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5 abril 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O mundo à beira-rio

​​Fenícios, cartagineses, romanos, árabes, ingleses: todos deixaram raízes nesta terra.

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​O caminho para o Pulo do Lobo, a maior queda de água no Sul de Portugal, faz-se por uma estrada de terra batida, a que se acede abrindo o portão de ferro azul da herdade com o mesmo nome. De um lado e do outro da estrada, cerros cobertos de erva muito verde, iluminada pelo sol, pintalgada de malmequeres, dentes-de-leão, rosmaninho. O balido das ovelhas e o som dos chocalhos misturam-se com a cantilena dos pássaros. Num corrupio, andorinhas, pardais, cucos e rolas cantam alegremente a Primavera.  

O rugir da água anuncia a cascata, que se aperta num estreito das margens do Guadiana, caindo por mais de 20 metros, para logo se espraiar num lago de espuma lamacenta. Dela escreveu José Saramago: «O rio ferve entre paredes duríssimas, rugem as águas, espadanam, batem, refluem e vão roendo, um milímetro por século, por milénio, um nada na eternidade». A distância entre as margens é tão curta que um lobo poderia transpô-las de um pulo, conta a lenda. O espectáculo é mais poderoso depois deste Inverno chuvoso. «Não se via um caudal tão forte desde 1997», garante a enfermeira Elsa Alho. O Guadiana é ponto central na vida dos mertolenses, que dele usufruem em piqueniques à beira-rio, ou em passeios de barco ou canoa.  


Ao longo da História, Mértola atraiu diferentes culturas devido ao cobre que saía da mina de São Domingos e era transportado até à costa através do Guadiana​​

O casario branco de Mértola ergue-se colina acima, coroado pelo castelo, o Guadiana aos pés. A vila de pouco mais de mil habitantes, encravada entre o Alentejo, o Algarve e Espanha, foi uma peça central no antigo Mediterrâneo. O solo revela, em camadas, vestígios da Idade do Ferro, época romana, primeiro cristianismo, período muçulmano e reconquista cristã. Diferentes culturas atraídas pelo cobre que saía da mina de São Domingos e era transportado até à costa, ao longo de 70 quilómetros, através do rio navegável, um autêntico ‘braço de mar’, onde todos os dias se sentem as marés. A herança árabe é celebrada nas ruas de Mértola a cada dois anos, no Festival Islâmico. «Há uma presença forte que nos puxa, um sentimento que nos identifica com estas raízes árabes», conta Elsa Alho.  


«Há aqui uma mescla fantástica de civilizações», entusiasma-se o arqueólogo Cláudio Torres, que escolheu Mértola como casa, há 40 anos

«Há aqui uma mescla fantástica de civilizações», entusiasma-se Cláudio Torres. O arqueólogo que viajou pela Europa e pelo mundo escolheu Mértola como casa, há 40 anos. «Um tipo vem para aqui, escorrega e já não regressa», brinca. O director do Campo Arqueológico propôs-se, e conseguiu, criar em Mértola uma «arqueologia do desenvolvimento», pondo os cacos e artefactos ancestrais ao serviço do progresso de «uma terrinha esquecida, perdida no fim do mundo». Os oito núcleos museológicos que atraem investigadores e 50 mil visitantes por ano enchem-no de satisfação e orgulho.  


As escavações no bairro islâmico revelaram casas do século XII, algumas equipadas com latrinas, outras com fossa séptica

O tesouro que deu origem à vila fica perto da praia fluvial da Tapada Grande, que no Verão se enche de nativos e visitantes, muitos deles espanhóis que atravessam a fronteira na aldeia do Pomarão. A mina de São Domingos fica a 20 minutos de automóvel de Mértola, mas é como viajar no tempo e no espaço. A exploração mineira vem do tempo dos fenícios e cartagineses e, mais tarde, dos romanos, mas é a marca da eficiente mão britânica, ali pousada por mais de um século, que permanece.  


Na aldeia construída pela companhia inglesa Mason & Barry, que geriu a exploração da mina de São Domingos entre 1864 e 1968, chegaram a viver 8.700 pessoas, hoje são cerca de 600

Na aldeia construída pela companhia inglesa Mason & Barry, que geriu a exploração entre 1864 e 1968, chegaram a viver 8.700 pessoas, hoje são cerca de 600. São Domingos foi das primeiras aldeias electrificadas de Portugal, com uma central eléctrica que alimentava a mina e o bairro inglês. Além dos mineiros, todo o tipo de operários trabalhava nas oficinas, onde até se construía as locomotivas que levavam o minério ao longo de 17 quilómetros, até ao porto fluvial do Pomarão, por onde seguia para a CUF, no Barreiro, Inglaterra e outros países. Havia 36 tabernas e mercearias, cineteatro, banda de música, clube de futebol, escola e hospital com assistência gratuita. Mais campos de ténis, golfe e críquete, mas só para os ingleses.  


Porto fluvial do Pomarão, por onde o minério seguia para a CUF, no Barreiro, Inglaterra e outros países

Não se pense que era o paraíso. «A vida era muito dura», garante António Evangelista, que viu o pai, o tio e o avô servirem a comunidade mineira. «Saíam da mina cheios de pó, de morraça, de silicose, muitos morreram disso. Havia muita tosse». Cada família tinha direito a uma casa de 16 m2, uma única divisão partilhada por pais e filhos. A mina trabalhava ininterruptamente, em turnos de oito horas. Os salários de 120 escudos por semana levavam muitos operários a socorrerem-se do contrabando transfronteiriço para alimentar as famílias. O alcoolismo era endémico. Quando a mina deixou de ser rentável e encerrou, foi a debandada para Lisboa, Bélgica, França, Holanda, Alemanha, Canadá. São Domingos tornou-se uma aldeia quase fantasma.  

Mais impressionantes do que as ruínas que testemunham o ofício mineiro são os restos das fábricas de enxofre, plantadas na Achada do Gamo, a três quilómetros da mina. Lembram uma paisagem lunar, com a terra laranja, roxa e preta, as águas estagnadas de cores doentias, o odor do enxofre no ar.  


Ninhos de cegonhas decoram cada árvore do caminho

Fora da mina abunda a vida, neste Alentejo serrano, na transição para o Algarve, feito de campos ondulantes de azinheiras, sobreiros, oliveiras e pinheiros mansos, cortados por estradas que sobem e descem em curvas suaves. Aparecem linces e veados nos sinais de trânsito, atravessam a estrada lebres e perdizes em voo baixo. Ninhos de cegonhas decoram cada árvore do caminho e lá muito alto, no céu, espreitam águias, peneireiros e até abutres. Os encontros nocturnos na estrada com javalis são tema de conversa nos cafés.  


Na aldeia de Corte Gafo, Leonor Raposo e o marido produzem queijo de ovelha curado, no modo tradicional

Na aldeia de Corte Gafo, um dos 126 povoados do extenso concelho, Leonor Raposo e o marido dão continuidade ao negócio familiar com 45 anos. Produzem queijo de ovelha curado, no modo tradicional. «Enchido à mão, usando cardo colhido nos campos e ovelhas da região», explica Leonor. O denominado queijo de Serpa alimenta-se dos rebanhos de toda a região até Castro Verde. Vale a pena também provar o famoso pão alentejano, as migas, a açorda, as sopas de tomate, os cozidos de grão e feijão, e os pratos de caça.   

A vida corre quieta pelas ruas íngremes e estreitas que sobem do rio ao castelo, o chão calçado de pedras irregulares. