Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
2 março 2020
Texto de Irina Fernandes Texto de Irina Fernandes Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O oásis encantado

​​​​​​​​​​​​​​Viagem aos recantos da Margem Sul.​

Tags
Fragatas, varinos e botes repousam à beira de água. Beijam o rio Tejo, como se ali estivessem pela primeira vez. A quietude envolve a paisagem. Só o som das máquinas de soldar traz à lembrança a azáfama do passado: enfrentando ventos e marés, embarcações iguais levaram pão a Lisboa. «Mandava-se produtos agrícolas, madeiras e tudo o que era comercializado», evoca o mestre Jaime Costa, 66 anos, proprietário do Estaleiro Naval de Sarilhos Pequenos, um dos últimos em Portugal a reparar e construir barcos tradicionais de madeira.


«A margem Sul não é um deserto! Aqui há de tudo», garante a farmacêutica Laura Cardoso

Nas décadas de 40 a 70, a indústria naval ocupou milhares de homens e de mulheres. No final de 1966, só na Lisnave trabalhavam 3.918 pessoas. Da Lisnave até Alcochete existiram 42 estaleiros. Resta um, paragem «imperdível» em dia de passeio pela margem Sul do estuário do rio Tejo. «É uma oportunidade de percebermos como se fazem os barcos», afirma a farmacêutica Laura Cardoso, 56 anos, frisando que «é preciso dar continuidade à arte». A proprietária da Farmácia Tágide, em Alhos Vedros, é filha da terra há seis gerações, «da parte da mãe e do pai». Conhece bem a margem Sul do Tejo. «É preciso desmistificar. Isto não é um deserto, é um oásis! Aqui há de tudo». A viver desde criança em Sarilhos Pequenos, anuncia que há muito para ver e descobrir nos nove concelhos da área metropolitana de Lisboa Sul. «Nesta margem saboreia-se a vida! É como estar numa cidade, mas vivendo fora dela – o que ainda é melhor!». 

O estaleiro, por estes dias, atrai visitantes de todo o mundo. «Há uns dias recebi aqui um grupo de pessoas que vinha de Macau. Queriam conhecer o estaleiro, mas ainda queriam ir à Ericeira para ir a um museu. Sabe o que é que aconteceu? Já de cá não saíram!», conta entre gargalhadas o mestre Jaime Costa.  «Quando a maré enche fica tudo tão bonito… aqui o nascer do sol é lindo, já dizia o meu pai», afiança. Turistas e curiosos chegam ao local para ver as embarcações e o trabalhar dos homens – já poucos – que, por amor ao mar e à actividade, vão adiando a extinção desta arte. 

Organizada pela Câmara Municipal da Moita, a visita não se resume à observação de barcos coloridos e madeiras maciças. Quem por aqui passe pode deliciar-se com uma refeição bem portuguesa: caldeirada à fragateira. «Encaminhamos os visitantes para restaurantes da zona e asseguro-vos que se come muito bem!», ressalva o mestre, homem de porte e mãos robustas.

O rio sempre foi um lugar de trabalho, mas também de diversão e bem-estar. A praia fluvial de Alburrica, no Barreiro, é lugar para conhecer com tempo. «Esta praia era muito frequentada e recomendada para fins terapêuticos por causa do iodo. A coqueluche de Lisboa deslocava-se à margem Sul para vir a banhos», conta o historiador António Camarão. 

Nesta língua de terra, três moinhos de vento, mandados construir em 1852 – o Gigante, o Poente e o Nascente, este último aberto para visitas – roubam as atenções. «Produziam essencialmente farinha. Portugal sempre teve crises cerealíferas e, em virtude da última, foi necessário fazer mais unidades de moagem», explica o guia do espaço Moinho de Maré Pequeno – Centro Interpretativo. A região cedo se destacou na actividade de moagem. Inspirado pela força dos ventos, Portugal possui a maior concentração de moinhos de maré do mundo. «Os franceses têm cerca de 110 numa zona que fica entre a Bretanha e a Normandia, nós só em Coina temos 24 moinhos de maré – eram 12 do lado do Seixal e 12 do nosso lado, Barreiro», revela António Camarão. 

Marcada por um passado ligado às salinas, pesca e indústria, com o complexo CUF (Companhia União Fabril), e pela diversidade cultural da população, que originou forte movimento associativo, a cidade do Barreiro soube reinventar-se. A frente ribeirinha revitalizada, os passadiços atractivos, e os museus cheios de saber e arte – destaque para o Espaço Memória e a Casa Museu Alfredo da Silva – são pontos a explorar. 


