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3 julho 2020
Texto de Paulo Martins, Sandra Costa, Rita Leça, Irina Fernandes e Vera Pimenta Texto de Paulo Martins, Sandra Costa, Rita Leça, Irina Fernandes e Vera Pimenta

A farmácia uniu a comunidade

​​​​​​​​​​​​​​​​​​Portugueses puderam ficar tranquilamente em casa.

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Ainda ninguém sabia como enfrentar a forasteira COVID-19, acrónimo de uma infecção tão desconhecida quanto insidiosa, e já as farmácias se equipavam. Máscaras, viseiras, placas de acrílico, postigos: para protegerem os utentes, protegeram-se a si próprias. Quais milícias, tomaram a primeira linha, no momento em que o coronavírus virou do avesso as nossas vidas. Com as armas de sempre: atenção e proximidade, verbais ou sob a forma de medicamento. Em alguns casos, sozinhas, se olharmos bem para o território, porque os serviços públicos zarparam. Muitos deles, anos antes do estado que fez de cada dia uma emergência.​


Alberto Lima e a esposa não saem de casa desde 12 de Março. Contam com os filhos para lhes trazer alimentos e com a Farmácia Central, de Escariz, para os medicamentos

 


Mal soaram os alarmes de confinamento, os médicos da extensão de saúde da aldeia de Souselo, vizinha do Douro, foram deslocados para Cinfães. Isolada em campo, a Farmácia Ferreira exortou a população a privilegiar o contacto através de redes sociais, e-mail ou telefone. O farmacêutico Ricardo Monteiro sentiu que tinha de fazer tudo para que as pessoas ficassem sossegadas em casa. Não deve ter sido outro o raciocínio do seu colega José Miguel Sousa, da Farmácia Central, de Escariz, Arouca, quando puxou da agenda para telefonar aos donos de pequenas fábricas de calçado, deixando-lhes uma só palavra: protejam-se. «A con​sciência da doença aqui na nossa zona deve-se muito à farmácia », diz. «Arranjamos sempre tempo para uma palavra de conforto».


A Farmácia Ferreira, de Souselo, não cobra pelas entregas domiciliárias. «É um apoio à comunidade, para que os utentes não tenham de sair de casa»​

 


Foi também conforto o que ofereceu a única luz acesa no Curral das Freiras. Toma o nome de Farmácia – do Vale – e nunca se apaga naquele lugar encantador das entranhas da Madeira, onde à míngua de turistas quase tudo fechou. Ana Ornelas descobriu-se, de repente, muito mais do que farmacêutica, tantas as solicitações que lhe chegaram. Há quem telefone antes de sair de casa, só para confirmar se o supermercado está aberto.


Curral das Freiras, na ilha da Madeira, perdeu turistas e quase todo o comércio fechou

O universo farmacêutico alimenta-se desta relação de confiança, quase cumplicidade, tanto mais necessária quanto mais se falar de infecções, de novos casos de COVID-19, de óbitos. «As pessoas seguem os conselhos, se vierem da farmácia», assegura o ex-emigrante Célio Rebolo, regressado à aldeia. Em meios pequenos, onde todos se (re) conhecem, ganha credibilidade a informação sobre a pandemia prestada por um farmacêutico. Mais sólido se torna o laço...

 


​A Farmácia Albuquerque, em Vinhais, ofereceu máscaras, álcool gel e luvas à GNR, bombeiros e centro de saúde. Por seu lado, a Farmácia Ferreira assegurou a medicação de parte dos 80 idosos da Associação de Solidariedade Social de Souselo. Nove farmácias de Marvila, em Lisboa, entregaram 500 máscaras e 50 litros de gel desinfectante a escolas da freguesia. Exemplos, entre tantos, da atitude de quem, por “estar lá”, não podia olhar para o lado. Mesmo quando o negócio abanou. Mesmo quando as farmácias tiveram de suspender consultas.


A Farmácia Baeta Rebelo, de Ferreira do Alentejo, montou uma “esplanada” no passeio​


Carlos Daniel é um dos alunos da Escola Secundária D. Dinis a quem as farmácias de Marvila ofereceram máscaras e gel desinfectante

As pulsões açambarcadoras da fase inicial do coronavírus obrigaram a soluções imaginativas. Jorge Santos montou na Farmácia São Brás, em São Brás de Alportel, uma estrutura em madeira capaz de individualizar o espaço de atendimento. Com a ajuda da Câmara de Pedrógão Grande e de um clube de BTT, Carlos Pires instalou uma espécie de esplanada no passeio junto à Farmácia Baeta Rebelo. Por essa altura, eclodiu um literal vê se te avias. Aviar, José Salgado aviava, porque lhe custava recusar. Contudo, o proprietário da farmácia com o seu nome, em Ferreira do Alentejo, não se deixou iludir no que toca à facturação: «Tudo o que se gastou agora, não se gasta depois».


