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5 dezembro 2024
Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Fotografia de Eduardo Martins Fotografia de Eduardo Martins Vídeo de Nuno Santos Vídeo de Nuno Santos

A Pharmácia de Júlio José de Brito

​​​​​​​​​​A recordação de muitas décadas de história desta farmácia de Ponte de Lima, contada por quem nela passou parte da vida.​

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A fama precedia Júlio José de Brito quando, em 1908, fundou a Pharmácia Brito, em Ponte de Lima, a poucos metros da localização atual. «Tinha vindo de Covas, com uma aura brutal à volta dele por várias peripécias, mas sobretudo por ser o "João Semana" lá do sítio», conta Mário Leitão, farmacêutico com uma profunda ligação à farmácia, onde o pai trabalhou quase 50 anos.


A Pharmácia Brito em 1910, com o fundador à porta, e atualmente

Licenciado em Ciências Farmacêuticas em 1898, Júlio de Brito começou na farmácia de um irmão em Vila Praia de Âncora, tendo depois exercido a profissão em Covas, Vila Nova de Cerveira, a 20 km de Ponte de Lima. Cumprindo o triplo papel de farmacêutico, médico e veterinário, «corria a cavalo as "Argas" todas [as aldeias de Arga de Baixo, Arga de Cima e Arga de São João, na Serra d’Arga], terras a 10, 15 e talvez até 20 km de distância de Covas, onde estava a farmácia. Naquele tempo, era obra! Saía de manhã e vinha à noite», acrescenta Mário Leitão.

«Contava o meu pai que, por vezes, os aldeãos a quem o senhor Brito, como era conhecido, ia “postar a cura”, não o deixavam vir embora, pela hora avançada da noite e com medo dos lobos ou salteadores» que lhe pudessem aparecer ao caminho. A ligação era tão forte que, quando saiu de Covas, muitos deles passaram a fazer a distância até Ponte de Lima para continuar a ser atendidos por ele.


Perspetiva do rio Lima a partir do centro de Ponte de Lima

Já nos anos 1960, Mário Leitão, nascido em 1949, comprovou pessoalmente essa fidelidade. Com 16, 17 anos, conta que o fascinavam as «raparigas lindas que vinham à farmácia vestidas de camponesa» em dias de feira. Eram dias tão atarefados que Afonso Leitão, cujo pai, que era técnico de farmácia na Farmácia Brito, não o deixava ir à escola para dar uma ajuda no atendimento aos clientes.

«Oh! rapaz», explicou-lhe um dia o pai, perante o encantamento de Mário: «Estas meninas e estas senhoras são as filhas e netas de pessoas que eram curadas pelo Dr. Júlio José de Brito, quando andava feito "João Semana" pelas aldeias, anos a fio». Fazia partos, cirurgias a pernas, o que fosse necessário. «Era altamente conceituado».

Voltando um pouco atrás, não foi só pela vocação assistencial que Júlio de Brito ficou conhecido. Uma das estórias em que se viu envolvido ficou para a história, ainda em Covas. O regedor da freguesia, José Gonçalves, andava muito preocupado com um «malfeitor à solta». Para o capturar, pediu ajuda a Júlio de Brito, que acabou atingido a tiro pelo ladrão. Uma bala atravessou-lhe um pulmão e deixou-o a lutar pela vida. O farmacêutico era um conhecido ateu, que, na sua «religiosidade recém-descoberta, na iminência da morte, teria prometido à Senhora da Peneda [no Gerês] que, se não morresse do ferimento e ficasse bom, lá iria um dia fazer uma promessa».


À esquerda, Mário Leitão​. À direita, antigos móveis da Pharmácia Brito

Um ano antes tinha sido procurado por uma camponesa «pedindo um remédio para curar umas vacas», igualmente prometidas à Senhora da Peneda. O Dr. Brito deu um remédio para os animais, insistindo com a proprietária para as curar, mas «para as comer ou vender. Deixe lá a Santa, não pense nisso!”». Por coincidência, mal o farmacêutico teve alta, foi cumprir a promessa na festa da Senhora da Peneda e «cruzaram-se os dois no escadório [a escadaria que antecede a igreja]». Divertido, Mário Leitão imagina a cena: «o Dr. Júlio José de Brito, se calhar com uma vela na mão, e talvez vestido todo amortalhado [com uma túnica branca], como se fazia naquele tempo». As camponesas não podiam deixar de o reconhecer: «“Então o senhor doutor por aqui?” – “Pois é, quando elas apertam…”».


Uma balança antiga​

O pai de Mário Leitão, Afonso, foi acolhido na Pharmácia Brito quando tinha 13 anos. Órfão de pai, ferreiro, e não querendo seguir a mesma profissão, uns tios propuseram a Júlio de Brito que o tomasse como aprendiz. Começou em agosto de 1931 e ficou durante cinco décadas, progredindo na carreira. «Primeiro aprendiz, depois praticante, depois ajudante técnico». Cresceu, casou e teve filhos. Quando Júlio de Brito morreu, em meados da década de 1950, o seu filho, Eurípedes de Brito, decidiu fazer face às farmácias da concorrência que já ofereciam atendimento permanente e convidou Afonso para assegurar o serviço. Em troca, a família viveria gratuitamente na casa por cima do estabelecimento.


Júlio de Brito e o regedor de Covas

Mário tinha sete anos e rapidamente o pai o transformou em ajudante. «E ali fui percebendo de tudo», lembra. «Aprendi a atender receituário e, ao fim de algum tempo, nem o meu pai nem o senhor Capitão [outro funcionário] sequer olhavam para o receituário». O futuro farmacêutico adorava, mas nem tanto do laboratório onde também passou muitas horas da sua infância e adolescência. Lembra-se com precisão da enorme mesa onde eram preparados os medicamentos, à roda da qual andava de bicicleta quando o pai não estava. «O laboratório daquele tempo era "pesado"», lembra, «havia muitas preparações feitas no momento». Lembra-se de fazer pílulas, hóstias, pomadas, supositórios de glicerina- o que adorava, porque depois podia brincar com a massa de glicerina que sobrava.

Pesar e embalar substâncias como DDT ou borato de sódio, «aos 300 pacotes». Era um martírio. Nesses dias em que não ia à escola por causa do muito trabalho na farmácia, dia de feira quinzenal em Ponte de Lima, o estabelecimento «começava a trabalhar às 7h00, 7h30 da manhã, e só fechava lá para a meia-noite. E vinha gente de todas as aldeias». Vendiam os seus produtos e iam abastecer-se nas lojas da vila. Da farmácia levavam medicamentos para os humanos e os animais, tratamentos para a agricultura e até tinta para a roupa.


Bernardo Brito, bisneto do fundador e atual proprietário da farmácia​

Bernardo Brito, farmacêutico, bisneto do fundador, está agora à frente da Pharmácia que leva o seu nome. Nascido em Lisboa, rumou a Ponte de Lima, onde sempre passou férias, com a vontade de cuidar do património da família. Os clientes da farmácia, explica, «são os mesmos, embora às vezes se possa pensar que não são». Apesar de Ponte de Lima ser um centro urbano, está «muito dependente das suas freguesias», a que somam novos clientes fruto do forte turismo na região, nomeadamente os que fazem o Caminho de Santiago.

Nesta farmácia com 116 anos, a que deve muito da sua vida adulta, graças ao bisavô, sente-se de passagem. «Foi-me entregue e espero vir a entregá-la a outros», afirma. «É um bocadinho essa a ideia que tenho em relação aos negócios, mas mais ao património, porque eu olho para a farmácia como um património».

​Fotografias antigas cedidas por Mário Leitão.

 

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