Esta Direção foi reconduzida recentemente, para um mandato assumidamente de continuidade. Como perspetivam o setor das farmácias no final do triénio 2024-2026?
Temos uma visão que queremos concretizar, em que defendemos um modelo de farmácia que acreditamos ser o que responde às necessidades atuais e futuras, não só da população, mas da sociedade como um todo e do próprio Serviço Nacional de Saúde (SNS). É um modelo muito suportado na qualificação dos profissionais e na capilaridade da distribuição pelo país, próximo e interventivo na jornada de saúde das pessoas. Mas, mais importante do que aquilo em que esta Direção acredita, é termos a capacidade de reconhecer que o futuro se faz em coconstrução, com muitas vozes, e que temos de ser influenciados por elas nesta visão.
E que vozes são essas?
As vozes das farmácias, mas igualmente das pessoas que vivem com doença, dos nossos parceiros, das outras instituições e profissionais de saúde que também prestam cuidados e, sobretudo, a voz do SNS, como representante máximo das necessidades da população. Todas têm de influenciar esta visão, porque é com elas que convivemos e é a elas que temos de dar respostas.
Essa não é uma condição sine qua non da evolução do setor rumo a uma maior integração e complementaridade no ecossistema da Saúde, como defendem?
Sem dúvida. A nossa realidade é hoje marcada, por um lado, pelas alterações demográficas e, por outro, por constrangimentos no SNS. Instâncias internacionais, como a Organização Mundial da Saúde, há já vários anos vêm alertando para riscos a curto prazo, como o da escassez de recursos humanos na área da saúde. Todos estes fatores conjugados têm levado à necessidade de se recentrar a organização dos sistemas de saúde nos cuidados primários.
A visão para as farmácias é clara, garante Ema Paulino: «Equipas altamente qualificadas e capazes de identificar as suas responsabilidades ao longo de toda a jornada de saúde das pessoas com quem interagem todos os dias»
Que é o território das farmácias...
Precisamente. É interessante verificar que os farmacêuticos comunitários, através da Federação Internacional Farmacêutica, foram convidados, em outubro de 2018, pela mesma OMS, a assinar a Declaração de Astana, que revisita e estabelece o fortalecimento das redes de cuidados de saúde primários.
Ou seja, as farmácias comunitárias fazem parte da visão da OMS, como porta de entrada nos sistemas de saúde e como uma solução mais eficiente de gestão e distribuição das necessidades das pessoas pelos diferentes níveis de cuidados. Compatibilizar o desafio dos recursos humanos com a necessidade de assegurar a distribuição das pessoas pelo nível de cuidados mais eficiente realça a importância da Farmácia Comunitária neste domínio, mais uma vez pelas suas características e distribuição, mas sobre- tudo pela elevada qualificação das equipas. E, no caso nacional, as estatísticas são verdadeiramente impressionantes: todos os dias interagimos nas nossas farmácias com 560.000 pessoas. É mais de 5% da população portuguesa. Em suma, temos aqui as maiores oportunidades, mas também as maiores responsabilidades em assumir essas interações como relevantes. Perguntava-me sobre a visão para as farmácias, e é esta: equipas altamente qualificadas e capazes de identificar as suas responsabilidades ao longo de toda a jornada de saúde das pessoas com quem interagem todos os dias.
Falava da dificuldade geral de captação de talento na Saúde. Uma das apostas desta Direção passa precisamente por criar condições que notabilizem a Farmácia Comunitária como opção de carreira. Como é que está a ser operacionalizada esta estratégia?
Temos uma política holística muito ativa neste campo, que se inicia no reconhecimento de que a atividade clínica é muito exigente, quer do ponto de vista emocional quer no que respeita a horários de trabalho. Trabalhar em saúde significa estar apto a responder à população 24 horas por dia, 365 dias por ano. Por isso, precisamos de profissionais muito resilientes, de enorme humanismo, e que recolham máxima satisfação do impacto positivo direto na modelação da qualidade de vida das pessoas. Estes perfis têm de ser identificados logo no ensino secundário, para que possam ser captados para as universidades, onde é depois necessário, além do currículo científico, promover uma socialização para o setor da Farmácia Comunitária. Quero com isto dizer que precisamos de um reforço das competências técnicas para a interação com as pessoas numa perspetiva clínica. Em todos estes pontos vamos continuar a desenvolver trabalho com a academia. Mas também com as farmácias, que assumem uma enorme responsabilidade na atração dos estudantes para o setor, no âmbito dos estágios curriculares.
