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12 dezembro 2019
Texto de Maria João Veloso Texto de Maria João Veloso Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira

Cantigas da Beira

​​​​​​​A aldeia de Monsanto foi palco de batalhas entre cristãos e mouros. Hoje, irradia paz.

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Aldeia de Monsanto: onde moram rochas com corpo de gente e gente com a força das rochas. A força necessária para subir ao castelo, enfrentar os invernos mais rigorosos e as batalhas do quotidiano. 


Do Castelo de Monsanto pisca-se um olho ao casario e abre-se o outro à planície

Maria Alice Gabriel é feita desta massa. Aos 22, abriu “A Casa Mais Portuguesa”, que reúne artesanato, produtos regionais e seis quartos para alugar. Aos 88 anos, ainda dá conta de tudo. E já correu muito mundo. A filha, correspondente da RTP no Parlamento Europeu, conseguiu que Portugal fosse o país convidado à feira de Natal de Estrasburgo de 2016. Idanha-a-Nova foi protagonista, porque o município ficou responsável pela organização. 

As ruas de Monsanto estão um deslumbramento. Casas de granito, quase sempre adornadas com vasos de sardinheiras. A viagem no tempo é natural. Sem artifícios. O entardecer é de ouro e traz consigo as cores do Outono. 


O entardecer em Monsanto é deslumbrante

O lugar é habitado desde D. Afonso Henriques. Foi palco de muitas batalhas entre cristãos e mouros. Hoje, a paz que irradia encanta e atrai pessoas de todo o Portugal. 

Depois de acabar a sua formação na Escola Artística António Arroio, o pintor Bruno Pedroso trocou Lisboa pela aldeia. Faz aguarelas com paisagens da região. Os corajosos que trepam a escarpa até ao ponto mais alto podem levar para casa uma recordação dessa aventura. 

A aldeia assenta numa estrutura granítica formada há mais de 300 milhões de anos, que parece estar a sair das entranhas da terra. «De longe a vi e a temi, um dorso de monstro a crescer para nós até tomar conta de quase todo o céu», descreveu Fernando Namora, que exerceu Medicina aqui entre 1944 e 1946. 

Também a farmacêutica Sofia Valada recorda «a emoção da primeira vez» que se viu no cume deste “monte-ilha” que irrompe da planície. Ficou impressionada pela simbiose entre as casas e as pedras graníticas, mas também pela «natureza genuína». Vista lá de cima, a paisagem é majestosa, com a barragem Marechal Carmona a vestir o ambiente de dourado e de prateado, consoante os desenhos das nuvens no céu. 


Ribatejana do Cartaxo, Sofi a tornou-se beirã há quase 25 anos. É a directora-técnica da Farmácia Serrasqueiro Cabral, da freguesia de Ladoeiro

Ribatejana do Cartaxo, Sofia tornou-se beirã há quase 25 anos. É a directora-técnica da Farmácia Serrasqueiro Cabral, da freguesia vizinha de Ladoeiro. Para ela, dez anos em Lisboa foram suficientes. Assim que lhe apareceu a oportunidade, decidiu fugir do stress e ao trânsito da capital. «No Interior, temos a sensação de dispormos de mais tempo», justifica. 

Uma farmácia na aldeia tem de lutar pela sobrevivência. Faz menos negócio, mas colhe muito amor e produtos do campo: melancia, tomate, diospiro, figos da safra. «O espírito comunitário prevalece. No tempo das colheitas, os utentes enchem-me a carrinha», sorri a farmacêutica. 

Monsanto ostenta, desde 1938, o título de aldeia mais portuguesa de Portugal. Foi o desfecho de um concurso criado por António Ferro, político responsável pelo Secretariado da Propaganda Nacional no regime de Oliveira Salazar. O troféu, bem ao gosto da época, foi um galo de Barcelos em prata. Na Torre do Relógio, uma réplica testemunha até hoje o feito. 

À hora do crepúsculo, ouve-se os chocalhos do gado no pasto e a cantilena das tecedeiras de marafonas coloridas para turistas. À volta de uma cruz de pau, compõem uma boneca que celebra a deusa da fertilidade. Metem conversa: «Estamos a fazer marafonas, para a menina comprar». «Dá sorte e filhos», garantem. Em matéria de descendência já estamos tratados. Venha a sorte.



Depois de 36 anos na Marinha de Guerra, João Correia Soares alcançou a paz no meio dos tachos e das panelas. No seu restaurante Petiscos e Granitos brinda à vida e à singularidade do lugar com cervejas artesanais. Se ele tem mão para a cozinha, a mulher, Maria da Conceição, faz como ninguém adufes em alfazema para perfumar a roupa acabada de engomar. O adufe, instrumento de percussão genuinamente português, faz maravilhas nas mãos femininas. 


A Cascata do Pego é um lugar mágico, que convida à reflexão

De manhãzinha, a cascata do Pego, em Penha Garcia, tem música própria. Antes de lá chegar, nada como uma bica bem tirada por Manuel Carrasco, que reclama ter o melhor café da aldeia, e respirar o perfume dos canteiros de ervas aromáticas. A panorâmica envolvente é de cortar a respiração. Rochas verticais de olhos postos no céu compõem a rota dos fósseis, que convida a grandes caminhadas. 


