Para lá do Marão, mandam os que lá estão. Na aldeia de Vale Salgueiro, ditados e rituais exercem-se como direitos, não se discutem. Alzira Lemos nasceu na Terra de Reis e foi soberana toda a vida. Como uma rainha, passeou 97 anos um coração magnânimo, coisa de família.
– Todos os garotos conheciam a avó Rosinha porque matava a fome a quem fosse preciso.
Olho vivo, media bem o impacto das suas verdades nos outros.
– Quando a minha mãe morreu gritavam: “Vai-se a mãe dos pobres”.
Corpo miudinho e enxuto de carqueja, rijo como um castanheiro, dispensava falinhas mansas e não temia tempestades.
– A minha vida, contada, faz tremer uma calçada.
Em Vale Salgueiro, na Festa de Reis, um homem do povo é coroado na igreja e abençoado pelo padre. Vai de casa em casa, de ceptro na mão, acender a alegria e religar a união. Nesse dia, sem exemplo, por mais ralhetes no Facebook e reportagens moralistas na televisão, as crianças experimentam fumar. No resto do ano, provam a felicidade abundante
– Eu gostava de dar saltos nos degraus para o quintal.
das numerosas experiências que a vida no campo tem para dar:
– Deitavam palha para fazer estrume, eu dava saltos.
O amor da matriarca da família era capaz de montar um Natal todos os dias:
– Fazia doces e castanhas assadas, todos sentados à lareira. Para nós era tudo, não sabia o que havia de fazer aos netos.
A família Lemos era abastada em azeite, vinho, trigo e centeio.
– O meu pai era o chefe. E tinha o lavrador que andava com os bois.
A primeira tempestade foi a morte inesperada de Manuel Maria, tinha ela dois anos, e a irmã, Amparo, três meses:
– O pai foi um erro muito grande dos médicos. Queriam mandá-lo para o Gerês, fazer uma cura ao fígado, mas foi um tumor cerebral que o vitimou.
A mãe, Maria Cândida Borges, ficou com duas crianças nos braços.
– A minha mãe era uma pessoa com visão. Sabia que o pai queria educar as filhas e ela fez tudo por isso.
Alzira aprendeu com aquelas espantosas locomotivas de 1500 cavalos, montadas nas oficinas de Mirandela, a fazer caminho em frente,
– Gostei sempre de estudar. Era boa aluna, melhor a Ciências. Matemática era o meu forte. Ainda hoje gosto mais do que as físico-químicas.
sem desvios, sobre os carris de ferro da vontade sagrada do pai, da determinação firme da mãe e dos valores antigos da família:
– Eu aceito, quando preciso das coisas não discuto.
E assim, aos 12 anos, depois da escola primária em Mirandela, foi com a irmã para um colégio interno no Porto.
– Não gostava de nada, nem da comida. As freiras eram muito chatas.
O seu espírito adolescente sonhou pela primeira vez uma vida independente:
– Eu fui sempre uma pessoa muito aberta e não gostava de estar ali fechada.
O melhor eram as férias de Verão em casa de uma tia, cabelos ao vento na Praia de Leça, quando apareceram os primeiros surfistas.
– Molhava os pés, gostava de andar para trás e para a frente à beira-mar.
Do Colégio Nossa Senhora de Lourdes passou para o Carolina Michaelis, onde concluiu o antigo sétimo ano. A maioria das raparigas eram mais velhas e levavam-na com elas quando iam ter com os namorados.
– Eu não gostava nada daquela brincadeira.
Foi a Dona Berta, da freguesia vizinha de Vale de Telhas, à época proprietária da Farmácia da Ponte, em frente ao rio, a abrir-lhe a porta da vocação profissional.
– Quando me apanhava, ela dizia assim: “Olha, tu vais para Farmácia, que depois eu vendo-te a minha”.
A ideia sabia a mel no espírito de uma rapariga nascida para ser rainha de si própria, sem patrões, Estado ou sindicato.
