Farmácia Cabral - Praia da Vitória, Ilha Terceira
Poderia dizer-se, à primeira vista, que a Farmácia Cabral ocupa um lugar privilegiado: em frente ao edifício da Câmara Municipal da Praia da Vitória, na Praça Francisco Ornelas da Câmara, o espaço está no coração da pequena urbe da Terceira, onde a vida se adivinharia um pouco mais agitada. Só que a cidade mudou. Primeiro, e aos poucos, os serviços foram sendo deslocalizados para a periferia; depois, a população foi decrescendo em número – as famílias americanas que antes viviam na Base das Lajes deixaram de aterrar ali, naquela que é segunda ilha mais habitada dos Açores. Essa falta sente-se, hoje, nas ruas e na economia local.
Há quatro anos, quando comprou a farmácia, Berto Cabral, que sempre viveu na Praia da Vitória e que nunca equacionou sequer deixar a cidade, conhecia bem os obstáculos em que tropeçaria. Filho de comerciantes, sabia ainda que nos negócios não há fórmulas mágicas. Num lugar assim, o que há é uma condição fundamental: a fidelização dos clientes. Por isso, aceitou o risco e fez-se ao desafio – cortou nos gastos, alargou os serviços e apostou numa equipa jovem e mais habilitada. Não é isso, ainda assim, que faz com que Evaristo Teixeira visite, todas as semanas quase sem falhar, a Farmácia Cabral.
Evaristo Teixeira, 74 anos, será, como é bom de ver, um dos fregueses mais assíduos do espaço na Praça Francisco Ornelas da Câmara e, seguramente, um dos mais bem-dispostos. Se passa a porta, vem de mãos nos bolsos, sorriso traquina no rosto e com coisas para contar. Provavelmente, falará da sua caminhada matinal: dez quilómetros, todos os dias desde há sete anos, quando achou que era tempo de combater a preguiça a que as pernas e o coração se habituavam.
Evaristo Teixeira, 74 anos, não troca de barbeiro, de ourives e de farmácia por nada deste mundo
É um homem de hábitos: corta o cabelo no mesmo barbeiro, compra lembranças aos netos no mesmo ourives e vem à Farmácia Cabral desde sempre, mesmo antes de ser Farmácia Cabral. «O meu pai era muito amigo do dr. Eugénio, que morava aqui ao lado. Quando saíamos da casa dele, vínhamos aqui buscar os remédios. E continuei a vir, desde há 60 anos. Nunca fui maltratado, sou sempre bem recebido, sou amigo deles, brinco com eles», conta.
Os laços entre Evaristo Teixeira e a farmácia são antigos. O pai já vinha aqui
Às vezes, vem só dizer olá. Outras, vem buscar medicamentos para si, para a mulher e para a sogra de 93 anos que está acamada. Evaristo Teixeira teve melhor sorte: safou-se de um cancro na bexiga que o levou à sala de operações três vezes em quinze dias, mas que o deixou mais desperto para a vida. Agora, está bem e é o responsável pelas voltas da família.
Hoje, que tem mais tempo, demora-se nas memórias. Tal como Berto Cabral, Evaristo Teixeira nasceu e vive, ainda, no concelho da Praia da Vitória – nas Lajes, para ser mais preciso, junto à base militar onde trabalhou desde os 11 anos, até se reformar. Ele, tal como o farmacêutico, também viu a cidade mudar e entristecer um pouco com a saída dos americanos. Nas ruas já não se vê carros de matrícula estrangeira, nas casas já não há meninos loiros a correr à volta das saias das babysitters da ilha Terceira. Foram-se os militares e, com eles, o trabalho. Nalguns casos, foi-se o dinheiro para comprar até os medicamentos.
O proprietário da Farmácia Cabral está atento a esses problemas. Afinal, um farmacêutico nunca é só um farmacêutico: é um observador, é um gestor, mas também um amigo e um facilitador. «Ser farmacêutico, hoje, tem esse duplo lado: temos de saber de medicamentos, de doenças, e temos de ter um lado humano que hoje é indissociável da profissão», sublinha.
É da conjugação dessas perspectivas e de uma análise cuidada sobre o futuro das farmácias em Portugal e, sobretudo, nos Açores, que Berto Cabral vai liderando o trabalho no espaço da Praça Francisco Ornelas da Câmara, atento às particularidades da cidade onde vive, mas também às mudanças que se adivinham no mundo farmacêutico.
«O mais importante é garantirmos a adesão das pessoas à terapêutica. Por outro lado, temos de olhar para a sustentabilidade das farmácias, porque não me parece que se queira que elas fechem e, com isso, se mantenham os problemas, até porque a acessibilidade ao medicamento ficaria condicionada. É importante garantir que as pessoas têm a sua medicação e que as farmácias conseguem sobreviver. O caminho vai passar pelo incremento da oferta de serviços. Hoje, até o próprio espaço das farmácias está diferente: as áreas são maiores, quase todas têm um gabinete para receber o utente... Tudo isso decorre exactamente da necessidade de oferecer outros serviços às pessoas para, por um lado, fidelizar, e por outro, diminuir a dependência do medicamento. A farmácia tem de continuar a afirmar-se como um espaço de saúde, um espaço de prestação de cuidados de saúde», considera.
É por isso que, na Farmácia Cabral, para além da dispensa de medicamentos, se faz testes bioquímicos, de colesterol, de triglicéridos e de glicémia, consultas de nutrição e venda de suplementos alimentares. A farmácia mudou, é certo – adaptou-se às exigências da maioria dos clientes. Não de todos, necessariamente. A Evaristo Teixeira, por exemplo, basta-lhe que a farmácia se mantenha no mesmo lugar daquela cidade açoriana em mudança, de portas abertas, de sorriso pronto a receber a sua boa-disposição e as suas histórias sobre as caminhadas matinais.