Sexta-feira, 20 de Março de 2020. O estado de emergência foi decretado há 24 horas. A farmacêutica-adjunta Marta Felgueiras, de 34 anos, saiu de casa às sete e pouco. Pareceu-lhe que o mundo se tinha posto de pernas para o ar e deixado cair as pessoas. As praças e avenidas desertas de Lisboa não eram as mesmas da feliz viagem de regresso da maternidade, que oito meses passados recorda intacta no coração.
Quando meteu a chave à porta da farmácia, o pó das obras na rua invadiu as vitrines e o chão branquinho, em calçada portuguesa, que as pessoas tanto elogiam no estabelecimento. Ainda no escuro, veio-lhe à cabeça o filho, pela primeira vez na vida como uma recordação.
– Pensei que estava a correr riscos. Mas foi só um medo inicial, depois passou.
A Farmácia Leitão Ribeiro, na Pontinha, ficou a semana toda de portas trancadas. O proprietário testou positivo no sábado, 14, ao novo coronavírus. Toda a equipa continua retida em casa, de quarentena. Bem, toda, toda, não. Porque ela é farmacêutica e vai abrir a farmácia sozinha.
Já não punha os pés no serviço há quase um ano. Aos sete meses de gravidez, o médico obrigou-a a meter baixa. O Rafael, primeiro filho, nasceu em 21 de Julho e ainda é amamentado. Marta ia começar a gozar férias, coladas à licença de parto, quando um sentimento de urgência lhe iluminou o espírito e incendiou o coração.
– As pessoas precisavam da farmácia e a farmácia precisava de mim.
Durante um fim-de-semana, Marta assegurou sozinha o funcionamento da farmácia
Mãe de primeira viagem, voltou a sentir-se farmacêutica à frente da televisão. As imagens de centenas de caixões em Itália, diluídas na curva de contágios portuguesa, forçaram-na a despertar do pesadelo com a consciência profissional.
– Não podia continuar a ver as notícias sem fazer nada, sentia-me inútil.
Pensou muito e pensou rápido. Expôs ao marido o seu ousado plano de abrir a farmácia sozinha. Pegou no telemóvel e fez a mesma pergunta à mãe. De ambos obteve as bênçãos que esperava.
– Se podes fazer alguma coisa, faz.
Atendeu sozinha, ao postigo, filas intermináveis de pessoas
A sua primeira tarefa foi de balde e esfregão, a devolver o asseio ao serviço. Depois agarrou-se ao desinfectante, até se sentir segura da assepsia própria de uma farmácia. Às nove da manhã, em ponto, de máscara e luvas cirúrgicas, abriu o postigo e começou a atender uma fila de clientes incessante, ininterrupta, infinita.
A directora-técnica, Ana Pirraça, 41 anos, nunca a deixou sentir-se sozinha. Esteve sempre a apoiá-la ao telefone e ao computador, a partir de casa. Também ela estava a viver os dias mais angustiantes da sua vida. É uma doente de risco, devido a uma hipertensão diagnosticada há quatro anos. Três dias antes do proprietário testar positivo, esteve com ele noite dentro no interior da farmácia, a afixar cintas e cartazes, para as pessoas guardarem distância higiénica umas das outras. Já devia estar doente, porque se queixou de dores de garganta.
No domingo, quando ele telefonou a dar a má notícia, Ana esforçou-se por lhe passar uma mensagem de segurança e tranquilidade. Assim que desligou a chamada, um nó sufocante apertou-lhe a garganta. Sentiu que era provável estar infectada e que, se assim fosse, a maldita pneumonia fulminante era um desenvolvimento possível. Vieram-lhe à cabeça os filhos, de nove e 12 anos. Deixara-os em casa de familiares no Alentejo, precisamente para os proteger de uma infecção que pudesse contrair a trabalhar. No pior cenário, pensou que poderia não os voltar a ver. O nó na garganta mergulhou fundo e desatou a correr-lhe no coração.
«Não podíamos deixar a equipa sem materiais de protecção», justifica Ana Pirraça
Sensível como nunca, a iniciativa de Marta Felgueiras deixou-a profundamente comovida. E também a encheu de uma força descomunal para engolir o medo e chefiar a equipa no pior momento.
– Só a doença me pode tirar da farmácia, porque é aqui que eu gosto de estar.
A directora-técnica, Ana Pirraça, doente de risco, passou os 14 dias de quarentena em teletrabalho, a partir de casa
Ana Pirraça dissolveu em teletrabalho, na casa vazia dos filhos, a angústia dos arrastados 14 dias de quarentena. Chamou a si as encomendas e a relação com os fornecedores. Assistiu, com indignação e pasmo, à subida em flecha dos preços propostos às farmácias, por parte de fornecedores de ocasião, para a aquisição de equipamentos de protecção individual. Mandou diluir a 70%, segundo as normas da farmacopeia, as garrafas de álcool a 96% que tinha de reserva. E não olhou a custos para garantir luvas e máscaras.
– Comprei a valores absurdos e especulativos, mas nunca deixámos de ter esse material para salvaguarda da equipa.
«Comprei luvas e máscaras a preços especulativos», lamenta a directora-técnica da Farmácia Leitão Ribeiro, da Pontinha, Lisboa
O que mais impressiona nas duas farmacêuticas é a modéstia própria, proporcional à admiração mútua.
– A dra. Marta foi uma guerreira, teve um acto digno de louvor.
– A minha história, comparada com a da dra. Ana, não tem nada de especial. Ela é que está sem poder dar um beijo e um abraço aos filhos, eu não.
A Farmácia Leitão Ribeiro venceu o novo coronavírus. Aqui, o inimigo só forjou irmãs de armas.