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21 novembro 2017
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Alexandre Vaz & Direitos Reservados Fotografia de Alexandre Vaz & Direitos Reservados

O pastor de três gerações

​​​​​​​​​​​​​A cumplicidade de D. António Francisco com uma família de farmacêuticos. 

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​Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, segunda metade dos anos 50. Maria Manuela e António Santos Monteiro conhecem-se na associação de estudantes. Ele vinha de Coimbra, onde tinha feito o bacharelato, para ingressar no quarto ano. Ela era estudante do terceiro ano. Apaixonam-se, namoram durante dois anos e casam. António leva um ano de avanço. Quando termina o curso, segue para Lisboa, a fim de assumir a direcção-técnica dos Laboratórios OM. Ela permanece no Porto até 1958. 

Quando voltam a juntar-se, na capital, a vida é boa, mas o apelo do Norte constante. Planeiam um projecto seu, conjunto, mais perto do lugar a que chamam casa. Sonham com um laboratório de análises clínicas e, por isso, debruçam-se sobre o mapa, em busca de uma terra com hospital e sem recolha e tratamento de análises. 

Assim descobrem Lamego, onde há um hospital com mais de 20 médicos residentes e outros tantos vindos do Porto para dar consultas. Nenhum dos dois conhece a cidade, nenhum dos dois alguma vez lá esteve. A primeira visita fazem-na com o pai de António, militar, capitão do Exército, que fica verdadeiramente mal impressionado e desaconselha o jovem casal, habituado a vidas cosmopolitas no Porto e em Lisboa, a mudar-se para uma terra onde os porcos e as galinhas ainda andam, com naturalidade, nas ruas.

Porém, o casal não se deixa demover. Em Dezembro de 58 fundam, sozinhos, o pequeno Laboratório de Análises Clínicas Santos Monteiro. Maria Manuela, hoje com 83 anos, lembra-se das frieiras que ganhou nas mãos por não haver água quente e ter de lavar todo o material em água gelada. Ela, que sempre havia estado ao cuidado das muitas empregadas da casa do padrinho, no Porto, e nunca havia, sequer, lavado um prato. 

Anos mais tarde, o casal abriria, também em Lamego, a Farmácia Avenida. Esta seria sempre “território” de António. 

Depois de se instalar em Lamego, o casal envolve-se nos Cursos de Cristandade. Era um movimento de leigos trazido de Espanha, que ganhou muita força na região. Dedicaram-se a ele durante as três décadas seguintes. É no seio deste movimento que conhecem muitas famílias, muitos padres, muitos seminaristas. Entre eles, D. António Francisco. «Conheci-o no Seminário aqui de Lamego, onde ele era aluno. Eu já não me recordava, mas no outro dia uma amiga nossa passou por cá para me dizer que eu e o meu marido fomos padrinhos de Crisma do D. António».  

Chegam os filhos. Vingaram sete. Do mais velho ao mais novo, apenas nove anos de diferença. «Imagine ter um filho todos os anos! E trabalhava de manhã à noite! As minhas férias eram os quatro dias que passava de cama, na casa de saúde, quando nasciam», conta Maria Manuela Monteiro. 

A família alargada impressionou sempre muito D. António Francisco. «Dizia muitas vezes que ver os meus pais, na missa de Domingo, com os sete filhos pequeninos, foi coisa que o marcou para a vida». Quem o revela é Maria Manuela Santos Monteiro Borges Pires, uma das crianças, hoje senhora de 50 e alguns anos. Conheceu António Francisco toda a vida. «Foi meu catequista, na escola primária. Era um rapaz de 20 e tal anos. Já nessa altura o achava uma pessoa cativante. Aliás, todas as crianças gostavam dele». Dele e dos colegas, pessoas alegres como se exige a quem dinamiza escolas e anima missas.

António Francisco tornou-se numa pessoa da casa. Depois de ordenado sacerdote, na Catedral de Lamego, em 8 de dezembro de 1972, começou a fazer os casamentos e a baptizar as crianças da família.

O padre António Francisco e o farmacêutico António Monteiro desenvolveram um forte sentimento de admiração mútua. Para além do nome e da fé, partilhavam uma memória prodigiosa. «Conheciam toda a gente pelo nome próprio e de família, relacionavam as pessoas entre si e aos acontecimentos. Era algo extraordinário», recorda a viúva. O farmacêutico morreu em 1988, após doença prolongada. «D. António foi uma presença constante na fase final da vida, reconfortante», sublinham mãe e filha. 

Maria Manuela decide então entregar o laboratório de análises clínicas à filha homónima, acabada de se licenciar, com a missão de o modernizar. Para si, reserva a missão de assegurar a direcção-técnica da Farmácia Avenida. Foi uma decisão ousada, porque nunca até então tinha trabalhado em farmácia de oficina. Ainda por cima, foi um tempo da revolução tecnológica d informatização, revolução tecnológica em que as farmácias foram pioneiras em Portugal. «Lembro-me de D. António, de expressão assombrada, a olhar para mim quando recebi o primeiro computador. “Sabe mexer nisso?”, perguntou-me. Respondi que já tinha treino da máquina de escrever. Foi uma risota». 


