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9 outubro 2020
Texto de Nuno Esteves Texto de Nuno Esteves Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Pele debaixo de olho

​​​Farmácia produziu medicamentos para responder a um surto de sarna​.​​​​​

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​Farmácia Pacheco - Olhão

Antes da pandemia, ouvia-se falar francês nas ruas da Baixa de Olhão, junto aos mercados. O turismo cresceu nos últimos anos e agora os franceses ultrapassaram os britânicos e os povos do Norte da Europa. Nesta zona do Algarve, o turismo já não era sazonal, contam os habitantes da cidade piscatória a dez quilómetros de Faro, entre a serra do Caldeirão e a ilha da Culatra.

É no centro urbano que os olhanenses encontram, desde 2011, a moderna e espaçosa Farmácia Pacheco. Referência na produção de manipulados – medicamentos preparados nas farmácias segundo fórmulas descritas em compêndios e receitas médicas – é por esta via e pela qualidade no serviço que se quer diferenciar. Além dos vizinhos do bairro, muitos já amigos, chegam estrangeiros que compraram casa na região. A influência italiana foi decisiva na pujança que a cidade tinha há um século, quando havia mais de 40 fábricas de conservas de peixe. Hoje restam duas.


«Cresci numa farmácia», conta José Luís Segundo, farmacêutico de terceira geração

«Aqui ainda se vive do mar e da ria», diz José Luís Segundo, director-técnico, nascido em Lisboa há 45 anos. É o mais velho de três irmãos, terceira geração de farmacêuticos. O avô, Joaquim Pacheco, licenciou-se em 1943 e adquiriu logo a farmácia. O pai, José Mendes, foi oficial do Exército e, já contados 40 anos de vida, também decidiu tirar o curso de Ciências Farmacêuticas. Quase a chegar às oito décadas, o pai de José Luís ainda administra três farmácias familiares. «Cresci dentro de uma, na ilha da Fuseta», conta José Luís.

A produção de medicamentos na Farmácia Pacheco vem desde o tempo do avô Joaquim. Nessa época, era comum as farmácias prepararem fármacos para necessidades específicas, por não haver alternativa no mercado.  Passados tantos anos, essa prática profissional está bem viva.


«Ponho a pomada feita na farmácia e passa-me logo a comichão», conta Vitorino Baganha, 88 anos, vítima da psoríase desde há 15 anos

Que o diga Vitorino Santos Baganha. Um dia o médico disse-lhe que tinha psoríase, doença de pele crónica e não contagiosa. Não sabia o que era, mas conhecia de cor a vermelhidão e a comichão que sentia pelo corpo, que tanto o incomodavam.

Foi-lhe receitado um manipulado que combina ureia, um creme corticóide e um creme gordo. Percorre de carro as centenas de metros que separam o Centro de Saúde de Olhão da Farmácia Pacheco, onde lhe disseram que encontraria o medicamento. Pára à porta, a mulher sai e avia-lhe a receita. É assim há 15 anos, ainda a farmácia tinha instalações junto à "igreja dos funerais". De dois em dois meses o farmacêutico João Rego sabe o que tem de fazer no laboratório para aliviar as coceiras do olhanense.

Puxado pela nossa reportagem, hoje Vitorino estacionou e entrou. Mal nos vê, enche o peito, levanta a voz e atira, orgulhoso: «Ainda guio o carro». Percebe-se porquê. Conduzir foi o único modo de vida que conheceu, como motorista de pesados e ao volante do seu táxi. «Viajei por toda a Europa», exclama, com os olhos grandes e a pele sem rugas. Nem parece ter 88 anos, feitos em Março. «Ponho a pomada e passa-me logo a comichão», garante. «É assim, funciona», diz, com um abrir de braços.

O casal vive em Quelfes. São octogenários, mas muito jovens de espírito. Maria do Carmo Pereira, 85 anos, é a estafeta. Passou a vida a tratar da casa. Agora é tratada a uma pedra no rim, no Egas Moniz, em Lisboa. Vem aviar pelo marido pois «está muito surdo», afirma, apoiada numa canadiana.​

Desde há dois anos que aparecem em Olhão casos de sarna humana, doença cutânea infecciosa e contagiosa. O ácaro escava um orifício na pele, entra e ali faz a sua toca. No final de 2019, Rui Filipe foi uma das vítimas, depois do filho de seis anos ter apanhado na escola. Pedro estava coberto de bolhas de pus. «Tinha o corpo todo cortado e nem conseguia fechar as mãos», recorda o pai, mostrando fotos no telemóvel. Apanhar sol e transpirar activavam a terrível comichão, que tornava as noites dos Filipes «um pesadelo».

