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6 junho 2019
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins Fotografia de Direitos Reservados Fotografia de Direitos Reservados

Uma mulher pra frentex

​Manuela Carvalho foi a primeira mulher a integrar a Direcção da Associação Nacional das Farmácias.

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​Determinação, inteligência, acutilância. A personalidade da única mulher que em 1976 integrou a primeira Direcção da Associação Nacional das Farmácias, falecida em Março,  ​podia sintetizar-se naqueles três ingredientes. Ou em quatro, para que melhor se entenda o seu percurso. Basta acrescentar um “q.b.” de ingenuidade quando lhe afagavam o ego.

Sim, Maria Manuela Carvalho era «uma pessoa com uma auto-estima cheia», como testemunha a filha Joana. Sim, «se acreditava numa coisa, ia atrás». Contudo, «não tinha
filtros, nem papas na língua» e era avessa ao politicamente correcto, muitos anos antes de a expressão entrar no léxico. «Quando somos, como ela era, fiéis às nossas convicções, e não engolimos sapos, sofremos as consequências», ajuíza Joana.

Foi uma mulher «elegante, bonita e afirmativa» que João Silveira, hoje presidente da Mesa da Assembleia Geral da ANF, conheceu ainda jovem, numa reunião em que alunos de Farmácia do Porto se juntaram aos que, como ele, estudavam em Lisboa. Viria a reconhecer-lhe uma vontade indómita de «puxar sempre para a frente, de peito aberto às balas». Por vezes, «não travava», mas «esteve sempre no campo das convicções». Maria Manuela Gonçalves Pereira de Carvalho nasceu em São Tomé e Príncipe, em 1940, no seio de  ​uma família proprietária de roças de café, que perderia tudo no turbilhão da independência, em 1975. Ela partira uns anos antes. Divorciada e já com dois filhos, trocou os luxos coloniais pelo Porto. Era assim, dona de si. Não a assustava «levar sozinha o barco para a frente», segundo a filha, vogal da Direcção da ANF entre 2011 e Abril passado.



Caloira aos 27 anos na Universidade do Porto, aproximou-se dos colegas mais jovens. A empatia ajudava. «Falo, salto, pulo, zango-me, viro a mesa e, daqui a pouco, já não é nada comigo», admitiu em depoimento a Carina Machado, para o livro sobre os 40 anos da Associação, editado em 2014. Em menos de um fósforo, travou amizade com João Cordeiro, futuro líder histórico da ANF, a quem sucedeu em 1969 na presidência da Associação de Estudantes da Faculdade de Farmácia.

Certo dia, protagonizou um episódio que a expôs a apupos e insultos. Sabia que os ouviria, mas não hesitou em interromper a exibição de uma peça de teatro encenada pelo
dirigente associativo a quem confiara o programa cultural da Queima das Fitas, Gomes Carneiro, mais tarde deputado eleito pelo PS, que morreu em 1996. “O Fosso”, da autoria de Jaime Gralheiro, abordava a Guerra Colonial e a emigração, pelo que estava na “lista negra” do regime marcelista. Ao saltar para o palco, Manuela matou à nascença a mais que provável reacção do reitor, Salvador Valserrano. Os estudantes, sobretudo os de Arquitectura, é que não a pouparam.

Após anos de espera, só em 1975 foi autorizada a montar a sua farmácia, em Alcabideche. Politicamente de direita – viria a ser vereadora da Câmara de Cascais pelo CDS – costumava dizer que aquela farmácia foi a única coisa que o 25 de Abril lhe deu. João Cordeiro, que lhe proporcionara o estágio, deu uma ajuda no arranque: emprestou-lhe equipamento e forneceu-lhe medicamentos.

«Participou activamente no "Grupo de Cascais", com o seu estilo afirmativo e acutilante», atesta João Silveira, referindo-se ao núcleo de farmacêuticos que conduziu a transição do velho Grémio para a ANF. Vogal da Direcção eleita em 1976, foi responsável pelo funcionamento dos órgãos distritais. Nesse tempo, as reuniões prolongavam-se pela noite dentro, num andar da Rua Frei Francisco Foreiro, em Lisboa. A memória de Silveira é reveladora: «Entrava e enchia a sala. Era difícil não notar que tinha chegado, até porque falava alto, com uma voz bem timbrada». Diz Lopes Ribeiro, então secretário-geral, que «para ela não havia horas». Sendo «inteligente e determinada, via os problemas de forma transparente. Nas reuniões com o Ministério, não se baixava». Ou seja: «em nada se distinguia dos homens».
 
João Cordeiro, que conheceu Maria Manuela Carvalho na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, não tem dúvidas em salientar o seu «perfil de guerreira», manifestado  quer no movimento associativo estudantil, quer como dirigente da Associação Nacional das Farmácias. ​

«Mantivemos sempre uma colaboração muito intensa. As recordações que tenho dela são francamente positivas», afirma o antigo presidente, que a convidou para integrar a primeira Direcção. Sublinhando a sua inteligência e determinação, Cordeiro conta um episódio bem revelador da personalidade da colega. Uma «graçola sobre mulheres», que hoje não seria admissível, atirada por um ministro em plena reunião com a ANF, tirou-a do sério. «Levou a coisa de tal modo a peito que lhe disse na cara: ‘Não achei piada nenhuma’ E passou o resto da reunião de costas voltadas para o ministro».

Participou activamente no "Grupo de Cascais", que conduziu a transição do velho Grémio para a ANF.

​​«Braço direito» de Cordeiro e de Silveira, na opinião de Lopes Ribeiro, Manuela acompanhava-os com frequência a beber um copo após as reuniões. Por residirem os três na mesma zona, partilhavam o transporte. E as vicissitudes da vida associativa – desde logo no agitado período pós-revolucionário. Até 1983, quando, “desviada” pela oposição interna, ela entrou em choque com os colegas. Joana Carvalho confirma: «Usaram a minha mãe e ela deixou-se usar. O protagonismo que tinha encheu-lhe o ego». A atitude precipitou a queda da Direcção. Cordeiro afastou-se – só se reconciliaram em 1985, aquando das cheias de Cascais, que atingiram a farmácia dele. À distância, Silveira relativiza: as «diferenças táctico-estratégicas que levaram à ruptura» não beliscaram a relação pessoal. 

Há laços inquebrantáveis. Quando o Cascais Shopping abriu, foi convidada a instalar uma farmácia, com um confortável período de carência de renda, mas recusou, para não abandonar os clientes de Alcabideche.

Joana, que herdou «o feitio impulsivo de quem acredita nas convicções», mas aprendeu a não agir a quente, lembra a teimosia da progenitora. «Matriarca», tanto tinha a tentação de tudo controlar como de resolver os problemas. Os empregados da farmácia sabiam que podiam contar com ela, até para apoiar financeiramente os estudos dos filhos. «Sempre concedeu crédito a quem precisava. Ninguém ficava sem medicação, nem que fosse ela a pagar». Assumia a profissão sem meias-medidas. Foi farmacêutica na íntegra. Sempre pra frentex.
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