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31 outubro 2024
Texto de Telma Rocheta | WL Partners Texto de Telma Rocheta | WL Partners Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de Duarte Almeida Vídeo de Duarte Almeida

Nova vida

​​​​​A Farmácia Sália, antiga Farmácia Rosado Pinto, sobreviveu a duas guerras mundiais, aos anos duros da década de 1980 em Setúbal e transformou-se. Em 1985, Sália Tiago preparou-a para o futuro.​

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Sália Tiago festeja todos os anos o dia 29 de abril. Em 1985 assinou nesse dia a escritura da Farmácia Rosado Pinto, na Praça de Bocage, em Setúbal. Também não esquece o dia seguinte: «Passei-o a pintar os armários e comprei uma tinta dourada, caríssima, para os rebordos». A mais antiga farmácia da cidade era escura e parada no tempo, e Sália Tiago, então com 28 anos, quis imprimir-lhe um novo ânimo.


Cadeira de António Rosado Pinto

Após a compra, o estabelecimento fundado em 1867 mudou de nome para Farmácia Sália, mas a nova proprietária preservou as memórias. Recuperou a velha cadeira do Dr. Rosado Pinto e guardou diversos objetos: a "água assassina perfumada", que ‘extingue por completo os piolhos’, as agulhas das seringas que eram fervidas e embrulhadas em algodão com álcool. O espólio inclui uma Farmacopeia, datada de 1935, «a "Bíblia" para fazer os manipulados».


Antigas agulhas de seringas



Rótulos de produtos que eram vendidos na farmácia

«A "Bíblia" dos manipulados», em edição de 1935​

Com o apoio de Joaquim Costa, antigo funcionário da Farmácia Rosado Pinto que se manteve a trabalhar com a nova proprietária, Sália Tiago recorda os tempos iniciais. A jovem farmacêutica chegava antes de abrir o expediente para fazer limpezas e, a seguir, ela e o fiel funcionário apresentavam-se ao balcão. «Foi muito difícil. Nos primeiros anos era só eu e o senhor Joaquim. E tinha 24 horas de serviço de cinco em cinco dias». Foram tempos duros, mas, como, «nasci no campo, estava preparada». A vida já lhe tinha apresentado outros desafios. Aos 18 anos, recém-casada e a frequentar o curso de Ciências Farmacêuticas, foi mãe de gémeas. Uma delas, Isabel, sucede agora à mãe na direção técnica da farmácia.

Aos poucos, o projeto de modernização foi-se cumprindo e Sália Tiago foi expandindo o negócio, que agora ocupa todo o prédio, num total de 990 m2. A farmacêutica lembra que participou, desde a primeira hora, na criação do Sifarma, o software usado pela maioria das farmácias. «Fui bastante revolucionária desde o início. Fomos uma das primeiras farmácias em Portugal a ser informatizada e a instalar um robô de dispensa de medicamentos».

Nos anos 80 do século XX, o distrito foi especialmente atingido pela pobreza, fome e agitação social, com o célebre bispo D. Manuel Martins a alertar para os problemas graves da península de Setúbal. Na farmácia da Praça de Bocage, Joaquim Costa, dirigente sindical, reunia-se para tratar de assuntos laborais, com a autorização da entidade patronal. Sália recorda que o cantor Zeca Afonso, autor da canção "Grândola, Vila Morena", «então já muito doente, passava os sábados de manhã aqui dentro enquanto a companheira fazia compras no mercado». Às tardes, o largo em frente era palco de comícios e, conta a farmacêutica, guardavam na farmácia os presentes que seriam oferecidos aos ora- dores. «Éramos uma comunidade», refere. «Os farmacêuticos têm um grande relevo social», acrescenta Joaquim Costa.

Tanto Joaquim como Sália Tiago, ele nascido em Lisboa, em 1948, ela no Pinhal Novo, em 1957, têm memórias de infância em Setúbal. Sália vinha para casa dos tios numa rua do centro para ir às feiras e à praia. A mãe insistia que as duas filhas deveriam levar injeções de vitaminas duas vezes ao ano, por isso iam à farmácia que um dia seria sua, onde o proprietário lhes administrava os injetáveis. «Lembro-me dos frascos no balcão com animais preservados e não gostava nada de vir aqui. É engraçado que, mais tarde, havia duas outras farmácias onde podia ir, mas só queria esta, na praça bonita, em frente à Câmara».
 

