Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
11 janeiro 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de José Pedro Tomaz Fotografia de José Pedro Tomaz

Paz à vista

​​​​​As cores do Outono roubam o verde à serra, sobem pelos troncos, tingindo as copas.

Tags
Castanho, amarelo, laranja. As cores do Outono roubam o verde à serra, estendem-se em tapetes de folhas e sobem pelos troncos, tingindo as copas. No ponto mais alto, a 834 metros, o vento fortíssimo desafia a resistência das árvores antigas, pinheiros, carvalhos, cedros. O ar frio da montanha cola-se à pele e gela as mãos. O granito revestido de musgo verde e macio, o chão ensopado de orvalho, chuva e Inverno. A água brota por todos os lados, em fontes, cascatas e riachos de caudal forte que atropelam os calhaus pousados no leito. A paz nos caminhos. 

Nas fragas gigantes que despencam sobre o nada, um casal de namorados abraça-se, juntos seguram-se do vento que parece querer lançá-los para além dos ferros do miradouro. Da Pedra Bela avista-se a imagem que se cola ao Gerês como um postal: a montanha a toda a volta e, lá muito em baixo, o recorte cinzento do rio e as casas minúsculas da vila, lembrando uma maqueta. 


Há quatro anos que a médica Aldara Braga convive com as gentes minhotas no centro de saúde de Terras de Bouro

O Gerês é «a cor, a calma, o silêncio diferente… pormenorizado», descreve Aldara Braga, incluindo neste silêncio o som dos pássaros e da água. Há quatro anos que a médica de Braga sente «a forma afável de receber» das gentes minhotas com quem convive no centro de saúde de Terras de Bouro. No cume da montanha, cravado numa placa de ferro na data de 1942, o poema traduz o amor de Migue​l Torga pelo Gerês: Serra! E qualquer coisa dentro de mim se acalma… qualquer coisa profunda e dolorida. Traída. Feita de terra. E alma.

Antes de ser serra, Gerês é o nome do pequeno rio que nasce na montanha e atravessa a vila que designou até desaguar, dez quilómetros depois, na albufeira da Caniçada. Nesta época do ano corre veloz e causa alarido o rugido das águas impacientes por se juntarem às do rio Cávado. A água é muito límpida, gelada ao olhar. 


O edifício das Termas do Gerês  é procurado pelas águas únicas  no país para o tratamento de problemas digestivos

Do outro lado da estrada, o edifício das Termas do Gerês é procurado pelas águas «únicas» no país para o tratamento de problemas digestivos. «Temos muitos clientes, sobretudo homens de negócios, que fazem asneiras todo o ano e depois vêm aqui “lavar o casco”», diz com um sorriso Rosário Van Zeller, a directora-geral da empresa Águas do Gerês, que há mais de um século gere as águas termais que já eram conhecidas pelos romanos. Quem ingere estas águas é «obrigado a passeá-las», para acelerar a absorção. Os dois hectares do Parque das Termas, a que se acede atravessando um portão de ferro, são o local ideal para o fazer. Das árvores seculares chovem folhas agitadas pelo vento, formando um manto fofo que apetece pisar, só pelo prazer de sentir as folhas crocantes sob os pés. O caminho, a subir a serra, ladeia o rio Gerês até desembocar no lago artificial, concebido por Tude de Sousa, o regente florestal que na primeira metade do século XX reflorestou o Parque Nacional da Peneda-Gerês.

 ​Praia fluvial de Alqueirão, um dos locais mais procurados para actividades náuticas no Verão

​Lá em baixo, junto à praia fluvial de Alqueirão, a calma contrasta com o tumulto do cimo da serra. A água cinzenta acolhe os cisnes de plástico, estacionados à espera do Verão. Os pequenos ancoradouros de madeira esticam os braços da praia de terra castanha. Alinhadas na marina, as lanchas lembram o bulício de Agosto, que ensurdece os veraneantes e faz fugir quem é da terra. «O concelho tem pouco mais de 6.000 habitantes, no Verão chega a quintuplicar com os turistas e os emigrantes que enchem as aldeias», explica a médica. 


