A médica ginecologista Ângela Moita conhece o Palácio Sotto Maior há mais de 30 anos, mas só agora o visitou pela primeira vez. «É o ex-libris da Figueira da Foz, imponente e fabuloso, e, apesar disso, está fechado. É a bela adormecida da Figueira», lamenta. Nem sempre foi assim. Durante dois anos, o palácio, que desde 1967 é propriedade da Sociedade Figueira Praia (que também gere o Casino Figueira), recebeu 6.000 pessoas. O programa de visitas guiadas, chamado “A Figueira vai ao Palácio”, foi dinamizado pela antropóloga e museóloga Frederica Jordão, responsável pela Pó de Saber - Cultura e Património. A pandemia encerrou o projeto, que aguarda o merecido recomeço.
Frederica Jordão, responsável pela Pó de Saber - Cultura e Património, que dinamizou as visitas ao Palácio Sotto Maior, e a médica ginecologista Ângela Moita
O palácio, que começou a ser construído em 1900 a mando de Joaquim Sotto Maior, comerciante português que enriqueceu no Brasil, é «uma joia da arquitetura romântica», garante Frederica Jordão. À arquitetura francesa de belas-artes junta-se uma decoração «intensa, com o que de melhor havia naquele tempo». Os estuques, as madeiras trabalhadas, as pedras ornamentais e marmoreados, o imponente vitral junto da escadaria, as réplicas que Dordio Gomes fez de obras expostas no Louvre estão ao nível dos mais belos palácios de Portugal.
O imponente vitral junto da escadaria é uma das atrações desta «joia da arquitetura romântica», segundo Frederica Jordão
Mas, o mais extraordinário ao atravessar salas e salões, subir aos quatro pisos e percorrer quartos e zonas de trabalho, é imaginar a vida que por ali correu, ilustrativa de uma sociedade que desapareceu. Os quartos alinhados das três filhas, junto aos dos pais, com levíssimas variações de decoração, o piso que conferia aos quatro filhos uma liberdade inimaginável para as raparigas, as águas-furtadas onde parte da meia centena de criados da propriedade se alojava em condições precárias, não obstante o progressismo, à época, dos proprietários. Nas salas e salões do palácio organizavam-se bailes, concertos e tertúlias, com a presença de convidados distintos, artistas plásticos e intelectuais. «A vida cultural desta casa tem muito para contar», solta a museóloga, que estudou a fundo a história do palácio e nutre por ele evidente admiração.
Sala de visitas do palácio, com mobiliário e escultura francesa e teto decorado com um fresco do naturalista António Ramalho
Joaquim Sotto Maior fez-se rodear do mais moderno que o mundo tinha para oferecer à época. A eletricidade foi instalada em 1928, os pisos estão ligados com um sistema de telefones internos, existia uma central telefónica e uma escada de serviço com elevador, que tanto servia de monta-cargas, como para transportar pessoas. As refeições subiam da cozinha para a copa num elevador de comida, à semelhança dos restaurantes da época. Lá fora, o campo estendia-se por 30 hectares até ao mar, entre pomares e campos agrícolas. Ao lado da casa principal, encontram-se as cavalariças, mais à frente uma torre em estilo neoclássico, que delimita o terreno atual. O crescimento da cidade foi progressivamente amputando a propriedade, restam três hectares.
Frederica Jordão desfia estórias sem fim sobre a casa e a família Sotto Maior. Na morte de Madalena, a esposa galega de Joaquim, a Figueira chorou «a perda do anjo de caridade». O marido ficou associado à alfabetização, com as escolas móveis João de Deus e a Associação de Instrução Popular para alfabetização de adultos. Sociedades filarmónicas faziam espetáculos por toda a cidade, custeadas por Joaquim Sotto Maior. Frederica não duvida: «A família envolveu-se fortemente na vida da cidade». Resta esperar que a Figueira retribua e abra as portas deste tesouro ao público.