Há momentos em que a força das palavras fica muito aquém da força das memórias e, talvez por isso, me seja tão difícil escrever estas linhas sobre a Professora Maria Odette Santos-Ferreira.
Conheci a Professora Maria Odette Santos-Ferreira quando eu era um jovem médico interno. Recordo-me da forma genuína como cuidava da preparação e da formação científica daqueles que tivemos o privilégio de conhecê-la. A sua honestidade, o seu entusiasmo e a sua forma carinhosa, mas firme, são memórias que guardo como bens preciosos. Havia um toque de magia na singularidade dos seus ensinamentos, na disponibilidade para ajudar, orientar e “espicaçar”, quando necessário, no pragmatismo dos seus conselhos e dos seus actos, e na sabedoria do seu gosto pela ciência e pela vida.
Como não recordar a odisseia científica, no início dos anos 80, em que a conjugação perfeita dos saberes de José Luís Champalimaud, enquanto clínico, e de Maria Odette Ferreira, enquanto microbiologista, conduziu ao isolamento do novo vírus da imunodeficiência humana (VIH), hoje designado VIH-2, colocando Portugal a par da investigação mundial no campo da retrovirologia? Numa época em que o conhecimento científico se desenrolava em silos hermeticamente fechados, o espírito aberto e a humildade perante o desconhecido foram aprendizagens que procuro preservar no meu quotidiano e das quais serei sempre devedor.
Como não recordar os ensinamentos que a Professora Maria Odette Ferreira me transmitiu sobre a exploração da dúvida metódica, quando os resultados dos testes de imunofluorescência, efectuados em soros colhidos em doentes que manifestavam persistentemente sintomas e sinais clínicos de imunodepressão, não eram positivos, mas também não se podia afirmar como sendo, inequivocamente, negativos?
Como não recordar a exigência sobre a disciplina e o rigor científico necessários para prosseguir, passo a passo, a investigação de uma doença desconhecida que motivava, invariavelmente, a morte dos nossos doentes?
Como não recordar um tempo em que os pequenos tubos com soros, ainda que bem acomodados, eram transportados no bolso da camisa e três tubos de sangue total seguiram no bolso do sobretudo, para assegurar que a temperatura se mantivesse próxima de 37 ºC, até chegar ao laboratório de referência onde seria posto em cultura?
Como não recordar a Professora Maria Odette Ferreira como uma mulher à frente do seu tempo? A sua determinação e compromisso, em prol da comunidade e da saúde pública, em domínios tão socialmente fracturantes, à data, como os comportamentos sexuais de risco ou o consumo de drogas por via injectável, testemunham a visão antecipada de uma realidade que marcou profundamente o nosso tempo. As suas decisões, nem sempre pacíficas ou consensuais, como o programa de troca de seringas e agulhas, revelaram-se determinantes para a melhoria do panorama sombrio da transmissão de VIH em pessoas consumidoras de drogas por via parentérica.
Como não recordar que a Professora Maria Odette Ferreira nos deixa, pelo exemplo da sua vida, uma definição da nossa noção de comunidade e as chaves para acarinhá-la e continuar a desenvolvê-la, neste tempo de mudança?
Como não recordar a magia de uma investigadora, de uma pedagoga, de uma amiga?
Até sempre.