Penha Garcia teve origem num antigo castro dos Lusitanos

Custa a crer que há 480 milhões de anos o mar se espraiava por ali, a uma dúzia de quilómetros da fronteira com Espanha. Vestígios de trilobites, animais que habitavam os antigos oceanos, provam-no. É do mar que Sofia Valada tem mais saudades. Por isso, na impossibilidade de se encontrar com o o​ceano Atlântico, visita muitas vezes esta cascata. «Há aqui uma energia incrível. Gosto de calar-me e ficar a ouvir o som do silêncio», expõe a farmacêutica. 


Sofia Valada, ribatejana de nascimento, já é beirã no coração

Domingos Rodrigues conhece estas paragens como ninguém. Há 15 anos que é o faz-tudo do Parque Icnológico de Penha Garcia. Assegura a boa manutenção dos trilhos e recolhe fósseis para mostrar aos turistas. As suas obras-primas são o moinho etnográfico e a casa do moleiro, que mostram como viviam os fazedores de farinha. Apesar da moagem fabril ter acabado com os moinhos de água artesanais, o pão ainda é um assunto sério na aldeia. Uma vez por semana o forno comunitário coze pão e o povo reúne-se para pôr as novidades em dia. A bica de azeite – pão achatado – é uma delícia. Na hora de a fotografar, já estava cheia de dentadas. 

Em Idanha-a-Velha, ao fim da manhã não se vê vivalma. Há muitas casas apalaçadas sem gente. A dos Marrocos, família latifundiária que dava sustento a muita gente, demorou 30 anos a ser construída, mas nunca chegou a ser habitada. O lagar de azeite funcionou até 1959, ano em que produziu os últimos 19 mil litros. Ainda pode ser visitado. A casa vai agora dar lugar a um hotel que pretende “mexer” com o turismo do concelho. 


O lagar de Idanha-a-Velha produziu os últimos litros de azeite há 60 anos​

No século anterior ao nascimento de Jesus, aqui foi fundada uma cidade romana chamada Egitânia. O Museu Epigráfico Egitaniense reúne o maior conjunto de epigrafia romana da Península Ibérica. Os visitantes são desafiados a decifrar palavras, desenhos e outras inscrições antigas gravadas na pedra. Entre altares, pedestais e blocos funerários, destaque para uma ara consagrada a Marte. 

O museu está instalado na Sé Catedral de Santa Maria, a quem o povo chama Sé Velha. Os frescos das paredes remetem para os cultos que por aqui passaram. Mandada construir, no século VI, pelo bispado da Egitânia, foi convertida em mesquita quando os muçulmanos invadiram a península e doada aos Templários pelo seu contributo para a Reconquista cristã. O templo é um dos palcos do festival internacional de música antiga “Fora do Lugar”, que se vai realizar de 22 de Novembro a 7 de Dezembro. 

A farmacêutica faz um intervalo numa das mais antigas fontes portuguesas. Na margem direita do rio Erges ficam as Termas de Monfortinho, que também remontam ao tempo dos romanos. As águas são adequadas para problemas de pele, respiratórios, reumáticos e do aparelho digestivo.  


A invulgar capela de Nossa Senhora de Fátima responde à necessidade de oferecer um retiro espiritual aos escuteiros

A capela de Nossa Senhora de Fátima, inaugurada em 2017, é a mais invulgar obra do concelho. O projecto ganhou três galardões nos prémios internacionais Architizer A+Awards.

​Foi erguida no Campo Nacional de Actividades Escutistas, situado num planalto com uma vista magnifica. António Lisboa, responsável pelo local, conta que a pequena igreja responde à necesidade de oferecer um retiro espiritual aos escuteiros. Tem a forma de uma tenda e simboliza, simultaneamente, o lenço que eles usam ao pescoço. Sofia Valada considera «um privilégio de excepção» assistir a uma missa ali. 


No Santuário de Nossa Senhora do Almortão a viagem espiritual acontece

No Santuário de Nossa Senhora do Almortão, os tons de azul puxam a cor do céu. Eugénia de Jesus Geraldes intitula-se a “ermitoa” do lugar. Recusa ser fotografada, mas abre-nos a porta deste santuário popular. Vive ali há sete anos e apanha cães abandonados. «Dou-lhes de comer e um lugar para dormir», explica, imparável, seguida pelos rafeiros Bolinha e Fofinha. Sofia Valada encontra neste lugar «equilíbrio interior», propício a uma «viagem espiritual». 

De portas abertas desde 1996, no Centro Cultural Raiano de Idanha-a-Nova a jornada é agrícola. A exposição permanente dá a conhecer a vida rural e como a Revolução Industrial chegou a estas paragens. Destaque para o trabalho braçal que alterna com máquinas que constituíram a revolução industrial do concelho. 



«Já vamos embora / cheias de alegria / adeus toda gente / até outro dia», entoam, ao entardecer, Lina Gameiro e “Ti” Nabais de Penha, acompanhadas pelo compassado do adufe. Estas mulheres, nascidas e criadas em Penha Garcia, são forças da natureza com vozes de arrepiar. 

As gentes da aldeia respondem às cantadeiras. O sol cai. Chegam homens e mulheres sem idade, que não esquecem a meninice, nem a vida dura no campo, adoçada pelas cantigas.​