Há 127 anos que a Farmácia Carapeta & Irmão acompanha
gerações no Rossio Marquês de Pombal, em Estremoz, considerada a maior praça de
Portugal, zona onde decorre o mercado tradicional e uma conhecida feira de
antiguidades e velharias, rodeada por comércio e história. Fundada por João
Silveira Carapeta, que mais tarde se associaria ao irmão Wenceslau Silveira
Carapeta, a farmácia abriu portas a 1 de janeiro de 1898, num espaço que
anteriormente fora uma adega, segundo vestígios descobertos durante obras de remodelação
nos anos 90. A instalação não foi isenta de desafios: «Foi preciso baixar o
chão porque os móveis não cabiam», conta Maria Leopoldina Carapeta, antiga
diretora técnica. Esses mesmos móveis imponentes ainda podem ser vistos numa
sala anexa, junto de muitos objetos utilizados na prática diária da farmácia ao
longo de décadas.
Cliente da farmácia, a relação de Hernâni Matos com os
Carapeta é longa. Destas décadas em comum, considera que tem «um certo orgulho»
por a farmácia se ter mantido sempre na propriedade da família. Sobre o amigo
Vítor Carapeta, sobrinho-neto do fundador e marido de Maria Leopoldina, já
falecido, recorda-o como «uma pessoa muito respeitável, impecavelmente vestido,
exigente, às vezes um pouco austero», com quem sempre manteve uma boa relação.
«Respeitávamos as diferenças um do outro, mesmo no campo ideológico».
Paula Carapeta e Sá, atual diretora técnica e representante
da quarta geração da família (filha de Vítor e Maria Leopoldina), partilha o
esse mesmo sentimento de orgulho no legado familiar. Embora inicialmente
inclinada para a genética, a sucessão à frente deste património da família
impôs-se naturalmente. «Sou a mais nova de três irmãos, mas nem o meu irmão nem
a minha irmã quiseram seguir Ciências Farmacêuticas», conta, «e acabei por
tomar essa decisão». Hoje, sente que fez a escolha certa: «Valeu a pena. É um
legado, essa é a componente mais forte».


A farmácia tem-se modernizado e brevemente terá um robô para apoiar a dispensa de medicamentos
«Vim para aqui com oito dias de vida, passar as semanas
inteiras de serviço com os meus pais e fiquei com eles até ter um ou dois
aninhos». Para que a bebé não acordasse, abafavam a campainha da porta com
algodão. Da infância, lembra as brincadeiras com os irmãos e a transformação
das embalagens de medicamentos vazias em blocos de construção, bem como os
Natais passados na farmácia, sempre que calhava ser esta a estar de serviço.
«Vivemos muito, muito a farmácia».
A sua mãe, Maria Leopoldina, natural de Trás-os-Montes,
conheceu Vítor Carapeta no primeiro ano do curso na Universidade do Porto.
Casaram-se três anos depois e mudaram-se para Estremoz, dando continuidade ao
espaço fundado pelo tio-avô de Vítor e onde trabalhava o seu pai, como ajudante
técnico. Ficou 53 anos ao balcão, percurso que só a COVID-19 interrompeu. «Aqui
na farmácia, nessa altura, éramos eu, o meu marido e mais dois colaboradores.
Funcionávamos como uma família, já que os empregados sempre foram tratados como
tal», recorda. O marido, conta entre risos, preferia a parte científica e não
morria de amores pelo atendimento: «Eu até lhe agradecia, porque às vezes ele
até espantava os clientes». O perfil de Paula, pelo contrário, tranquiliza a
mãe: «Felizmente, ela tem um bocadinho do meu feitio e dá-se muito bem com as
pessoas mais velhas. Tem jeito para os velhotes».
Paulo Jorge Cóias ocupou durante 37 anos o posto de ajudante
técnico na Farmácia Carapeta & Irmão, até ter de se reformar por uma
questão de saúde. Ali entrou com apenas 16 anos: «era muito novinho e, talvez
por isso, os meus patrões traziam-me o lanchinho, que era sempre uma coisa
agradável», lembra. Dos seus anos ao balcão, Paulo Cóias também destaca a
importância de um bom atendimento. «Do ponto de vista psicológico, os
farmacêuticos ou técnicos de farmácia, por vezes, têm uma relação mais íntima
com os utentes do que o próprio médico», afirma. E lembra como isso faz a
diferença: «Ajudam a pessoa a sair melhor, com outra cara». Ainda que os
processos estejam hoje informatizados, considera que nem sempre vieram acelerar
o atendimento, não facilitando essa relação de proximidade. Em breve, a
farmácia contará com um robô que permitirá aceder aos medicamentos sem
abandonar o posto de trabalho, o que libertará mais tempo para o atendimento.


Hernâni Matos e Paulo Cóias são tratados como família na Farmácia Carapeta & Irmão.

Entre os muitos objetos curiosos que existem na Farmácia
Carapeta & Irmão, destaca-se uma máscara funerária de Camilo Castelo
Branco, usada em tempos como cofre. «Na altura não havia cofres e havia pouco
dinheiro», conta Maria Leopoldina. «Ao fim do dia levantávamos a máscara e
guardávamos lá dentro o que tínhamos». A ligação com o famoso escritor lisboeta
remonta ao fundador, João Silveira Carapeta, que trocava correspondência com
Camilo. «Temos todas as obras dele e encontrámos uma folha dentro de um livro
que pensamos ser um conto manuscrito pelo próprio Camilo Castelo Branco»,
revela.
Das suas cinco décadas de atividade na farmácia, só recorda
uma fase mais conturbada: «Tivemos alguns dissabores depois do 25 de Abril.
Davam pontapés nas portas, ameaçavam-nos porque estavam convencidos de que… não
era que fossemos ricos, pensavam era que não fossemos democratas». Recorda que
havia «uns que julgavam que éramos daquilo que eles eram, e outros que achavam
o contrário», mas nada que tivesse impedido a família Carapeta de continuar a
prestar o seu serviço à comunidade.


A farmácia está na mesma família há quatro gerações, sendo um pilar no apoio à população
«Fizemos sempre a nossa vida com democracia». E sempre
ajudaram quem mais precisava, pois «havia gente muito pobre naquela altura,
muito pobre». Arcos, uma aldeia a seis quilómetros de Estremoz, onde continua a
ir um funcionário três vezes por semana. «Lá nos Arcos havia famílias com
imensas dificuldades, que eu muitas vezes auxiliava pessoalmente, deixando-as
dar o que pudessem. E quando às vezes via mesmo que elas não podiam pagar, eu
contribuía». Quando essas pessoas iam ao posto e perguntavam: «"Mas quanto
devo?" eu respondia que já não deviam nada».
Em bem mais de um século de existência, a Farmácia Carapeta
& Irmão jamais deixou de resistir, mesmo em tempos mais tensos.
«Continuámos sempre, nunca houve problemas», remata Maria Leopoldina.