O santuário de São Bento da Porta Aberta é o segundo mais visitado no país, depois de Fátima

Do outro lado de uma das pontes de Rio Caldo, num terraço sobre o espelho de água, ergue-se o santuário de São Bento da Porta Aberta, o segundo mais visitado no país, depois de Fátima. O edifício de pedra branca revestido a azulejo florido em tons de azul é procurado todo o ano pelos fiéis atraídos pela fama do padroeiro da Europa, conhecido como santo das causas impossíveis. «O São Bento é médico de clínica geral, costumamos dizer por brincadeira. Toda a gente o invoca para problemas de saúde», conta o sacristão Ângelo Pontes. 

Logo abaixo, numa moradia que pertence à diocese, vivem Conceição, Fátima e Francisca, três irmãs da Ordem de Cister que vieram de França há 15 anos, com o desejo de fazer retornar a Portugal a Ordem que aqui fez história entre 1138 e 1834. Com sorriso franco e humor inesperado, acolhem quem chega, mesmo sem se fazer anunciar, suspendendo todas as tarefas. «Segundo a regra de São Bento, quem chega ao mosteiro será recebido como se fosse Cristo, é um tempo de gratuitidade», explica a irmã Conceição. Na mesa posta aguardam o chá acabado de fazer, biscoitos, marmelada, doces vários e amêndoas caramelizadas. É desta produção caseira que as monjas vivem modicamente e ainda ajudam quem precisa. O único arrependimento de quem compra é, depois de provar, não ter trazido em dobro. 

Quando se deixa o vale do Cávado para entrar no Vale do Homem, passa-se pela aldeia de Covide, uma das 17 que salpicam a serra, tornada famosa pela pandemia homófona. «A selfie junto à placa toponímica tornou-se obrigatória», graceja Aldara Braga. Necessária é também a paragem no Restaurante Cantinho do Antigamente, para o cozido à Terras de Bouro, característico pelo preparado de couves misturadas com feijão, o cabrito biológico do Gerês, a chanfana ou o arroz de feijão com pataniscas. 

O destino é o Campo do Gerês, uma das cinco portas do Parque Nacional da Peneda-Gerês, que se estende por 70 mil hectares de território minhoto e transmontano, e este ano comemora meio século. É aqui o início da Mata de Albergaria, o coração do parque, habitada por garranos, corços, lobos e cabras montesas. «Para encontrá-los é preciso entrar na mata muito cedo», avisa Elisabete Fernandes. A técnica do Núcleo Museológico de Campo do Gerês, natural de Covide, discorre sobre a fauna e a flora que conhece desde sempre: o carvalhal, o freixo, o hipericão do Gerês e as ervas que tornam famosos os chás e o mel, como a uva-do-monte, a carqueja e a urze. 


Vestígios da vida de Vilarinho da Furna, a aldeia sepultada pela barragem que nasceu no rio Homem, no Núcleo Museológico de Campo do Gerês

O museu conta também a história de Vilarinho da Furna, a aldeia sepultada pela barragem que nasceu no rio Homem e obrigou os habitantes a abandonar a vida intrinsecamente comunitária que os unia. No Verão, quando des​ce o nível das águas, emergem as ruínas da vida interrompida. Meio século depois, a memória prevalece e os antigos habitantes, unidos numa associação, reúnem-se todos os anos no museu feito com as pedras das casas da sua antiga aldeia.


O Museu da Geira conta a história da via romana com 300 quilómetros que liga Braga à espanhola Astorga 

Ao lado, o Museu da Geira homenageia o engenho romano que há dois mil anos ali fez nascer a Geira, a via romana com 300 quilómetros que liga Braga à espanhola Astorga. O pedaço que atravessa Terras de Bouro, entre as milhas XIX e XXXIV, foi usado pela população até à década de 50 e, por isso mesmo, é o mais bem preservado de todo o mundo romano. «Há locais onde está intacto», garante o guia Rui Martins.

Junto à barragem, não longe do local onde vive a aldeia submersa, um casal de Braga, manta sobre as pernas e garrafa de vinho na mesa de pedra, comemora o melhor que a vida tem para oferecer: a paz da vista desafogada e o ar puro da montanha. Depois do almoço vão ensaiar um passeio sem destino. Como dizem: «Há muito para visitar no Gerês».

 


Notícias relacionadas