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2 fevereiro 2023
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de João Lopes Vídeo de João Lopes

«Vou morrer antes de envelhecer»

​​​No ano em que celebra 80 anos, Maria do Céu Guerra​ transborda energia.

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​O teatro e a televisão ocupam-lhe os dias inteiros. Onde vai buscar energia?
Faço exatamente o que gosto e nunca fui prisioneira de coisas que às vezes pesam, como dinheiro ou sucesso. Tenho fortificado a capacidade de resistir às contrariedades da vida, o que me ajuda a não desgastar as emoções. E tenho a noção de que é importante aproveitar a vida, enquanto temos saúde e alegria.

Percebeu cedo que o teatro era o que queria fazer? 
Também gostava de ser silvicultora, adoro árvores, e quando era nova queria trabalhar em algo que me deixasse as portas abertas para o mar. Mas cedo percebi que o teatro me dava tudo, porque me dá a fantasia.

Permite-lhe experienciar muitas vidas e sentimentos.
Sim. A peça “O Mal-Entendido” [de Albert Camus, que A Barraca apresentou no final de 2022] permitiu-me, pela primeira vez, experienciar intimamente o horror do mal. Que pulsão é essa que torna as pessoas prisioneiras do mal: é uma doença, tem a ver com a ética, a moral, as escolhas? As personagens, mãe e filha, matam para roubar. Já o fazem há muito tempo, talvez pudessem viver sem isso. Noutras peças de A Barraca, a abordagem era pela ironia: púnhamos uns bigodes de Hitler ao Salazar, para que que o público se pudesse rir das pretensões e violência interior daquela criatura.

 Maria do Céu Guerra tem na bagagem 60 anos de teatro, dos quais 47 na companhia de teatro A Barraca. Desde 2021, visita diariamente os portugueses na pele de Corcovada Brito, na telenovela "Festa é Festa"

O teatro continua a oferecer-lhe sensações novas?
Sim, e ainda vou encontrar mais!

Que peças ainda gostava de representar ou encenar?
Há muita coisa, mas não quero falar nisso. Tenho a superstição de não falar daquilo que mais me apetece fazer. Devemos guardar para nós o que mais desejamos.

Como está a correr a experiência da telenovela “Festa é Festa”, na TVI?
Lindamente, é um ambiente de trabalho muito agradável. A produção não é tirana em relação aos atores. Trabalha-se muito, mas há uma base de divertida e amável compreensão. Os autores têm-me dado bastante liberdade, aceitam e estimulam as sugestões que faço.
 A atriz cultiva a alegria e a leveza. «É a melhor caminhada que se pode fazer»

Também pelo respeito que conquistou, os prémios que ganhou...
Ai, eu não conto com isso, o respeito envelhece-nos! [risos]. Há dez anos que espero obras n'A Barraca, que nunca mais acontecem. Gostava que este fosse um teatro como há nas grandes cidades, velhinho, mas muito bem tratado, mimado. Queria ver resolvida uma série de questões, mesmo técnicas. Se eu pensasse nos prémios e no meu prestígio, sentia-me muito mais infeliz do que me sentindo uma pessoa normal, sem direito a reivindicar nada de especial.

Essa é a sua atitude na vida?
Sim, e sei que não é bom. Pelo facto de gostarem tanto do que fazem, os atores muitas vezes fecham os olhos a um certo mau-trato que recebem.

É a atriz que sonhou ser?
Nunca sonhei ser uma grande atriz. Sonhei fazer peças de que gostasse muito, com colegas com quem gostasse de trabalhar. Nunca pensei em repertório para mim. Quando A Barraca nasceu, em 1976, eu não tinha idade, experiência ou reconhecimento para escolher o repertório que queria fazer. Eu não sou uma atriz de repertório, sou uma pessoa de projetos, gosto de estar envolvida e ter um papel importante nos projetos em que me meto.

Às vezes, entristece-me pensar que não fiz os grandes papéis e, talvez, aprendido mais profundamente o feminino.