O caril de gambas é um dos pratos mais solicitados

À hora de almoço, o entra e sai n'A Tasca da Galega intensifica-se. Enche-se o copo e sai mais um brinde, que a vida pede festa. «Esta ginjinha é muito boa! Saúde!», celebra a farmacêutica. Produzida em Óbidos, a bebida é símbolo da casa aberta há 90 anos e da cidade. Todos os dias aqui chega gente nova. Na véspera de Natal, «até é preciso fechar as ruas à volta», conta João Cruz, 59 anos, proprietário. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, também é apreciador. «No dia 24 de Dezembro, ele vem cá sempre beber uma ginjinha. E fez a promessa de que voltaria até ao final do mandato presidencial», conta o responsável do estabelecimento. Pimentos verdes e vermelhos, maçã e gambas, tudo junto numa frigideira em lume alto. O cheiro é irresistível e perfuma esta casa que é multicultural. «Aqui, tudo é feito com muita alegria e muito amor. Quem aqui vem, gosta. E sente-se em casa», assegura Alice Cruz, cozinheira, 52 anos, sem tirar os olhos do fogão. As cores no prato são gulosas e convidativas. 


N'A Tasca da Galega enche-se o copo e sai mais um brinde

As praias da margem Sul regalam as vistas e enchem a barriga. O peixe é rei na praia fluvial do Rosário. «Este espaço tem uma vista fantástica. E para quem gosta de pratos de peixe é imperdível», recomenda Laura Cardoso, que costumava vir para aqui quando era adolescente. «Caminhava pela areia e ia até ao moinho», recorda. Na Moita, cada casa tem uma cor diferente. «Sabem porquê?», desafia a farmacêutica. «Os pescadores pintavam as casas com os restos da tinta que sobrava dos barcos», revela, entusiasmada. 



A travessia do rio Tejo é um passeio para a vida. Todas as horas são válidas. Os olhos vão agradecer e a alma perder-se-á numa dança perfeita com as ondas. «É tão bom andar de fragata e percorrer estas margens. É fantástico!», suspira a farmacêutica. 

A viagem pelos mais de 40 quilómetros de estuário vai desembocar três séculos atrás. A margem Sul do Tejo também tem o seu pinhal de Leiria. Para travar o avanço das areias das dunas para os terrenos agrícolas, o rei D. João V mandou plantar 340 hectares de árvores frente ao mar, na zona da actual Charneca de Caparica. A Mata Nacional dos Medos ainda impressiona pela sua pureza. Os contornos irregulares das copas das árvores e os caminhos serpenteados intimidam, mas não afastam quem chega. Convidam à leitura, ao descanso e a grandes caminhadas. O Caminho do Museu das Árvores, o Caminho das Artes e o Caminho do Altinho do Mar são alguns dos trilhos a explorar. Esta extensão de 13 km ao longo da orla litoral, inserida na Paisagem Protegida da Arrábida Fóssil da Costa da Caparica, lembra-nos como devemos experimentar o mundo: respirar o ar puro, sentir o vento na cara e ouvir o som do mar. 


A Mata Nacional dos Medos convida a passeios e a contemplar o mar

Em 1934, numa visita ao Rio de Janeiro, Brasil, o então Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, perdeu-se de encantos ao ver a imagem do Cristo Redentor, no Corcovado. No regresso, tratou que fosse construída obra semelhante em Portugal. Foram utilizadas 40 mil toneladas de betão. A imagem do Cristo Rei foi esculpida à mão, a 113 metros do chão. Ainda que o medo de alturas possa desassossegar o espírito, das alturas revela-se outra Lisboa, ainda mais encantadora. «Aqui tem-se uma perspectiva completamente diferente do Tejo», elogia Laura Cardoso. 


Amália Rodrigues tem o seu miradouro particular em Alcochete

A Reserva Natural do Estuário do Tejo é um dos mais ricos patrimónios naturais do país em ecossistemas e biodiversidade. Aqui vivem mais de 200 espécies. Alcochete, famosa pelos salineiros, marítimos e forcados, é perfeita para fazer turismo de natureza. Podemos visitar as Salinas do Samouco, andar por trilhos, fazer canoagem, observar flamingos, gansos bravos e outras aves exuberantes, e à noite as estrelas. À entrada da vila, Amália Rodrigues tem o seu miradouro particular. Com o Tejo aos pés, a diva do fado canta para a eternidade. Sorri a quem chega, sorri a quem parte.
Notícias relacionadas