Mesmo nas aldeias mais remotas do Alentejo, as pessoas receberam a medicação

 


Das falhas de abastecimento e da especulação sem travões, por parte de fornecedores de ocasião, brotou um par de ousadias de farmacêuticos, para não deixarem os clientes de “mãos a abanar”. Teresa Guapo, da Farmácia Albergriense, em Albergaria dos Doze, Pombal, chegou a ter de abastecer-se de máscaras em Anadia – 200 quilómetros mal medidos, ida e volta, que o lucro mal cobriu. «A minha maior aventura foi comprar por 3 euros um frasco de álcool que antes custava 47 cêntimos», confessa Cláudia Caroço, proprietária da Farmácia Nova, em São Marcos da Serra, Silves.


Na ilha do Faial, a farmacêutica Diva Bettencourt leva os medicamentos porta a porta

«Concor, Zarator, Cosopt, Tansulosina, Norvasc e Omeprazol, todos os dias». Só de ouvir, cansa, a lista de medicamentos do faialense António Silva. Diva Bettencourt, da Farmácia Lecoq, na Horta, sabe-a de cor. O seu dia-a-dia passou a incluir a distribuição ao domicílio, mas não são apenas fármacos o que os utentes esperam. Já lhe pediram para tratar da pensão de reforma ou para ir às Finanças pagar o selo do carro. Por vezes, é surpreendida: «Um dia, fui a casa de uma senhora que se queixava das pernas. Precisava de levar injecções para activar a circulação. Se eu não tivesse ido lá, ela teria sido internada, pois já estava a entrar numa flebite», relata.


A equipa da Farmácia Santiago Maior, na Aldeia de Pias, percorre dezenas de quilómetros numa Renault 4L para entregar medicamentos a quem precisa

A entrega de medicação em casa do utente, serviço que muitas farmácias nem sequer cobram, generalizou-se à medida que a pandemia cavalgou. Para Sílvia Bentes, não é novidade palmilhar sete aldeias do concelho de Alandroal. Qual cavalo alado, a Renault 4L branca está habituada ao esforço. «Dividimos as viagens um dia para cada aldeia e as pessoas já sabem», explica a directora-técnica da Farmácia Santiago Maior, na Aldeia de Pias.

Em plena crise sanitária, a meados de Março, a Direcção-Geral da Saúde muniu as farmácias de um instrumento indispensável ao desempenho das suas funções. Para reduzir o risco de contaminação ao tamanho que merece, a norma n.º 3/2020 viabilizou a cedência em ambulatório, sem custos acrescidos, de medicamentos antes só acessíveis em hospitais. Em pouco mais de um mês, a designada “Operação Luz Verde” beneficiou mais de 8.300 doentes.


Graças à Farmácia Luna, em São João da Talha, João Rocha, 70 anos, não teve de ir ao hospital levantar os medicamentos

 


Doente hepático desde os 18 anos, João Rocha recebeu a medicação na farmácia, a 100 metros de casa, em São João da Talha, em vez de ir ao Hospital Curry Cabral, em Lisboa. Estima Patrícia Luna, da farmácia da localidade, que doentes com limitações motoras, forçados a optar por um táxi, não pagariam menos de 30 euros em cada viagem. Mónica Descalço, de Beja, recorreu à Farmácia Silveira Suc. Poupou-se a 140 km de viagem até ao Centro Hospitalar de Setúbal, medidos em desgaste, gasolina, portagens e alimentação – além do dia de trabalho que perdia. Solta, por isso, o desejo: «Gostava que esta medida fosse mantida após a pandemia».

Não pode a directora-técnica da Farmácia Saúde, na Figueira da Foz, dar essa garantia. Assume outra: continuar a aceitar por e-mail encomendas que procura satisfazer no próprio dia. «Ter um farmacêutico sempre disponível é muito bom e os utentes compreendem isso, agora mais do que nunca. Ao mesmo tempo, o sistema promove a verdadeira adesão à terapêutica», afirma Anabela Mascarenhas.


Em Sendim, a Dona Adelaide fez uma peça de croché para retribuiur o carinho da farmacêutica Cândida Viana

Quando a ameaça cresceu, a comunidade uniu-se. E soube agradecer a quem ajudou a cerrar fileiras. O casal de septuagenários Olívia e António Silveira presenteou a farmacêutica Diva Bettencourt com limões e um ramo de flores. Cândida Viana, da Farmácia de Sendim, Miranda do Douro, recebeu de Dona Adelaide, 77 velas já apagadas, uma peça de croché. Sim, foi ela que fez. Cada um mostra gratidão à sua maneira.​