O desejo da atriz para A Barraca, a companhia que ajudou a criar: «Nunca desistas de ser o grupo que achas mesmo porreiro»

Fez outras coisas, como criar e gerir uma companhia de teatro como A Barraca.
Não fui eu sozinha, esta companhia nasceu como um grupo de gente, a vida é que me empurrou para lugares de maior destaque. Não quis ser protagonista, a minha vocação era construir. A Barraca foi um sonho que eu tive, com gente extraordinária como o Mário Viegas, o Santos Manuel, o Mário Alberto, o Augusto Boal, o Hélder Costa... Por vezes sobressalto-me com a ideia de que pode falhar, por falta de tempo, dinheiro ou porque a casa não está tão bonita como eu gostaria, mas o balanço é completamente positivo. É claro que às vezes penso: «Está a cumprir o que gostaríamos que fosse?». Há uma frase no “David Copperfield”, [de Charles Dickens], de que gosto muito: «Nunca desistas de ser o herói de ti próprio». E desejo, para A Barraca: nunca desistas de ser o grupo que achas mesmo porreiro.

Aos 47 anos, A Barraca ainda está em construção? 
Há muito por fazer e conseguir. Remodelar o espaço, ter condições técnicas para fazer espetáculos tecnologicamente mais avançados, insonorizar para que não se ouçam os elétricos. No São Luiz, o Mário Viegas parava as deixas para dizer: «Está a passar o 28!». Nós andamos a dizer há quase 50 anos: «Está a passar o 25». É muito cansativo.

Teve o privilégio de trabalhar com Mário Viegas, Natália Correia, até com Almada Negreiros.

Foi uma coisa maravilhosa. O teatro ensinou-me tudo. Adorava o Almada, era uma criatura cintilante. Tinha uma carga de emoção e afeto, mas não era bonzinho. Era ríspido, desarmante. Era muito bom e escrevia muito bem.
A atriz no cenário da peça “O Mal-Entendido”, de Albert Camus, que A Barraca apresentou no final de 2022. Na pele de uma assassina, experienciou, pela primeira vez, o horror do mal​

Foi autoritária quando teve de tomar A Barraca nas mãos. Hoje valoriza a alegria e a leveza.
Nos primeiros anos, tivemos alguns “amargos de boca” e foi preciso pôr couraças, perder alguns amigos, distanciarmo-nos de alguma maledicência e inveja. Isso endureceu-me um bocadinho. Afastou-me de coisas que eu achava eternas, como a camaradagem e a boa vivência com toda a gente.

Quando senti que o projeto era reconhecido, foi possível continuar a trabalhar, com o mesmo espírito, mas sem uma faca nos dentes, e então veio a leveza e a alegria.

São objetivos de vida?
São um exercício diário. É a melhor caminhada que se pode fazer. A alegria de encontrar os outros, recomeçar, fazer uma peça nova. Para mim, a alegria e a amizade são mais importantes do que o amor. Outra coisa extraordinária é a leveza de avançar sem dramatismo, assumindo as coisas boas e más, dando o nosso melhor, vendo se conseguimos. E normalmente conseguimos.
 Maria do Céu Guerra podia ter sido silvicultora ou trabalhado ligada ao mar, que adora. Escolheu o teatro, que lhe dá tudo. «Porque me dá a fantasia»

A saúde é uma preocupação?
Nunca foi, mas sempre fui cerimoniosa com o excesso, na alimentação, na bebida, nos convívios. Sou uma pessoa moderada, só tenho um vício: fumar. Deito-me tarde, gosto de ficar a ler ou tomar um copo com amigos, mas durmo lindamente. O meu dormir é um ato de vontade.

O que lhe traz equilíbrio emocional?
É aquilo a que mais aspiro, nem sempre consigo. Dá-me tranquilidade ficar em casa a pesquisar o que me falta saber sobre isto ou aquilo. Distraio-me muito com a vida que escolhi, os projetos em que vou trabalhar. Também gosto de fazer uma sesta, as preocupações desaparecem com o descanso. O sono, a água, essa coisa maravilhosa de tomar um copo de água antes de dormir e outro ao acordar, são coisas que me fazem bem.

 


Tem a “sua” farmácia?
Sim, e é uma das coisas que faz do meu um bairro especial. É uma farmácia extraordinária, tem cuidados com a população da zona. Se estou constipada, dizem: «Não venha, que vamos aí entregar!».

Como lida com o envelhecimento? A sua energia não condiz com a idade.
Há tantos livros na minha estante que ainda não consegui ler... Hei-de morrer a perguntar: «Porquê, para quê, para onde?». Tenho muita curiosidade. De tudo! Não consigo dormir antes de ver todos os programas de televisão que selecionei e escolher os do dia seguinte. Acho que é isso que faz com que esteja sempre pronta para recomeçar. Sinto-me muito mais aluna do que mestra.

Está longe do envelhecimento, é o que se pode concluir.
Vou morrer antes de envelhecer! [sorriso largo].

 



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