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25 março 2019
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de Pedro Martins Fotografia de Pedro Martins

Argozelo, meu amor

​​​​​​​​​Uma terra quase sem médico, quase sem correios, quase sem pessoas. Ao centro, a farmácia.

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Farmácia Ferreira - Argozelo

Em Argozelo, a melancolia espreita a cada esquina. Entre casas abandonadas e becos que deixam adivinhar prados verdes até se perder de vista, a cruz da Farmácia Ferreira brilha timidamente. Uma utente nos seus 90 anos atravessa a custo a porta do costume, com auxílio da bengala. No saquinho preto gasto traz uns grelos do seu campo para oferecer à farmacêutica Julieta.

«Eu não lhes peço nada», comenta sorridente a directora-técnica de 62 anos, «quando têm umas verduras a mais vêm cá trazer-me». É assim que os utentes lhe agradecem o serviço prestado ao longo destes 32 anos, que vai muito para além da dispensa de medicamentos. A população, maioritariamente pobre e envelhecida, não tem mais ninguém a quem recorrer.

Mas nem sempre foi assim.


Luís Cabral conta que, quando o multibanco não funciona, as pessoas têm de ir a Bragança levantar dinheiro

O utente Luís Cabral, de 71 anos, guarda com saudade as memórias de outra época. Quando chegou a Argozelo, com uns ternos 18 anos, trazia na mala o sonho de mudar de vida. O ano era 1966 e, como tantos outros jovens, Luís deixava o conforto da sua terra natal, em Viseu, para se juntar aos cerca de 160 trabalhadores das minas de volfrâmio.

Os tempos eram outros. Na pequena aldeia da freguesia de Vimioso, em Bragança, contavam-se mais de 2.000 habitantes e a economia estava em expansão. Pelas ruas havia pequenos negócios e grandes casas de famílias que ali se instalavam para trabalhar na agricultura, no curtume, na produção de amêndoa ou de cortiça e nas minas.

Porém, em 1985, a exploração de minério terminou. Os trabalhadores foram todos despedidos, à excepção de uma pequena equipa de manutenção que lá haveria de trabalhar até 1992, altura do fecho definitivo. Desempregados e sem perspectivas de futuro, muitos emigraram e, gradualmente, a aldeia foi perdendo vida. 



A farmácia abriu em 1987, num antigo posto de venda de medicamentos. Na altura, apesar de as consequências do encerramento da mina já se notarem, ainda se via jovens. As escolas estavam abertas, havia algum comércio local e o centro de saúde tinha dois médicos, com consultas quatro vezes por semana.

Luís constituiu família e por ali ficou. Em tempos, chegou a trabalhar na agricultura. Agora «as pernas e os braços já não querem trabalho». Mas não é disso que se queixa. «Tínhamos o banco, tiraram-nos. Em 2001, a aldeia passou a vila e ainda ficou pior. Queriam fazer isto, queriam fazer aquilo. E em vez de fazer, tiram-nos o que havia». O multibanco lá ficou, embora chegue a estar aos quatro e cinco dias sem dinheiro.

Com o passar dos anos, a população envelhece e o despovoamento aumenta. Mas Julieta Ferreira não se arrepende do dia em que decidiu abrir a farmácia em Argozelo.


​«Acho que somos mais úteis aqui do que na cidade», afirma a farmacêutica

«Acho que somos mais úteis aqui do que na cidade», explica. «Faz-me sentir bem saber que ajudo no que posso», desabafa, «e os utentes agradecem-me, voltando cá.» E mesmo quando vão às urgências à cidade, é ali que levantam os medicamentos.

A viver no andar por cima da farmácia, são muitas as vezes em que a farmacêutica atende os utentes de madrugada. «Um dia destes foi preciso um medicamento às quatro da manhã e a doutora abriu-nos a porta». O antigo carteiro da vila, Domingos Afonso, vive ali com a esposa e a única filha que ainda não emigrou. «O que temos de melhor é isto», chuta. «Os correios, para bem dizer, já nos tiraram. Se nos tiram a farmácia mais vale irmos para outro lado».

Aos 70 anos, Domingos não tem grandes dúvidas: «O que mais precisamos é de saúde». Porém, para os cerca de 700 habitantes de Argozelo, o acesso à saúde é quase um luxo. O médico de família está de baixa há um mês, por isso qualquer questão que não possa ser resolvida na farmácia exige uma viagem de 15 quilómetros até Vimioso ou do dobro da distância até Bragança. Com apenas dois autocarros por dia e sem veículo próprio, os idosos gastam entre 30 e 40 euros em táxi de cada vez que precisam de se deslocar.


«Temos de juntar forças para que a farmácia não feche», pede Manuel Oliveira

«É mau os poderes centrais não se interessarem mais por estas zonas, principalmente ao nível do centro de saúde e da farmácia, que têm de estar perto da população». O utente Manuel Oliveira fala sem rodeios. E conta que, mesmo antes do médico adoecer, o centro de saúde funcionava apenas um dia por semana. Devido à falta de resposta, o carpinteiro de 50 anos garante que há quem tenha de recorrer a serviços de enfermagem privada para conseguir ser tratado. «Por exemplo, para os meus pais, com 80 anos, se a farmácia fechasse era complicado», argumenta. E remata: «Temos de juntar forças para que isso não aconteça».

Sem médico de família e com os doentes crónicos a precisar da medicação, Julieta Ferreira faz o que pode para zelar pela saúde das pessoas. «Às vezes, empresto o medicamento e fico à espera da receita. Se tivessem de o pagar por completo, com certeza iriam interromper o tratamento, porque não teriam dinheiro suficiente». Mas a boa vontade nem sempre basta: «Há muitos medicamentos que faltam. Alguns temos de pedir ao laboratório e nem assim há garantias».

Aos 62 anos, a directora-técnica não pensa muito acerca do futuro. Só sabe que baixar os braços não é opção: «O pior é a falta de medicamentos, o resto vamos controlando». Habituada a gerir a farmácia sozinha, acolheu alguns farmacêuticos em estágio, mas todos optaram por se mudar para a cidade. «Não é fácil fixar as pessoas», lamenta, «a minha filha é farmacêutica e também não quis vir para aqui».



Numa vila em que nascem um ou dois bebés por ano, as dificuldades aumentam dia após dia. Com o banco fechado, os correios a funcionar a meio-tempo e o médico de família ausente, a farmácia é um ponto de apoio para tudo. «Diariamente tenho pessoas a pedir-me para escrever cartas aos familiares, ler a correspondência e as facturas», conta. Como o marido da farmacêutica trabalha em Vimioso, alguns utentes aproveitam a boleia e há até os que pedem para lhes tratar de recados.

«A gente aqui está triste. Muito, muito triste». Leonor Fernandes, de 67 anos, chegou a Argozelo aos 20 e por ali construiu a sua vida. Depois de ter perdido o marido, há dois anos, tomou conta do café que era dos dois. E é atrás do balcão que observa com pesar o isolamento da sua terra, nas ruas em que, a cada dia, passa menos gente.

A farmácia, assegura, é o bem mais precioso dos argozelenses. É lá que Leonor compra os medicamentos, mede a tensão e o colesterol. À hora que precisa, a porta abre-se e os problemas são resolvidos com todo o cuidado. Seja às duas da tarde ou à uma da manhã. «Nós não temos mais nada sem ser a farmácia. Fecha tanta coisa, sabe? Até já nos tiraram o banco. Se nos tiram a farmácia, tiram-nos tudo».


 

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