Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
21 novembro 2017
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Alexandre Vaz & Direitos Reservados Fotografia de Alexandre Vaz & Direitos Reservados

«A farmácia foi para mim uma escola»

​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​As pessoas e o local que marcaram a vida de D. António Francisco de modo decisivo. ​​

Tags
​«A farmácia foi para mim, desde criança, uma escola», revelou D. António Francisco dos Santos em 2015, nas celebrações dos 40 anos da ANF. O bispo do Porto partilhou com os presentes a sua memória da Farmácia de Valverde, na freguesia de Tendais, concelho de Cinfães, onde ia buscar medicamentos e observar entusiasmado reacções químicas e tubos de ensaio coloridos no laboratório de manipulados. «Ali aprendi lições muito belas, de quem nos acolhia com muita delicadeza, de quem nos dava atenção».

Ele era o menino “Chiquinho de Mourelos”, vivo e simpático com toda a gente, como recorda Maria José Cardoso, antiga professora da terceira classe.

A farmácia encerrou há dezenas de anos. Para a descobrir é preciso aceder às recordações dos mais velhos e ao vale da serra de Montemuro, descer quase a pique a encosta íngreme e descortinar, por entre eucaliptos e castanheiros picantes de ouriços, o lugar de Valverde.

O farmacêutico, Joaquim Resende Rego, já não é vivo e poucas pessoas restam aqui. Um genro daquele é um dos últimos resistentes. José Joaquim Peixoto, 75 anos, nasceu e foi cá criado. Saiu para a tropa, esteve no Ultramar, mas regressou à terra para casar com a filha do farmacêutico. Leva-nos a ver uma antiga edificação, encavalitada na encosta. «Era aqui que o Senhor D. António vinha buscar a medicação. Ele e todos na Gralheira, que é como chamamos a esta serra». Fala ao mesmo tempo que recupera do bolso uma grande chave de ferro, com que, a custo, destranca a porta, perra e magoada dos bichos e do tempo. O pátio interno sobre o qual se abre está cercado por um muro e pequenas casas decrépitas, formando um redondel. Os poucos vidros que ainda se vê nas janelas estão baços e partidos. Vislumbra-se um caminho para uma área traseira de arvoredo, mas há erva por todo o lado. Ainda assim não é difícil perceber o encanto de outrora e terá sido isso que, recentemente, levou um casal holandês a comprar a propriedade.


Numa últíma homenagem, o povo de Valverde ergueu uma placa ao seu farmacêutico, Joaquim Rego, o Senhor Quinzinho

Maria José já nos havia pintado um retrato do sítio. Ali se cruzou várias vezes com o antigo aluno. Guarda com especial saudade os dias 13 de Maio e 13 de Outubro, quando a população dos vários povos se reunia para ouvir as missas de Fátima no rádio do d​r. Joaquim da farmácia, por todos tratado como Senhor Quinzinho. «Não era um homem alto, mas era forte, dando ares de muita personalidade. Quando falava, toda a gente lhe guardava respeito», assegura Alexandrina Resende Jorge, 81 anos, antiga caseira da família Rego. «Parece que o estou a ver, ao meu falecido sogro, aqui, à beira desta mesa de pedra», recorda José. Os dois apontam entusiasmados para o espaço da antiga farmácia. Era logo em frente, no pequeno edifício de dois andares, a entrada em baixo.

«Nascemos e fomos criados aqui». Em crianças, frequentavam a farmácia todos os dias. Alexandrina vinha buscar milho para levar para os moinhos que estavam à responsabilidade do pai, assim como as cabras. O padre Rego, irmão do farmacêutico, alimentava a leite de cabra os furões que tinha para caçar.

«Aí, colada à botica, era a casa do padre Rego, a chamada casa ronda». Ronda porque é redonda, um óbvio sublinhado por José, que comenta não terem ainda passado meia dúzia de dias desde que ali foi dar com uma colmeia de abelhas asiáticas. «Ui, destroem tudo!», sustenta Alexandrina, que continua: «À sua beira, o alambique, junto do qual o Senhor Quinzinho semeava as ervas. Curou-me de uma pneumonia, com mostarda! Eram outros tempos!». 


Alexandrina Jorge conta que o farmacêutico a salvou de uma pneumonia com ... mostarda. «Eram outros tempos!»

José assente com a cabeça. Confirma que a maioria dos medicamentos era o sogro quem os produzia. «Ui! Tantas ervas que angariávamos para os remédios! Semeava-as e recolhia-as. Ó​ dona Alexandrina, a senhora recorda-se daquele medicamento que ele nos dava para as lombrigas?». «Ai não! Se aquilo custava a tomar! A gente até chorava, de amargo que era. Olhe, ali era a casa do tear». Semeavam linho, com que faziam toalhas, e da linhaça, pisada no almofariz de bronze, extraíam o óleo para a farmácia.

«Quantas vezes as farmácias eram escola de aconselhamento, que nos ajudavam a encontrar solução para as dores e as dificuldades. Sem dispensar a mediação do médico, mas ir à farmácia era mais próximo, era mais rápido», relatava ainda o bispo do Porto.

Os anciãos de Valverde lembram-se bem da amizade entre o garoto António Francisco e o farmacêutico. A admiração do bispo pela farmácia não os surpreende. Alexandrina sublinha que D. António «foi sempre muito inteligente e observador». O Senhor Quinzinho «era atencioso e solidário». Fazia muitas vezes de médico, num tempo em que o médico estava na vila e a vila ficava a horas de distância. “Esquecia-se” amiúde de cobrar os serviços. «Os Rego eram senhores de cultura, com personalidade, mas muito amigos, ele e a esposa. Eram pessoas com quem se podia conversar um bocadinho».

D. António Francisco não se esqueceu do farmacêutico. O povo também não. Ergueu a Joaquim uma placa, em frente do casario arruinado. Mas é tudo o que resta: memórias. Memórias e abelhas asiáticas.



O SALTARIQUINHO DA PROFESSORA

Funga umas lágrimas que ameaçam soltar-se, projecta o olhar ao céu e mergulha na memória, até aos idos anos 50. Maria José Resende Almeida Cardoso recorda-se bem de António Francisco dos Santos, o Chiquinho de Mourelos. Inúmeras foram as vezes que o viu passar, pela mão da mãe, Donzelina, a caminho da missa, em Meridãos. «Era um rapazeco pequenino, muito querido, os olhinhos sempre vivos. Vê-lo era com a mãe, uma senhora bonita, mas sofrida pela morte do primeiro filhinho e a solidão do marido, emigrado no Brasil». Maria José, hoje com 83 anos, ainda tem parentesco com a família. Os pais eram primos e, «antigamente, o sangue importava». Foi, durante um ano, professora de Chiquinho na escola primária de Meridãos. À época, as crianças iniciavam a escola primária aos sete anos. «Quando veio para mim, teria uns nove anitos». Era a terceira classe. O Chiquinho era um garoto sempre atento, com boas notas e muito amigo dos colegas. A professora Maria José recorda, com ternura, um episódio premonitório. Todos os menios e meninas tinham de escrever uma redacção no caderno colectivo. O tema: a profissão que queriam seguir. «Ele escreveu que gostaria de ser padre, para – nestes termos certos – “ir pelo mundo fora pregar e ensinar”. Era engraçado, o meu saltariquinho!». 
Notícias relacionadas