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6 março 2025
Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Fotografia de Ricardo Castelo Fotografia de Ricardo Castelo Vídeo de Nuno Santos Vídeo de Nuno Santos

Uma família de famacêuticos

​​​​​​A Farmácia Faria, na Póvoa de Varzim, é um espaço emblemático mesmo em frente aos Paços do Concelho. ​

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Em 1914, Avelino da Costa Faria tomou de trespasse «uma antiga e acreditada Pharmácia» localizada na Praça do Almada, na Póvoa de Varzim. Para compreender a sua antiguidade, é relevante notar que a expressão “antiga e acreditada” não foi utilizada por Avelino Faria, mas pelo seu predecessor Francisco Vieira Júnior quando ficou à frente do estabelecimento em 1890, 24 anos antes.


Edifício da farmácia na atualidade e nos anos 20 do século passado

Antes disso, a farmácia teria sido propriedade de Pedro Machado d’Oliveira, formado em Farmácia em 1854, «talvez o sucessor da botica de Marianna do Amor Divino, que terá comprado e mudado o nome, mas mantendo o sobrenome, como era habitual». A autora desta pesquisa, publicada no Boletim Cultural da Póvoa de Varzim por ocasião do centenário da Farmácia Faria, é Bernardete Faria, professora de História, casada com um dos netos de Avelino, Rui Faria.


Armário com frascos de preparados

Se a emblemática farmácia situada em frente aos Paços do Concelho tinha uma história, Avelino Faria não lhe ficava atrás. Sobrinho e afilhado de José Avelino da Costa Faria – também farmacêutico e fundador da primeira Farmácia Faria na Póvoa de Varzim, em 1887, ainda existente com outro nome – Avelino seguiu os passos do tio até à ilha de São Tomé onde este tinha aberto uma nova botica. De regresso a Portugal, estabelecer-se-ia em Fão, onde fundou a Farmácia Central, mas poucos meses após o início da I Guerra Mundial fixou-se na Póvoa de Varzim, onde permaneceu à frente da farmácia na Praça do Almada até ao fim da vida.


Rui Faria nasceu e viveu com os avós no edifício da farmácia

Cerca de trinta anos depois, no final da II Guerra Mundial, o neto, Rui Faria, foi viver com os avós para a casa (onde nascera) situada por cima da farmácia. Com o país em crise económica e a sofrer os efeitos de uma grave seca, «a vida não era fácil e o meu pai [Armando da Costa Faria, também licenciado em Farmácia] aceitou um prolongamento do serviço militar para ir para Angola», conta Rui, que já frequentava a escola primária e ficou na Póvoa para continuar os estudos. «Aqui vivi até aos 26 anos, quando casei». Quebrando a tradição familiar, escolheu medicina. «Acabámos por ser farmacêuticos a mais», diz, com um sorriso: «o tio do meu avô, o meu avô, o meu pai, o meu irmão, a minha filha, é muita gente em farmácia. Alguém tinha de derivar».

Com uma carreira médica especializada em neurologia e neurocirurgia, viria a ter um papel importante contra a “doença dos pezinhos”, a paramiloidose, uma patologia bastante prevalente na Póvoa de Varzim, de origem hereditária, progressiva e fatal se não for tratada. A doença era «ignorada, escondida, praticamente desconhecida» [foi diagnosticada apenas nos anos 50 do século passado, pelo neurologista Corino de Andrade], lembra o médico. «Andavam aí pessoas entrapadas, com os pés em ferida, muitas vezes em carrinhos de mão empurrados pelos filhos. Era uma desgraça completa».

Rui Faria fundou e é o diretor clínico do Centro de Estudos e Apoio à Paramiloidose (CEAP), na Póvoa de Varzim, criado nos anos 80 para divulgar a doença, e apoiar os doentes e as suas famílias. Antes de existir terapêutica, o transplante de fígado era a única forma de travar a progressão desta patologia. No Centro recuperaram «cerca de 300 transplantados oriundos de mais de 40 concelhos do país», recorda, com orgulho. Hoje, graças à medicação e à fecundação in vitro (que permite fazer uma seleção dos embriões saudáveis), «a paramiloidose aqui na Póvoa quase já não nos dá doentes». Pelo seu trabalho, não só contra a paramiloidose, mas no tratamento de outras patologias do foro neurológico, foi recentemente condecorado pelo Presidente da República com a Ordem de Mérito.

 


De volta à farmácia, Rui Faria guarda inúmeras recordações das duas décadas em que viveu com os avós. Da «tertúlia com pessoas ilustres aqui da Póvoa» à entrada da farmácia, ao fabrico de preparados farmacêuticos durante a adolescência – «fiz tanta coisa que, garanto, a minha filha nunca fez», brinca – à recordação dos natais. «Juntava-se aqui muita gente», relembra. A celebração acontecia «na farmácia, onde a família se reunia à volta da grande mesa com tampo de mármore, no laboratório, à qual se acrescentavam outras, formando «uma mesa comprida». «Eram natais muito cheios, muito divertidos, de que conservo boas memórias.»

Já ali não morava quando o avô morreu, em 1963. «O meu pai veio do Brasil [onde se tinha estabelecido] para tomar conta da farmácia», explica. Armando da Costa Faria seria uma inspiração para Paula, sua neta e filha de Rui, atualmente à frente da Farmácia Faria. «Nunca gostei de brincar com bonecas e talvez por isso me virasse para outras áreas. Aqui tinha o meu avô, via-o a fazer muitas pomadas e achava imensa piada, tentava imitá-lo», conta Paula. Representante da quarta geração na farmácia, lembra ainda o «carisma extraordinário» do avô, que tinha uma «atenção com o utente que ainda hoje tento imitar».


Bernardete Faria escreveu sobre a história da família e da farmácia

A nora, Bernardete, também trabalhou com o sogro, sendo responsável pela parte administrativa da farmácia durante o dia e passando para a noite as aulas que dava no liceu. Foi ela quem alargou o portefólio de produtos ali vendidos e promoveu o «lançamento de perfumes, o que era uma coisa nova na Póvoa», a que o sogro «achava imensa graça». Com o edifício da farmácia muito degradado, o estabelecimento foi transferido para uma porta ao lado, onde permaneceu por 17 anos. Bernardete também supervisionou as obras que restauraram a farmácia no seu lugar de origem, procurando recuperar material e mobiliário antigos. Apesar dos seus esforços, algumas peças, como a imponente escada em caracol, de madeira, não puderam ser salvas. «Era emblemática, pugnei muito para que não fosse abaixo, mas estava a desfazer-se».


Escada em caracol onde brincaram gerações de crianças


Paula Faria, bisneta de Avelino da Costa Faria, é uma farmacêutica realizada

Paula também «gostava de brincar na escada icónica». Aliás, «todos nós lá brincámos, até clientes, que ainda hoje dizem “Ah, quantas vezes eu rolei por essa escada abaixo no corrimão!”». Hoje, é uma farmacêutica realizada, que adora o seu trabalho. «Venho sempre trabalhar com agrado. Gosto desta paz, desta envolvência, destes móveis, da história que nos contam». Apesar de a clientela ser agora «mais exigente e muito mais impessoal», observa que «na farmácia há sempre uma ligação diferente que nos torna próximos». Para Paula Faria, os farmacêuticos são «os amigos, os confidentes», e isso é algo muito gratificante.

 

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