Sendo uma política holística, que outras frentes estão a ser consideradas?
Desde logo, a introdução nas farmácias de uma perspetiva diferente de evolução na carreira, o que é um desafio em si mesmo.
Porquê?
Porque as farmácias são microempresas, não têm muitos estádios de progressão do ponto de vista funcional. Mas podem, e devem, ter muitos estádios de progressão a partir da diferenciação clínica, como acontece, aliás, com os outros profissionais de saúde. Foi esse o sinal que quisemos dar, inclusive na assinatura dos novos contratos coletivos de trabalho, em que foi estabelecida a progressão de carreira não apenas dependente do número de anos de prática profissional, mas também da ativação de serviços farmacêuticos e de intervenções profissionais na farmácia. Além disso, reforçámos a valorização do desenvolvimento de competências, introduzindo o conceito de acelerador de progressão aliado à formação contínua e especialização. Há também que capacitar os líderes das próprias farmácias para uma gestão de recursos humanos mais contemporânea, e muni-los de instrumentos que os apoiem nestas matérias. Por fim, estamos conscientes de que os níveis remuneratórios são muitas vezes determinantes na captação das pessoas, mas para que as farmácias possam ser mais competitivas, elas próprias têm de ser sustentáveis económica e financeiramente. Daí a nossa preocupação não ser apenas robustecer o modelo tradicional de remuneração alocado à dispensa, mas também a sua diferenciação, para que se gere e redistribua mais valor.

«Perspetivamos que se alargue o âmbito das vacinas que integram o Programa Nacional de Vacinação e em que somos chamados a intervir»
A campanha do SNS para a vacinação sazonal contra a gripe e a COVID-19 pode enquadrar-se nesse objetivo. Que leitura é hoje possível fazer acerca da integração da rede neste processo?
Foi um marco importante no caminho de integração com o SNS, porque se tratou, de facto, de um projeto colaborativo e de complementaridade entre os centros de saúde e as farmácias. É importante notar que o nosso envolvimento foi desde logo identificado como importante para o alcance dos objetivos desta campanha. Os inquéritos à população evidenciavam uma fadiga vacinal e hesitação quanto à vacinação contra a COVID-19, contexto pouco favorável ao atingimento das boas coberturas vacinais de que Portugal sempre se orgulhou. As farmácias possibilitavam que os cenários iniciais fossem contrariados e, realmente, atingimos novamente, para a população-alvo da OMS, uma cobertura acima de 70%, sendo que não restam dúvidas do significativo contributo – 70% das administrações – da rede para esse resultado. Além do aspeto quantitativo, foi elaborado um estudo que indicia que as pessoas ficaram muito satisfeitas com a forma como decorreu a campanha e com a possibilidade de também se poderem vacinar na sua farmácia nas mesmas condições que nos centros de saúde. Para as farmácias, esta campanha foi importante também do ponto de vista associativo e profissional. E hoje somos pioneiros, dado que, de um modo geral, também administramos as vacinas que dispensamos.
Há perspetivas de as farmácias integrarem as próximas campanhas em moldes idênticos aos deste ano?
Vários dos contactos que mantemos com o poder político indicam-nos que sim, que tendo em conta o sucesso desta iniciativa, seria impensável voltar atrás. Por isso, estamos muito confiantes de que se manterá. Inclusive perspetivamos que o âmbito das vacinas que integram o Programa Nacional de Vacinação (PNV) e em que somos chamados a intervir se alargue, particularmente as dirigidas a adultos, como a da difteria e a do tétano, onde a cobertura vacinal é mais baixa.
É também assumida por esta Direção a vontade de integrar as farmácias na estratégia nacional de testagem e rastreio de doenças. São esperadas novidades?
A lógica é a mesma da vacinação: aproveitar a rede de farmácias na sua capilaridade e qualificação, no apoio ao diagnóstico atempado de doenças, o que é, sem dúvida, uma mais-valia para a população. Isso mesmo ficou demonstrado na nossa integração na testagem à COVID-19, que permitiu uma clara diminuição das desigualdades de acesso, beneficiando em particular os mais vulneráveis: pessoas com dificuldades económicas, mais idosas, com mais carga de doença; pessoas que vivem em zonas menos densamente povoadas e que claramente tiveram de percorrer menos quilómetros para aceder a um local de testagem. Muitas, comprovadamente, não teriam feito testes se as farmácias não tivessem estado disponíveis para os realizar, o que teria resultado na perpetuação das cadeias de transmissão. Este mesmo raciocínio é o que deve ser aplicado a outras doenças para as quais já existem testes rápidos. Falamos das hepatites e do VIH, em que já há evidência de que as farmácias conseguem, inclusive, alcançar pessoas que, de outro modo, permaneceriam fora do sistema. Por tudo isto, e porque temos a competência instalada, temos a expectativa de novidades neste campo, assim como no desenvolvimento de um sistema de referenciação formal das pessoas.