Um dos animais embalsamados que decoravam a farmácia

Já casado, Joaquim Costa mudou-se para Setúbal. A 2 de maio de 1974, em pleno período revolucionário e a seguir às comemorações históricas do Dia do Trabalhador, entrou nos quadros da Farmácia Rosado Pinto. A contrastar com o ambiente social efervescente, o interior era museológico: «Havia todo um aparato antigo, tínhamos um balcão de frente com animais embalsamados, um frasco grande com um feto. Encontrei apetrechos para preservação de ratinhos, tanques para as sanguessugas».

Nas primeiras impressões, o novo funcionário notou que o farmacêutico Rosado Pinto não atendia ao balcão, dirigia-se imediatamente para o escritório, e não usava bata. «Eu achava aquilo pouco democrático, parecia que faltava qualquer coisa», recorda, mas a convivência fê-lo ter grande estima por António Gabriel de Almeida Simal Rosado Pinto, que caracteriza como «excelente pessoa e bom patrão para todos os empregados». Tanto que, «desde que não prejudicasse o serviço», autorizou que o seu funcionário participasse na novela "Chuva na Areia", filmada em Tróia, onde fez de farmacêutico.

No geral, António Rosado Pinto era uma pessoa reservada, e Joaquim Costa lembra a ligação do patrão com o dono da vizinha loja do Henrique, ponto de encontro no comércio local, onde se vendiam cortes de fazendas e tecidos. «Ao Henrique Duarte de Sousa – como prova de boa vizinhança e amizade», o farmacêutico ofereceu uma brochura datada de 16-12-1967, a assinalar os 100 anos do estabelecimento. «A farmácia era um lugar de respeito onde os doentes iam procurar alívios para os seus males e escutavam com a máxima atenção todos os ensinamentos», considera o autor do panfleto. Contava António Rosado Pinto que em 1867, sete anos após Setúbal passar de vila a cidade, tinha nascido a Farmácia Rosa, que, até 1890, pertenceu a Francisco Maria Xavier da Rosa. Nesta data, Manuel Maria Pinto comprou o alvará mudando o nome para Farmácia Pinto. Em 1902, por doença do proprietário, António Pedro de Lima Rosado Pinto é convidado para administrar a farmácia, da qual tomará posse e a que dará os seus apelidos.


Sália Tiago e Joaquim Costa, à direita, e a «praça bonita» que a farmacêutica escolheu para se instalar, à esquerda

É de António Rosado Pinto a descrição do tempo em que o pai tomou conta da farmácia. «Os manipulados eram a vida da farmácia, o grande almofariz de bronze era de uso corrente, onde se preparavam os pós compostos, os electuários sólidos, os trociscos e as massas pilulares. Nas prateleiras estavam largas bilhas de grés para as águas destiladas, o hidromel e o hypoglós». Em todo o conjunto «predominava o caráter científico e o aspeto da gravidade». Aqui reunia-se «a melhor sociedade de Setúbal». E foram alguns destes ilustres que «formaram um grupo de ginástica sueca e um grupo musical, cujos ensaios eram efetuados na própria farmácia».

O período das duas guerras mundiais foi particularmente doloroso. Com a epidemia de gripe espanhola, em 1919, «trabalhava-se sem descanso» e como o público tinha receio de que os medicamentos não chegassem, «foi necessário requisitar agentes da PSP para manter a ordem». Na sequência da Segunda Guerra Mundial, foi criado um laboratório onde se produziam «especialmente os sais de quinina e iodetos» que tanto faltavam.

Algum do espólio da Farmácia Rosado Pinto foi doado ao Museu da Farmácia, em Lisboa. Entre as peças doadas encontra-se um frasco com uma cobra cuja etiqueta refere: «apanhada nesta casa em 3 de junho de 1966, proveniente de qualquer cabaz trazido por pessoa do campo», o que mostra o gosto museológico do proprietário e o quão longe estamos da cidade de hoje e da Farmácia Sália que renovou a herança.​

 

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