Nos bairros das grandes cidades, como em muitas terras da província, não faltam a Portugal profissionais de Farmácia com a fama, o empenho e o proveito de conhecerem toda a gente.
O poeta de Moreira da Maia era assim, mas em grau superlativo e tempo mais-que-perfeito. Sabia o nome completo de cada fiel cliente. Quando os via entrar no estabelecimento, rimava de alegria com os substantivos.
— Rita Olívia Costa Silva Oliveira!
Os últimos apelidos, já os dizia de braço estendido, bata branca delicadamente curvada para a frente, a fim de beijar a mão à mulher de 48 anos que acolhia como família.
— O que te traz tão bela à minha beira?
Deixava tudo para receber uma pessoa amiga. Mostrava-se verdadeiramente interessado em saber dela.
— Fazia-me sentir única.
Precisamente, cara Rita, obrigado pela senha.
A empatia é a qualidade divina que iluminou os traços todos da personalidade de David Dias da Hora Branco, em 76 anos de vida. A emoção, assídua nos poemas, traço, o sentido de urgência na política, traço, o perdão sem reservas ao ladrão que o ia matando, traço, a defesa militante da rede de farmácias, traço, a sentida gratidão a Jesus Cristo, traço, o amor à terra natal, traço, e às artes. Traço a traço, o retrato do poeta desenha-se da curiosidade, do respeito e do amor por cada pessoa.
— Perdoai as pobres rimas / Que eu ousei escrever… / Elas parecem vindimas / Sem uvas para colher! / Contudo Amigos meus / Era boa a intenção / Queria Louvar a Deus / E mostrar-vos gratidão!
David Dias da Hora Branco é nome de técnico de farmácia à antiga. Começou, aos 11 anos, a trabalhar tão bem com as mãos como com a cabeça. Na Escola Comercial Oliveira Martins só o ensinaram a fazer contas certas. Ao balcão e no laboratório de manipulados da Farmácia Gramaxo, a sua prodigiosa memória assimilou a Farmacopeia Portuguesa.
Estudo aturado e experiência feita fizeram dele amigo dos medicamentos e confidente dos seus segredos mais íntimos.
Com este registo de prática, quando lhe apareceu a oportunidade de comprar o estabelecimento, pediu dinheiro emprestado àqueles para quem laborara. Tiro e queda, negócio fechado, era uma aplicação sem risco para os donos da drogaria Granado, Irmão & Cia., do Porto, respeitável antepassado, por testamento comercial realizado em 1992, da actual Alliance Healthcare, líder de mercado da distribuição de medicamentos em Portugal e uma das jóias da coroa da Associação Nacional das Farmácias (ANF).
David Dias da Hora Branco, ainda nos anos setenta, foi um dos artífices da implantação na região Norte do projecto associativo e empresarial lançado por um grupo de jovens farmacêuticos de Cascais. Pela afirmação e a unidade das farmácias fez tudo o que lhe pediram, sempre com imensa alegria. Na ANF, começou como delegado local e chegou a presidente da Assembleia Geral, cargo que ocupou durante 17 anos, sucessivamente eleito pelos seus pares. Foi nessa condição que tomou a palavra para abrir uma histórica “Sessão Institucional de Esclarecimento”, realizada em Fevereiro de 2002 no Parque das Nações, em Lisboa.
— Primeiro, quero desmistificar o bluff denominado farmácias "sociais", realçando o forte pendor social evidenciado pelas farmácias de oficina em Portugal.
Falava assim, franco e a direito. Tinha a consciência imaculada, foi consequente toda a vida com os valores que defendia. Na Farmácia Gramaxo ninguém deixava de levar os medicamentos para casa por falta de dinheiro. Um verdadeiro cristão guarda a miséria alheia em respeitoso silêncio. As contas que ficaram penduradas para sempre no prego da farmácia para ele não eram medalhas de mérito, mas rebates de consciência.
A tragédia de Francisco Sá Carneiro inspirou-lhe um poema acróstico, pleno de sentimento e de ideologia
O combate à pobreza, que o incomodava profundamente, levou-o à política. Para ele, só havia Democracia com progresso social e Liberdade com valores. No Verão Quente de 1975, quando elas doíam, levava os filhos com ele, noite dentro, a colar cartazes do PPD na Estrada Nacional 13. Como muitos homens que subiram a pulso na sua geração, o seu partido foi Francisco de Sá Carneiro.
