A Farmácia Senos, em Ílhavo, comemora 200 anos, tal como a Fábrica da Vista Alegre, a escassos quilómetros. Podia ser coincidência, mas não é. Quando em 1824, José Ferreira Pinto Basto funda a famosa fábrica portuguesa traz consigo um boticário, que inaugura a farmácia. É possível que o propósito do proprietário fosse dispor de um laboratório junto da fábrica para descobrir a ambicionada técnica de produzir a porcelana. «Eu interpreto assim. Um farmacêutico era um químico», diz Ana Senos, a atual proprietária dessa farmácia originária.
No espaço centenário localizado na zona histórica de Ílhavo, a Farmácia Senos concilia modernidade com tradição
Durante três gerações, a farmácia permaneceu na família Cunha, antes de passar para as mãos da avó de Ana Senos. Manuel Ferreira da Cunha, neto do fundador, e Eduarda Senos tinham personalidades muito diferentes: ele monárquico e conservador; ela republicana, progressista e feminista. Em comum tinham o amor à farmácia e à qualidade técnica da profissão.
Por não ter filhos e procurar quem o sucedesse na farmácia, ele convidou-a a exercer na sua farmácia, por bilhete postal, por volta de 1935. Ela acabara de licenciar-se na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto. «Ele queria alguém com competências técnicas e não eram muitos os que iam além dos três anos de curso que se completavam em Coimbra», explica Ana Senos. A família Senos não era, de resto, comum para a época. As três filhas de uma criada numa República de Estudantes de Coimbra conseguiram graus superiores: duas tornaram-se farmacêuticas e uma professora.
Eduarda foi a primeira mulher farmacêutica de Ílhavo
Eduarda foi a primeira mulher farmacêutica de Ílhavo. Com o senhor Cunha, o seu «grande mestre», aprendeu a valorizar a qualidade farmacêutica e juntou-lhe a atenção ao utente, «aquilo que distingue a farmácia comunitária, quando ainda nem se usaria o termo». Com esta fórmula conseguiu impor-se num mundo maioritariamente masculino: as restantes três farmácias de Ílhavo, todas na mesma rua, foram lideradas por homens. A relação de respeito com o homem que lhe abriu as portas da profissão manteve-se até ao fim e ela só alterou o nome da farmácia de Cunha para Senos nos anos 70, «já após a sua morte e depois de um tempo de luto».
«Ela sempre cuidou da função social da farmácia», explica Ana Senos. Antes da criação do Serviço Nacional de Saúde e numa terra com muitas carências económicas, que vivia sobretudo da pesca do bacalhau, a farmácia era um apoio fundamental. Eduarda vendia a crédito, porque o dinheiro das campanhas do bacalhau chegava a cada seis meses. Pedia dinheiro emprestado a uma amiga, esposa de um capitão de um navio bacalhoeiro, para comprar estreptomicina para os utentes com tuberculose. «Era uma Finanfarma caseira», ri-se Ana Senos, aludindo à sociedade financeira de crédito que hoje apoia as farmácias.
Foi uma mulher à frente do seu tempo: republicana, progressista e feminista
Ainda hoje ouve com prazer histórias sobre a avó, contadas com apreço por antigos trabalhadores da Fábrica da Vista Alegre, os principais clientes da farmácia. Vinham buscar medicamentos e, nos embrulhos, levavam informação sobre os comícios da campanha de Humberto Delgado, convocatórias para reuniões e anúncios de greves. Ao contrário dos marinheiros da pesca do bacalhau, muito pró-regime, na Fábrica da Vista Alegre havia um núcleo forte de oposição. «A minha avó fez a campanha toda do Humberto Delgado. Ia com eles aos comícios, no carro do meu avô», orgulha-se Ana Senos. Eduarda era antissalazarista, identificava-se com o Movimento Democrático Português / Comissão Democrática Eleitoral (MDP/CDE). O marido, professor de História no Porto, só vinha a casa nos fins de semana, desconhecia a atividade política da mulher. «Por força da ausência dos homens, Ílhavo era uma terra de matriarcado», atalha a farmacêutica.
Ana Senos, proprietária da Farmácia Senos, com a filha, Joana Santos, que seguiu os passos da mãe e da avó. A continuidade está assegurada
A visionária Eduarda começou cedo a arquitetar a continuidade da farmácia. E se os filhos não revelaram interesse, foi para a neta que se virou. «Ela achava que a farmácia era uma profissão feminina. Queria afirmar as mulheres na profissão». Ana passou a infância na farmácia, era a menina dos recados. «Não tive muita liberdade para pensar que havia mundo para além da farmácia». Ao fim de 44 anos de profissão, se voltasse atrás voltaria a ser farmacêutica, garante.
A Farmácia Senos tem 200 anos, mas sempre foi uma farmácia moderna. O robô foi instalado há dez anos, num móvel centenário
É uma «profissão de banda larga», que ajuda a resolver os problemas das pessoas. «O aconselhamento e o cuidado ao outro faz-nos chegar ao fim do dia realizados», diz a farmacêutica que gosta de pensar na casa que gere como «uma farmácia de família e gerações». A Farmácia Senos tem 200 anos, mas sempre foi uma farmácia moderna, nota Ana. No início do século XX, o antecessor era sócio de várias sociedades farmacêuticas europeias, a avó fez sempre questão de manter-se atualizada e «dar o melhor da arte». Ana dá continuidade à herança. No espaço centenário localizado na zona histórica de Ílhavo, na rua conhecida como Direita ou das Farmácias, concilia modernidade e tradição. «Há dez anos instalámos o nosso robô num móvel centenário, e os dois coabitam pacificamente».
Ana Senos gosta de pensar na casa que gere como «uma farmácia de família e gerações»
Para o futuro, deseja continuar a «cumprir as Boas Práticas de Farmácia» e dar resposta às necessidades da comunidade. «Queremos ser parte ativa da solução do grande problema da Saúde», garante Ana. Com ela, tem a filha, Joana Santos, que seguiu os passos da mãe e da avó, e é a diretora técnica da Farmácia do Cais, a outra farmácia da família, também em Ílhavo. A continuidade está assegurada.