Maria Manuela Pires, Maria Manuela Monteiro e Maria Teresa Monteiro, três farmacêuticas de Lamego que se dizem felizes por terem privado com D. António​​​

Um mês depois de ter celebrado 70 anos, Maria Manuela sofreu dois AVC. Quis o destino que os três meses de internamento no Hospital da Prelada fossem partilhados com Donzelina, mãe de D. António, internada pelos mesmos motivos. «A minha mãe esqueceu-se de tudo, de todos os nomes, só não se esqueceu das orações. Várias vezes dei com os dois, a minha mãe e D. António, a rezar». A mãe confirma. «Teve para comigo uma gentileza… Foi mais do que um filho! Todas as manhãs ia visitar a mãe, e todas as manhãs, por vezes cedinho, ainda estava deitada, me perguntava se tinha dormido bem, se havia passado bem a noite…». 

Donzelina não viria a recuperar das profundas sequelas. Passaria alguns anos acamada, em Lamego, acompanhada de pessoas amigas. O filho, entretanto nomeado bispo auxiliar de Braga, em Dezembro de 2004, e bispo de Aveiro dois anos depois, desdobrava-se em viagens para estar perto dela. «Todas as semanas vinha a Lamego, ficava dois ou três dias com a mãe. Por vezes vinha só por um pedacinho e ia no mesmo dia ou noite. Nunca deixou a mãe sozinha. Apesar de uma agenda louca, procurou sempre acompanhá-la até ao último momento. Acho isto uma lição para todos nós que, por vezes, tão perto uns dos outros, nos queixamos da falta de tempo para nos encontrarmos, para estarmos». Donzelina morreu em 2009.

Maria Manuela restabeleceu-se. A filha está convencida do importante contributo de D. António Francisco na rápida melhoria. «Ele insistia com ela para rezar, acompanhava-a. Ajudou-a, com as orações, a resgatar as outras palavras». Os dois AVC são hoje denunciados apenas por um discurso por vezes difícil. «Penso mais rápido do que consigo falar. É muito frustrante», confessa. Manteve a direcção-técnica da farmácia, mas afastou-se do atendimento. Assumiu o backoffice, apoiando-se nos farmacêuticos da sua equipa e agora na neta, Maria Teresa, farmacêutica de terceira geração.  


Maria Manuela Pires está convencida do importante contributo de D. António no rápido restabelecimento da mãe, que sofreu dois AVC quando fez 70 anos

Maria Teresa casou recentemente. Foi D. António quem celebrou a cerimónia. «Quis que fosse ele, porque era quem fazia mais sentido. Conhecia bem a minha família, era amigo de casa. Escolhemos a data do casamento em função da agenda dele», conta-nos. 

Nas reuniões de preparação de noivos, que D. António Francisco fez questão de conduzir, descobriram inesperadas ligações profundas também à família do noivo, Tiago. «O meu sogro é de Tendais, a freguesia de onde D. António era originário. Enquanto conversávamos, viemos a perceber que o padre Rego, que ele dizia ter sido o responsável por se ter tornado padre, era afinal um tio-avô do Tiago. E que a farmácia de que guardava tão bonitas recordações foi dos avós. Também isso nos unia, disse-nos ele… Escolhi-o por achar que era quem fazia mais sentido, e descobri todo um mundo que nos liga». 

Era assim com toda a gente. Todos descobriam ligações com ele, todos o tinham um pouco como seu. «Quando estava connosco, era como se mais nada importasse». E como conhecia muita gente, e nunca esquecia uma cara, um nome ou um acontecimento, isso tornava-o próximo, quase como um amigo íntimo, mesmo de quem tinha acabado de conhecer. 

Maria Manuela Pires é tia da jovem Maria Teresa. No dia em que esta casou, passavam exactamente 28 anos desde que ela própria se vestira de branco. «Sabe que ele mencionou a coincidência de data na homilia? Não foi ele que me casou. Esteve como convidado. Mas foi uma surpresa para mim que ele tivesse guardado esta memória e todos os pormenores que relatou, especialmente porque era um homem que esteve e celebrou centenas, se não milhares de casamentos! Era, de facto, prodigioso».  

As lágrimas não a largam. Desde que D. António Francisco morreu, a 11 de Setembro, que se sente fora da realidade. «É um bocado uma orfandade. Perdi o meu pai muito cedo e esta é uma sensação muito próxima disso. Ele é insubstituível. Vai fazer-me muita falta, e à vida de toda a gente, acredite», desabafa Maria Manuela Pires.
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