As farmácias já resolvem grande parte das situações clínicas ligeiras que lhes são apresentadas diariamente. «Queremos ir mais além, resolver ainda mais situações»
Os testes rápidos de apoio à intervenção farmacêutica podem ser inseridos nesta mesma lógica?
Diria antes numa lógica semelhante. Há um mundo de testes que nos ajudam a diferenciar a intervenção na farmácia. Os testes rápidos para identificar se determinadas queixas estão associadas a uma infeção urinária são um exemplo, assim como o são os testes que determinam, perante queixas respiratórias, se a infeção instalada na orofaringe tem origem vírica ou bacteriana. Quando não há infeção ou, no caso da orofaringe, ela não é bacteriana, podemos recomendar Medicamentos Não Sujeitos a Receita Médica (MNSRM) direcionados aos sintomas e a situação fica resolvida na farmácia, carecendo, eventualmente, de acompanhamento. Mas se os testes rápidos indicarem diferente, temos de recomendar outro nível de cuidados às pessoas. Como não existe sequer uma via direta e formal de referenciação, têm de aguardar por uma consulta e muitas vezes acabam nas urgências, para um diagnóstico médico e prescrição de um antibacteriano que, só depois de voltarem à farmácia, podem começar a tomar. A medida inscrita no Orçamento do Estado para 2024 vai precisamente no sentido de que, nestas circunstâncias, o farmacêutico comunitário possa dispensar o antimicrobiano, mediante protocolos a estabelecer entre a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos, para que haja uma resposta imediata a estes casos. E das interações que já tivemos com o novo Governo e com esta equipa ministerial, podemos afirmar que existe a intenção de avançar com a mesma.
Os casos que descreve enquadram o programa de Abordagem nas Situações Clínicas Ligeiras, em curso na ANF. Como é que estas realidades se casam?
O que estamos a fazer é a preparar as farmácias para esses passos seguintes e a consolidar as competências naquilo que elas já podem fazer. As farmácias já resolvem grande parte das situações que lhes são apresentadas, desonerando as urgências hospitalares e as consultas médicas não programadas nos cuidados primários. Queremos ir mais além, resolver ainda mais situações e, nas que o justifiquem, queremos poder referenciar formalmente a pessoa ao próximo nível de cuidados, um pouco à imagem do que acontece hoje com a Linha SNS24.
E que modelo está preconizado para a remuneração das farmácias?
Estamos a trabalhar com o Ministério da Saúde no sentido de, por um lado, comparticipar alguns dos Medicamentos Não Sujeitos a Receita Médica de Dispensa Exclusiva em Farmácia (MNSRM-EF), aliviando essa carga às pessoas, facilitando-lhes o acesso, mas também de remunerar a intervenção farmacêutica, incluindo a realização de eventuais testes rápidos, para que as pessoas sintam, de facto, a mais-valia de ir à farmácia e ter a sua solicitação ali resolvida.
«É a existência destas farmácias, ao longo do país, que torna a rede tão apetecível para o sistema [de saúde]», reconhece Ema Paulino
O Governo britânico tem em marcha o programa Pharmacy First. Portugal não pode ambicionar operacionalizar um modelo idêntico?
Sem dúvida alguma. E com vantagens! Do ponto de vista da mensagem política e do desenho, o modelo contratualizado no Reino Unido é muito forte, e são muito evidentes os ganhos que traz para o sistema e para as pessoas. Acontece que nós, em Portugal, temos circunstâncias de contexto muito melhores para a sua implementação. As equipas das nossas farmácias são mais qualificadas, pelo que temos capacidade de absorver mais pessoas e de intervir em mais áreas. E a nossa legislação dos MNSRM é mais favorável, porque, ao contrário do Reino Unido, onde as pessoas podem aceder diretamente a estes medicamentos, cá, a chamada automedicação nas farmácias é intermediada por um profissional de saúde. Isso permite-nos identificar outras necessidades e aplicar os protocolos de atuação em que se baseia o Pharmacy First de um modo muito mais generalizado, otimizando a implementação do conceito e os seus resultados. Em suma, podemos aprender com o programa, sobretudo com o modelo de contratualização, adaptá-lo culturalmente, e melhorá-lo até!