– Eu queria uma profissão livre.
Fica explicado o título e provado o epitáfio, na voz da própria, em entrevista realizada na Páscoa do ano passado, estava ela com 96 anos afiados de sabedoria.
– No que eu era melhor era a Matemática, mas não queria ser professora.
Alzira Lemos integrou a geração mítica das primeiras mulheres licenciadas em Farmácia.
– As professoras do liceu andam ali, não são uma profissão livre. O médico é uma profissão livre, o farmacêutico é uma profissão livre.
Ingressou na Faculdade de Farmácia do Porto em 1940, com 18 anos. Conheceu a Celeste e a Ricardina, duas amigas para a vida. Foram irmãs inseparáveis. Guardava-as debaixo da sua asa protectora, sem nunca deixar de as espicaçar, directa ao assunto:
– Ó mulher, fala! Passam-te todos à frente e tu és a melhor.
Ricardina, Alzira e Celeste, três farmacêuticas que eram como irmãs
Acabou o curso em 1945, o ano de todo o século XX com melhores notícias para uma mulher livre. Só depois, na estação certa, à tabela, aceitou o pedido de casamento.
– Como se namorava na altura? Namorava-se como sempre se namorou toda a vida, olha que pergunta!
Por indicação de um professor de faculdade, mal terminou o curso teve emprego numa farmácia da Batalha.
– Gostei muito de estar na Batalha, mas eu queria uma farmácia só minha.
Regressou às raízes, porque a oportunidade de negócio apareceu em Mirandela.
– Foi muito dinheiro, uma pipa de massa. Eu não era uma pessoa para me assustar. Fui ao banco. Levantei o dinheiro, sabia que o podia pagar.
Tomou conta da Farmácia Bragança e montou um laboratório de análises clínicas.
– Trabalhei muito.
Ficava na farmácia de segunda a sábado, só com um empregado, a quem deixava os serviços nocturnos. Ela sempre foi mais de romper o dia.
– Gostava mais da farmácia antiga, os nossos conhecimentos punham-se mais em prática. Fazia pomadas, xaropes.
Alzira e o marido, Francisco, e os filhos, Manuel e Paula, no baptizado desta
Teve um filho e uma filha, foi feliz no matrimónio, mas enviuvou cedo. Continuou em frente, como as modernas locomotivas a diesel. Deixou dezenas de cartas de protesto contra a situação económica das farmácias no arquivo do Grémio Nacional das Farmácias:
– Há, na realidade, imperiosa razão de se olhar a situação da Farmácia de Oficina, pois a continuar assim, dentro de pouco tempo, as farmácias estão nas mãos de ajudantes.
Reclamava muito, mas retirava sempre daí as devidas consequências.
– Aproveito para comunicar a V.Exa. que me sinto com a melhor boa vontade de colaborar na defesa da classe.
Primeiro prestou serviços ao Grémio, depois envolveu-se na ANF desde o primeiro dia.
– Gostei muito daquela ideia. Então, não havia de defender o meu campo?
Viveu e morreu directora-técnica. Há uns anos, entregou o balcão de atendimento e o livro de receitas ao neto Francisco, farmacêutico comunitário como ela foi sempre.
– Eu tenho fórmulas muito boas.
Consequente, não dava só o nome à placa da rua. Ia à farmácia todas as tardes, vigiava as contas.
– Sou uma lutadora, não recebo as coisas de mão dada. Ia agora ficar em casa?
Alzira Lemos era a líder histórica das farmácias de Trás-os-Montes e uma cidadã do mundo. Conheceu tudo o que há para ver neste planeta, nos congressos da Federação Internacional Farmacêutica: Holanda, Brasil, China, Canadá, Austrália...
– Olha, Francisco, trabalhei muito, mas também passeei.
Como era mandatório ter sido exercido, por uma farmacêutica livre.