo, no dia 8 de julho. As tradições da primeira Universidade de Farmácia do país estiveram representadas pela tuna feminina da Farmácia da Faculdade da Universidade do Porto (FFUP) - Sirigaitas e pelo Grupo de Fados da FFUP.
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