Falemos de coesão territorial, que é sempre uma condição de base e, ao mesmo tempo, um objetivo nestes temas.
E onde temos de ter sempre em conta duas dimensões. A primeira é que é importante para os objetivos de Saúde Pública garantir que existem farmácias distribuídas pelo país, de acordo com a distribuição da própria população, e foi precisamente para garantir que a população tem acesso aos serviços de que necessita que o legislador regulamentou o setor. Não foi para o defender, embora isso aconteça. Contudo, sabemos que, neste momento, há farmácias em zonas em que são absolutamente fundamentais, porque constituem o único recurso de saúde, mas onde o número de habitantes é bastante inferior à média da capitação legislada. Acontece, e essa é a segunda dimensão, que manter esta coesão territorial é algo que interessa bastante ao próprio setor, porque é a existência destas farmácias, ao longo do país, que torna a rede tão apetecível para o sistema. São elas que suportam a regulamentação existente e que defende todas as outras, mesmo as localizadas nas zonas mais urbanas. Isto significa que temos de promover medidas no setor que protejam esta organização em rede, e atentem, particularmente, à necessidade de garantir a sustentabilidade económica e financeira das farmácias localizadas nestas zonas do país. A capilaridade da rede foi absolutamente fundamental na identificação da farmácia como parceiro ideal, por exemplo, para a vacinação, para a testagem contra a COVID-19 e, agora, para as situações clínicas ligeiras, assim como será para outros serviços em que estamos a trabalhar com o Ministério da Saúde, nomeadamente os rastreios a nível nacional na área do cancro colorretal.

A Direção da ANF privilegia medidas promotoras da equidade no acesso aos serviços em todo o território nacional. «A premissa de integração com o SNS é mesmo essa», afirma a presidente
Os vários projetos desenvolvidos em conjunto com os municípios, especialmente agora, que se fala da transferência de competências também na área da saúde, concorrem para esse objetivo? Qual é a importância destas parcerias?
Também. Mas Portugal é um país relativamente pequeno, pelo que privilegiamos medidas promotoras da equidade no acesso aos serviços em todo o território nacional. Aliás, a premissa de integração com o SNS é mesmo essa. Por exemplo, a dispensa de medicamentos hospitalares em proximidade nunca nos fez sentido passar por soluções regionais, porque a população de todo o país beneficia dessa política. Contudo, é inegável que temos algumas especificidades regionais, que originam necessidades diferentes, podendo passar pelo reforço de um serviço, o desenvolvimento de um projeto ou a implementação de uma intervenção. Tendo em conta o maior envolvimento dos municípios nas políticas de saúde, faz todo o sentido que possamos interagir com eles.
Vivemos num mundo onde são comuns expressões como algoritmo, inteligência artificial, conectividade. A transformação é hoje tão rápida, há tantas oportunidades novas, que lhe pergunto: como é que perspetiva a farmácia em 2036?
[risos] Perspetivar a farmácia a mais do que cinco anos é claramente um desafio! Mas já estamos a trabalhar nesse futuro, e a estudar, por exemplo, como é que a plataforma online das Farmácias Portuguesas poderá vir a interagir com dispositivos que muitos de nós já utilizamos no nosso dia a dia, para recolha de sinais vitais, parâmetros bioquímicos e até fisiológicos, que possam alimentar automaticamente o registo de saúde das pessoas na farmácia. Através de algoritmos, é possível identificar parâmetros fora dos intervalos pré-determinados em saúde, e gerar um alerta na farmácia para a ativação de um contacto pessoal. As potencialidades da criatividade humana são enormes, mas mais do que procurar sequer imaginá-las, o que eu quero ver em 2036 são farmácias proativas, capazes de identificar e agir sobre necessidades não percecionadas pela população. A única certeza que tenho é que até lá não nos podemos reservar a um papel reativo. Isso seria redutor. Temos de manter uma postura proativa, saber integrar novas ferramentas, estar interligados com os restantes membros das equipas de saúde, e sempre disponíveis para fazer parte das soluções, em contínua proximidade das pessoas. Já nos encontramos num patamar de excelência, reunimos muita confiança e muita satisfação com os serviços que prestamos, mas temos de ser exigentes e ambiciosos nas expectativas que geramos. Se nos mantivermos numa postura receosa, e ambicionarmos apenas robustecer o que já conhecemos, a nossa relevância para a população será erodida. Temos de ser os nossos próprios disruptores, para que outros não o sejam e nos ultrapassem.