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13 maio 2019
Texto de Irina Fernandes Texto de Irina Fernandes Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«Parti do zero»

​​​​​​​​​​Elisabete Jacinto foi a primeira mulher portuguesa a vencer uma prova automóvel.

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​REVISTA SAÚDA: Ganhou, ao volante do camião, o África Eco Race, prova todo-o-terreno que recria o antigo Rali Dakar. A que lhe soube este triunfo?
ELISABETE JACIENTO: É uma recompensa fabulosa pelo trabalho de todos estes anos. E quando nos sentimos recompensados ganhamos incentivo para alimentar todas as nossas outras lutas, não é?

Foi a primeira portuguesa, e piloto, a consegui-lo…
A minha meta era chegar ao topo da classificação geral. Cheguei à conclusão de que não há impossíveis, todos os sonhos se realizam desde que se trabalhe. A minha história é um exemplo disso: parti do zero, não sou uma supermulher, sou igual a tantas outras. A única coisa que me distinguiu foi acreditar e querer realizar o meu sonho.

Em criança já tinha o gosto por camiões e aventura?
De maneira nenhuma. Passava os dias a brincar com bonecas e tachos. Aprendi, aliás, a fazer bordados e tricô, talvez até demasiado cedo…

Demasiado cedo? 
Sim. [risos] Fazia muito sucesso junto dos adultos por ser tão pequenina e já ser capaz de manobrar as agulhas. Nunca tive qualquer comportamento mais masculino. Aliás, quando comecei a andar de mota tive imensas dificuldades, sentia-me insegura.


Elisabete Jacinto fez a primeira prova de competição aos 27 anos

Tinha, então, 24 anos…
Tirei a carta por volta dos 22 e só quando tinha 27 anos é que fiz a minha primeira prova de competição. Comecei a andar de mota dois ou três anos antes.

Apaixonou-se pelo desporto todo-o-terreno à “boleia” de uma revista…
Sim, é verdade. Andava a passear por Lisboa com o meu marido quando parámos num quiosque. O Jorge folheou uma revista de motas e disse-me: «Isto das motas é muito giro!». Ao ouvir-me concordar, lançou a ideia de irmos tirar a carta. E assim foi. Mais tarde, inscrevemo-nos num clube de todo-o-terreno… Houve um dia em que fomos passear de mota e lembro-me que, no final da experiência, olhámos um para o outro e dissemos: «Este é o hobby das nossas vidas!». Ficámos um ano “fechados” em casa, sem ir jantar fora, ao cinema ou passear, a juntar dinheiro para comprarmos as nossas próprias motas. 

Em dia de competição, o que não pode faltar-lhe?
Tento sempre que as noites sejam bem dormidas, apesar de dormirmos em tendas, no chão, com frio e barulho. Dentro do camião não podem faltar-me as luvas para conduzir e coisas para comer [risos] São muitas horas ao volante. A alimentação e a nutrição são muito importantes.

Cumpre algum ritual?
Para mim é muito importante que exista bom ambiente entre nós. Se sinto que algum deles está chateado ou amuado – todos temos os nossos dias – as coisas não me saem com tanta facilidade.


A piloto afirma que ser mulher é uma vantagem no terreno. «Traduz-se na capacidade de ser paciente, saber esperar pelo momento certo para ultrapassar»

A sensibilidade feminina tem sido um trunfo, no terreno?
Sim, sem dúvida. A sensibilidade traduz-se, por exemplo, na capacidade de ser paciente, saber esperar pelo momento certo para ultrapassar.

Compete num universo desportivo dominado por homens. Como lida com essa realidade?
Lido bem. Ao longo destes anos, tive sempre presente o objectivo de chegar à minha meta e, por isso, fui fingindo que não dava por algumas situações. Dei a volta, contornei o problema, tentei lidar com as coisas com alguma inteligência, o melhor que sabia.

O estigma é muito presente?
Existe e é bem evidente. E dou um exemplo: quando, em 1998, fiz o primeiro Dakar, havia duas ou três raparigas a competir de mota, outras duas a competir de automóvel e nenhuma de camião. Nesta última corrida, o África Eco Race, eu era a única a competir de camião, havia uma mulher a competir de mota e uma navegadora. Nada mudou ao longo destes anos todos. As coisas mantiveram-se muito iguais ao que sempre foram e isso deve fazer-nos reflectir.

Como lida com o risco inerente à modalidade? Já ficou "presa" à espera de ajuda no deserto, em Marrocos.
Nessas situações, penso que tenho de ser forte e capaz de resolver o problema. Nunca ninguém me vê a lamentar, a choramingar. Tento ao máximo ser eficaz.

Nunca sente medo?
O medo tem sido meu companheiro e aliado, ao longo destes anos. Tive de aprender a lidar com ele, e muitas vezes foi o sentimento de medo que impediu que me excedesse e assumisse situações de risco, com consequências negativas para mim.


Elisabete Jacinto faz preparação física todos os dias para aguentar o esforço das corridas

Cumpre algum plano para se manter em forma?
Faço preparação física ao longo do ano, todos os dias. Começo às 7h30 e termino às 9h30, à excepção do fim-de-semana.

E no que toca à alimentação?
Não sigo um plano alimentar muito rígido. Aposto numa alimentação mais vegetariana, embora continue a comer peixe. Ao longo da minha vida, fui abandonando o consumo de carne. 

Quem é a Elisabete Jacinto, para lá da faceta de piloto?
Sou uma mulher determinada, com grande capacidade de trabalho e espírito de sacrífico. Sou muito amiga dos meus amigos, gosto de conviver, prezo imenso a família e a relação com os outros. E dificilmente digo que não quando me pedem qualquer coisa [risos].


Nos tempos livres, a piloto faz mergulho e caminhadas

Tem hobbies?
Sim, faço mergulho recreativo com o meu marido. Enquanto no camião é ele quem me dá assistência, debaixo de água sou eu que o faço. O Jorge fotografa os peixinhos. Também gostamos de fazer caminhadas. Calçamos os ténis e lá vamos nós pelo país fora.

É mulher para usar batom e sapatos de salto alto?
Quando é necessário, só em algumas ocasiões! [risos] Mas não é de salto alto que me sinto bem e sou eficiente. O salto alto é apenas para usar num dia particular em que só a imagem é importante.

Não é, portanto, vaidosa?
Tenho vaidade, mas não tanto na imagem física. Valorizo outro tipo de imagem, como por exemplo aquilo que as pessoas pensam de mim, mais do que se estou ou não bem vestida, penteada ou maquilhada.

Foi professora de Geografia até 2003. Pensa voltar a exercer?
Não está fora de planos. Ensinar é uma actividade de que gosto muito. Costumo dizer que existem dois momentos na minha vida em que não dou pelo passar do tempo: andar de mota e dar aulas.

No futuro, deseja manter o pé no acelerador ou seguir novos caminhos?
Não é uma pergunta de resposta fácil. Se me perguntar se eu gostava de continuar a competir com o meu camião, respondo-lhe que sim. Foi o investimento de uma vida. Infelizmente, dependo de patrocínios para correr e, por essa razão, não sei se vou conseguir continuar a fazê-lo. Por outro lado, se me pergunta se tenho outros desafios que gostaria de iniciar, digo-lhe que sim. Por agora, sou tão apaixonada pelo todo-o-terreno que ainda não parei para pensar nisso.
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