Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
9 outubro 2020
Texto de Paulo Martins e Marta Silva Texto de Paulo Martins e Marta Silva

A história não se manipula

​​​​​​​Nos anos 50, a indústria farmacêutica impôs-se e a manipulação caiu a pique.

Tags
​«Desde que o farmacêutico tem de ocupar-se menos da sua arte de manipular fórmulas do que do simples comércio de remédios que não preparou, os conhecimentos científicos adquiridos laboriosamente tornam-se uma inutilidade ridícula». O desabafo de Almeida Pinto, vertido em 1952 no n.º 78 do Boletim do Grémio Nacional das Farmácias, é filho da frustração de quem se sentia profissionalmente numa «situação deprimente e vexatória». Para o ex-presidente do Grémio, os laboratórios só deveriam produzir medicamentos no caso de a farmácia ser incompetente para o fazer, de a produção redundar em benefício económico para o consumidor, ou de corresponder a uma fórmula específica. Não estando, a seus olhos, preenchido qualquer destes requisitos, defendia a recondução da farmácia à sua função natural. 

Qual rolo compressor, porém, a indústria farmacêutica já empurrara as manipulações para escassos dez por cento do volume de receituário. Quatro anos depois, quando outro antigo dirigente do Grémio Nacional das Farmácias, Silva Carvalho, abordou a evolução do sector – em artigo no Boletim n.º 93, de 1956, significativamente intitulado “Prestígio e decadência da farmácia” – aquele mercado encolhera para metade. Acertava, por isso, na muche, ao reconhecer que o farmacêutico se deixou ultrapassar, tornando-se mero intermediário entre o fabricante e o público, visto pelos utentes «como um “semi caixeiro” de fazendas manufacturadas». 

A tendência já não seria invertida. Os manipulados não tinham só perdido mercado; há muito tinham perdido encanto – uma certa aura de alquimia associada aos boticários de outrora, a poções, emplastros, unguentos e chás. Na Idade Média, o processo que empreendiam, essencialmente mecânico, não exigia conhecimentos teóricos. Daí que resistissem às técnicas químicas, quando em finais do século XVII e início do seguinte se generalizaram. As boticas nem sequer dispunham de instalações e equipamentos necessários. 

Não, não desapareceram por artes mágicas instrumentos indispensáveis à preparação de drogas e compostos, como o pilão e o almofariz, símbolo perene da profissão farmacêutica. Simplesmente, a função ganhou, progressivamente, contornos mais definidos. A manipulação de acordo com fórmulas receitadas por médicos obrigou a uniformizar a prática destes profissionais e a assegurar que a dispensa correspondia à prescrição, através de um quadro de saberes farmacêuticos consolidado. As farmacopeias – a primeira oficial, em Portugal, data de 1794 – cumpriam esse papel. 

A arte de misturar e separar substâncias através de processos químicos é devedora das concepções de Paracelso. O médico suíço-alemão, que também aprendeu ocultismo e artes mágicas, acreditava na possibilidade de produzir um medicamento específico para cada doença. Ao mudar o paradigma, para uma filosofia natural de base química, rompeu com a medicina tradicional, que remontava a Galeno. 


"Água de Inglaterra" designava vários preparados farmacêuticos destinados ao tratamento do paludismo

Como o galenismo sobreviveu até ao século XVIII, popularizaram-se em Portugal os “remédios secretos”. O mais conhecido é a “água de Inglaterra”, nome de diversos preparados farmacêuticos baseados em vinhos de quina, para tratar o paludismo. Inicialmente importada de Inglaterra, disseminou-se graças à rede de distribuição montada pelo médico Castro Sarmento. Ficaram na história, também, os “segredos curvianos”, de outro clínico, João Curvo Semedo. «O século XIX e os primeiros anos do século XX marcam diversas transições na farmácia: do boticário, produtor de medicamentos, para o farmacêutico; da farmácia enquanto arte para a ciência farmacêutica; da botica para a farmácia», agora beneficiária do «rigor do microscópio e da balança», assinala João Rui Pita na obra “Dos manipulados à indústria dos medicamentos: ciência e profissão farmacêutica em Portugal (1836-1921)”.

Experientes na produção de medicamentos a partir de plantas, foram os farmacêuticos que, no século XIX, descobriram nelas agentes activos. Como refere Paula Basso em “A farmácia e o medicamento: Uma história concisa”, «a eficácia do princípio activo, agora concentrado como uma substância química em vez de disperso numa droga vegetal, significou que a pureza, a potência, a padronização e a dosagem podiam ser então controladas». Não por acaso, da comissão que elaborou a Farmacopeia de 1876 fizeram parte vários farmacêuticos, como José Tedeshi, Claudino Vicente Leitão, Urbano da Veiga e Pedro José da Silva. 

Por essa altura, Pedro Augusto Franco comercializava vinho nutritivo de carne, por si criado. O farmacêutico inventou ainda o xarope peitoral “James”, patenteado em 1869, e a farinha peitoral ferruginosa. A Farmácia Barral & Irmão era na época famosa pelos seus manipulados, como o creme Barral. Tão famosa que se tornaria a principal fornecedora do Estado. 


Publicidade a medicamento da Companhia Portuguesa de Higiene, primeiro grande investimento nacional na indústria farmacêutica 

Na segunda metade do século XIX, Manuel Vicente de Jesus revelou pioneirismo na produção de pílulas de proto-iodeto de ferro, preparadas segundo o processo de Blancard. Emílio Estácio fundou em 1891 a Companhia Portuguesa de Higiene, primeiro investimento relevante da indústria farmacêutica nacional. Em 1894, foram instalados na Farmácia Andrade, em Lisboa, dois laboratórios – um de análises, outro de esterilizações, o primeiro do género montado no país. Nos alvores do século XX, o Laboratório Normal, do farmacêutico Adriano Mourato Vermelho, apostou na comercialização de Dynamol, um tónico estimulante.



Em “História da Farmácia”, João Rui Pita nota que após a I Guerra Mundial «as farmácias continuam a produzir os medicamentos magistrais, mas a indústria farmacêutica galopava na intenção de ultrapassar esse exclusivo das farmácias de oficina». Foi a rendição do formulário magistral ao nome comercial do medicamento que justificou as referidas queixas dos dois dirigentes do Grémio. É que anúncios para recrutamento de ajudantes de farmácia publicados em meados do século XX no Boletim poderiam dispensar a exigência de conhecimentos de manipulação, conservando apenas traços de carácter do farmacêutico que é suposto resistirem à erosão dos tempos: «honesto, atencioso, apresentável».
Notícias relacionadas