— Cavaleiro andante, intrépido combatente / Ideais de Justiça perseguiste / Sereno, lúcido, frontal e persistente / Como estrela de brilho refulgente.
Viveu nos estádios das Antas e do Dragão a paixão pelo F.C. Porto
A vitória da AD foi uma alegria intensa, uma esperança desmedida mas tangível. Também ficou eufórico com o calcanhar do Madjer, em Viena, mas isso já era magia. O F.C. Porto, pelo menos, nunca lhe deu um desgosto, sequer parecido, à queda daquele maldito avião em Camarate.
— Orientaste-nos, guiaste-nos… e partiste!
Órfão de mãe aos quatro anos, toda a vida reagiu com força à adversidade
Órfão de mãe desde os quatro anos, o poeta de Moreira aprendeu a responder à dor com a força de um combatente.
— O HOMEM pereceu… A OBRA continua!
Carismático, foi eleito muitas vezes pelos proprietários de farmácia e pelos conterrâneos
Bom orador e carismático, o técnico de farmácia teve sucesso na política. Nos anos 90, foi eleito duas vezes presidente da Junta de Freguesia de Moreira. Tornou-se popular e muito estimado.
— Foi o primeiro amigo que tive aqui na Maia.
Naquela noite de Primavera de 1974, Ângelo Miguel Teiga Torrão, acabado de chegar de Ílhavo, tocou à campainha desesperado, desorientado e descrente da vida numa área metropolitana. Trazia a filha de 11 meses nos braços, a chorar devido a uma queimadura de café quente. A mãe de uma enfermeira vizinha renegou acordá-la àquela hora da madrugada, não viu caso para isso. Felizmente, a farmácia estava sempre “de serviço”, era a casa da família Dias da Hora Branco. David agarrou na criança e num instante resolveu o assunto. Tanto curava com pomadas como aos carinhos: foi pai de quatro filhos.
— Nascemos todos em casa.
Arménia Teixeira Vieira Branco não tinha medo de nada, a não ser que lhe trocassem os filhos na maternidade. Antes parir em casa, com fé em Deus e nas leis da Natureza. Estava a atender os clientes ao balcão da farmácia e fazia um intervalo para ir dar à luz no andar de cima. A filha mais nova anunciava-se cheia de pressa mas a parteira nunca mais vinha. Impávido e sereno, o marido calçou as luvas para receber a filha com as próprias mãos.
A mulher lá apareceu à última da hora.
— Não se ensaiava nada de assistir ao parto.
Arménia e David foram o único amor da vida um do outro
Arménia e David já vieram ao mundo combinados. Foram o único amor um do outro. Antes de casarem, nunca ficaram a sós, era assim naquele tempo. Depois da boda, em família, foram ao Cinema Trindade, no Porto, ver uma comédia romântica. No regresso a casa, o noivo disse ao taxista para os deixar longe do portão. Não queria acordar os sogros, em casa de quem passaram a noite de núpcias.
O namoro começou numa tarde de domingo, no Padrão de Moreira. As raparigas sentavam-se na escadaria, a contar pelos dedos da mão os carros que passavam. Os rapazes compareciam de bicicleta. Aquele Cristo num pedestal de mármore fez muitos casamentos.
Arménia começou por desdenhar. Troçava da figura do moço, de bata às riscas, a pedalar um modelo feminino, com uma grande cesta, que enchia para levar medicamentos e fazer curativos ao domicílio. Um dia, tinham ambos 16 anos, ele parou à porta – e entrou mesmo – na mercearia onde a rapariga trabalhava.
— Veio perguntar-me onde vivia o meu primo. Foi uma desculpa, estava careca de saber.
Quem desdenha, acaba por comprar. Arménia apaixonou-se para a vida.
Ele era um homem entroncado, de costas direitas. Em 1979, quando um bando de rapazes lhe assaltou a farmácia à hora da telenovela, ofereceu resistência. Levou um tiro. A bala entrou abaixo do olho esquerdo e foi-se alojar à mesma distância de filme da orelha direita. Os neurocirurgiões tiveram dificuldade em perceber como foi possível salvarem-lhe a vida.
— Isto foi um milagre, meu amigo.
Anos mais tarde, regenerado da toxicodependência, o autor do disparo escreveu um livro a contar a história. David Dias da Hora Branco comprou-lhe um exemplar à saída da missa. O perdão é dos versos mais bonitos.