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8 outubro 2018
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Maquilhada para a eternidade

​​​​​​​O sarcófago conta a história de uma mulher.

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Chamava-se Irtierut e era uma importante senhora da classe média alta do antigo Egipto. O seu sarcófago, datado do século VII a.C., foi restaurado e está de regresso ao Museu da Farmácia, em Lisboa. Contemplá-lo transporta-nos para uma época em que a esperança na vida eterna levava os homens a assegurar uma passagem para o paraíso em perfeitas condições, com belos túmulos, esculpidos e decorados com todo o esmero.

Para Luís Araújo, um dos mais reputados egiptólogos portugueses, o sarcófago do Museu da Farmácia é o melhor dos dez existentes em Portugal. «É o mais expressivo, o mais completo». Através dele, é possível desvendar alguns pormenores sobre a vida desta mulher.

Era adulta, teria no máximo 45, 50 anos – a esperança de vida naquela época – e viveu cerca de cinco séculos antes de Cristo, 'Época Baixa' da civilização egípcia, que se desenvolveu ao longo de três milénios. Era filha de Padihor e Tarenenubet, cujos nomes estão inscritos na peça de madeira estucada.

Não podemos determinar com exactidão a idade de Irtierut. O rosto esculpido no sarcófago, cuidadosamente maquilhado, tão pouco o permite. «A arte egípcia nunca retrata fielmente o rosto do falecido. Dá-lhe um toque de beleza eterna. Eterna juventude, eterna saúde. E também um olhar de confiança na vida após a morte», diz Luís Araújo, que estudou intensivamente esta peça funerária do Museu da Farmácia.

Após um mês a ser restaurado, sendo alvo de limpeza à superfície e do preenchimento de pequenas falhas na pintura do gesso, o sarcófago foi finalmente reaberto.

No interior, foram descobertas fibras e algumas contas, componentes do colar colocado na múmia e reproduzidas em pormenor no desenho da peça exterior. As fibras descobertas permitirão determinar a técnica e os materiais utilizados na mumificação, ajudando os investigadores, pela análise dos pigmentos e aglutinantes utilizados, a confirmar a datação do sarcófago entre 664 e 332 a.C..


No interior do sarcófago foram encontradas contas do colar de Irtierut

Irtierut viveu no tempo da XXVI dinastia. A grande civilização do Norte de África entrava numa das mais brilhantes derradeiras fases da sua história. Conservava o brilho, mas já perdera parte da antiga relevância política, regional, cultural e histórica. As mulheres egípcias mantinham ainda, «aparentemente», direitos idênticos aos dos homens, afirma Luís Araújo. Casavam geralmente aos 12 anos e podiam divorciar-se e, por exemplo, caso fossem vítimas de maus tratos.

Irtierut não foi nem rainha nem escrava. «Se fosse rainha, o sarcófago seria de prata ou mesmo de ouro». Mas também não foi camponesa, barqueira, ou serva, casos em que «não teria direito a túmulo», explica o estudioso do Egipto Antigo. Pode ter sido sacerdotisa, considerando a qualidade do sarcófago, cujo «requinte no tratamento iconográfico só poderia estar ao alcance de alguém com importância social de relevo». No tempo de Irtierut, o sacerdócio era um dos factores que garantiam tratamento funerário com elevado nível. «O sacerdócio feminino ganhou relevo nessa altura. Talvez a dama desempenhasse funções num templo como cantora, como era habitual», diz o egiptólogo.

Os egípcios acreditavam na vida eterna. Por isso, os mortos eram mumificados e conservados dentro de sarcófagos, «para viverem com saúde e bem-estar eternamente», expõe Luís Araújo. O objectivo, diz o director do Museu da Farmácia, João Neto, era «assegurar a saúde das pessoas numa outra dimensão mais espiritual, no paraíso».

O processo de mumificação implicava extrair os órgãos do cadáver. «O cérebro saía pelo nariz, era retirado com um gancho e deitado fora. Ninguém lhe atribuía qualquer importância», explica a curadora do Museu, Paula Basso. O coração era o único órgão colocado novamente no corpo, com um escaravelho por cima e a sua bola de excrementos, representando o eterno ciclo.

Os restantes órgãos eram colocados em quatro vasos canopos, fabricados para o efeito. Todos os órgãos eram tratados com bálsamos e unguentos, para durarem para a eternidade.

As múmias eram acompanhadas de papiros com excertos do "Livro dos Mortos", que visavam livrar o morto de perigos na sua viagem para o outro mundo. Estes textos eram por vezes inscritos no sarcófago, como aconteceu neste caso:
«Palavras ditas por Ísis, tua irmã. Ó Osíris Irtierut, justificada, filha de Padihor, justificado, senhora de veneração de Ré-Horakhti, deus grande, filha da dona de casa sua mãe, Tarenenubet, justificada, senhora de veneração de Ré».


A peça beneficiou de limpeza à superfície e do preenchimento de pequenas falhas na pintura do gesso

A ideia de ressurreição e de julgamento dos actos praticados compõem uma «mensagem importante» da peça, conta Luís Araújo. Ao centro do sarcófago está representada Nut, a deusa do céu. O deus Osíris está sentado no seu trono, no juízo final, figura repetida em espelho do outro lado. Abaixo, podemos ver a sua esposa, Ísis. Já a defunta é «uma figurinha pequenina, vestida de branco, em pose de veneração perante o deus Osíris, a dizer palavras transformadas depois pela Bíblia nalguns dos dez mandamentos:
«Não matarás, não roubarás, não invocarás o nome de Deus em vão».

Desconhece-se o paradeiro da múmia de Irtierut. No final do século XIX, início do século XX, as múmias passaram a ser vendidas no mercado do Cairo. O pó de múmia era usado, nessa época, para fazer medicamentos. O sarcófago foi adquirido em 1940 pelo coleccionador Josef Nestor, passando a integrar a The Plaisant Josef Nestor Collection, nos Estados Unidos da América. Chegou ao Museu da Farmácia a 8 de Março de 2002.
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