O cantoneiro na empresa municipal Ambiolhão passou por um calvário. No Hospital de Faro, prescreveram um antiparasitário para besuntar o corpo, mas não surtiu o efeito desejado. Seguiram-se banhos de 30 minutos com água morna e sal, três vezes ao dia durante duas semanas. Já aflito, recorreu ao Google, onde descobriu uma mistura de vinagre e álcool, que passava no colchão.
 
Os remédios industriais falharam com Rui Filipe. Foi só na farmácia que encontrou cura para a sarna

A médica de família receitou-lhe um outro antiparasitário, que deu novamente em nada. O desespero instalou-se. Foi então que a mesma médica do Centro de Saúde de Olhão se lembrou de receitar um medicamento manipulado à base de enxofre. «Vim por três vezes buscar a pomada, que é feita nesta farmácia», recorda Rui. Um mês depois dos primeiros sintomas, Filipe pai e Filipe filho estavam curados.

 


A cumplicidade de Rui com o farmacêutico João Rego é evidente. Talvez por terem a mesma idade, 28 anos. Ou por este ter preparado o manipulado que devolveu o bem-estar aos dois Filipes. «Foi o que nos valeu, já não sabia o que fazer», lembra, em jeito de gratidão.

«Quando faço uma pomada de enxofre, sei que vão chegar mais receitas, por causa da contaminação», explica o farmacêutico, há cinco anos na farmácia. Voou para Espanha, em Erasmus, antes de aterrar na "Cidade do Mar" ou "Capital da Ria Formosa", como é conhecida Olhão. João Rego aprendeu a preparação na Universidade da Beira Interior e agora está à frente da Unidade de Produção de Manipulados da farmácia.

As farmácias podem, a todo o momento, recorrer ao Centro de Informação de Medicamentos de Preparação Individualizada, instalado no Laboratório de Estudos Farmacêuticos (LEF) da Associação Nacional das Farmácias. «É a melhor fonte de informação que posso ter em caso de dúvida», refere João Rego.

A Farmácia Pacheco produz manipulados para as outras duas farmácias da família, mas também para mais farmácias da região. O crescimento da procura levou à fixação de uma farmacêutica na unidade de produção. No ano passado, Sara Margalha, de sotaque alentejano cerrado e sorriso fácil, um ano mais velha, veio de propósito da Farmácia da Ria, do centro comercial Algarve Outlet.

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No laboratório da farmácia são cumpridas rigorosas normas de vestuário e de utilização de equipamentos de protecção individual

A pomada de enxofre tem procura, mas mais tem a de afito, um anti-inflamatório e analgésico de uso pediátrico. A farmácia produz, em média, 30 por mês. Durante todo o ano, também prepara álcool boricado, desinfectante com acção bacteriostática e fungicida. É prescrito pelos médicos para as dores de ouvidos e usado por nadadores. Para garantir a segurança, qualidade e eficácia, é preciso seguir as boas práticas de preparação relativas às instalações e ao material de laboratório, e a ficha de preparação de cada manipulado que é produzido.

Longe vai o tempo em que os utentes pediam chá Reis (nome da farmácia na origem da Mendes Segundo, que a família adquiriu na Fuseta), um laxante usado nos anos 60. O mesmo aconteceu com o xarope de extracto de quina e ferro, fortificante que tinha na composição... Vinho do Porto. Inclusive o trimetoprim, xarope para tratar infecções urinárias em bebés e crianças, que a Farmácia Pacheco produzia para outras farmácias, deixou de ter procura aqui.

O que não caiu em desuso foi a comunicação entre a farmácia e os médicos sempre que há dúvidas de interpretação da receita de um manipulado. «Nessa altura, falamos, em prol do doente», afirma José Luís Segundo. Para a Farmácia Pacheco, a produção de medicamentos é «uma área de pesquisa e desenvolvimento» e uma aposta de futuro, estando agendada para Outubro uma formação à medida, pelo LEF. É com contentamento que o director-técnico declara: «Se têm uma receita para manipulado, os doentes sabem que o podem encontrar na nossa farmácia».

 

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