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25 março 2019
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes e Pedro Loureiro Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes e Pedro Loureiro

A segunda vida de Odette

​​​​​​​​​​​​​​​​​​​Até final de Junho, entrada livre na exposição “Odette Ferreira - Construir Futuros”.

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O casaco de fazenda verde com grandes botões dourados, logo à entrada, evoca a presença de Odette Ferreira. O corpo pequeno, quase frágil, a contrastar com o estilo seguro da mulher consciente do impacto que causava nos outros. É uma das peças «mais marcantes e emblemáticas » da exposição com que o Museu da Farmácia homenageia a farmacêutica, diz a curadora Paula Basso.

A história deste casaco prova o carácter corajoso, arrojado e destemido da farmacêutica e cientista. Odette Ferreira usou-o na sua célebre viagem a Paris em Setembro de 1985. Os bolsos fundos permitiram-lhe transportar discretamente tubos com sangue contaminado com o vírus da sida, pela primeira vez isolado em Portugal. Aconchegou-os ao corpo para manter os 37° necessários à estabilidade das amostras. A investigação que desenvolveu no Instituto Pasteur culminou na identificação de um novo tipo de vírus da sida, o VIH-2. Odette Ferreira colocou Portugal no mapa da investigação científica sobre o vírus que atemorizou o mundo nos anos 80.

A exposição “Odette Ferreira - Construir Futuros” apresenta pela primeira vez ao público o diário científico da investigadora. As páginas manuscritas revelam os passos da análise laboratorial que realizou no Instituto Pasteur, entre os dias 16 e 26 de Setembro. «O valor científico e afectivo é incalculável. Ali ela registou, dia-a-dia, o processo científico que levou à descoberta do VIH-2», nota o director do museu, João Neto.



A vida longa e preenchida de Odette Ferreira, falecida aos 93 anos, é desvendada nas suas várias facetas.

Está lá a cientista, a farmacêutica e a professora universitária. No diário; nos tubos rotulados com as estirpes das bactérias que deram origem ao doutoramento sobre infecções hospitalares; e no microscópio de fluorescência, seu instrumento de trabalho durante muitos anos na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa.

Está lá também a mulher. Nos objectos pessoais, como o relógio ou a coleira do cão e amigo Afonso; nas fotografias em formato digital; nos testemunhos em vídeo dos outros e nas citações que revelam a forma como olhava o mundo. «Avanço sempre, sem temer arriscar, menos ainda perder». Este ensinamento marcou para sempre quem com ela conviveu. Os visitantes da exposição, convidados a deixar no fim um comentário escrito, expressam o mesmo sentimento: “Não desistir”, “Continuar sempre”, “Ir mais longe”.

Está lá a figura pública, reconhecida no país e internacionalmente, nas muitas insígnias que recebeu ao longo da vida. Também está lá a activista dos direitos humanos. Entre 1993 e 2000, Odette Ferreira saiu muitas vezes do seu gabinete de presidente da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida. Visitou toxicodependentes e prostitutas, alertando-os para a necessidade de trocarem seringas e usarem preservativo para se protegerem da doença. Insurgiu-se contra a «estupidez do medo». Não hesitou em abraçar e beijar seropositivos, mesmo quando foi ela própria ostracizada: chegaram a querer afastá-la do Ensino.

Esta fase de luta pela dignidade humana, quando combateu o contágio pelo vírus e os preconceitos, está patente nos primeiros cartazes informativos sobre o VIH, produzidos pela CNLCS, ou no primeiro kit utilizado nas farmácias para o Programa Troca de Seringas, a partir de 1993, que permitiu salvar milhares de vidas. Uma faca, um garfo, um chuveiro e medicamentos simbolizam o apoio recebido pelos portadores de VIH-sida sem apoio familiar, através do projecto Casa Amarela, que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa criou em 1989 e Odette Ferreira apoiou sem reservas.

«Era uma pessoa de afectos e sempre lutou contra os estigmas que a sociedade colocou nas pessoas infectadas pelo vírus», nota João Neto. A sua atitude contrastava com a da generalidade da sociedade portuguesa à época, desinformada e aterrorizada pelo medo de uma doença desconhecida.



A exposição permite aos visitantes sentir a marginalização a que eram sujeitos os doentes seropositivos. «Nem beijos, nem abraços, nem apertos de mão» e «Também se pode morrer de solidão» são frases desse tempo, recordadas por escrito ou em voz alta. «As pessoas tinham a ideia de que o vírus da sida se transmitia como se fosse a gripe. A professora explicou desde o início que isso era um erro e combateu veementemente a ideia de que os seropositivos não podiam ser tocados», recorda Paula Basso.

Odette Ferreira doou em vida o seu espólio ao Museu da Farmácia. Esta exposição, de resto, começou a ser programada com o seu conhecimento e colaboração. «Fico satisfeito se, ao perguntarmos a qualquer pessoa se sabe quem foi a professora e o que fez por todos nós, a resposta for sim», afirma João Neto, reconhecido.



O Presidente da República presidiu à cerimónia de inauguração da exposição, realizada no dia 21 de Fevereiro. No seu discurso, recordou «a mulher de coragem, com uma determinação que ia quase até à teimosia», e de uma «solidariedade sem limites», que «mesmo nos momentos mais solitários da sua investigação, estava a pensar, sentir e a trabalhar para os outros». Marcelo Rebelo de Sousa acredita que a sociedade portuguesa continua a beneficiar do seu exemplo e ensinamentos, aproveitando assim o «segundo ciclo da vida de Odette Ferreira».

 

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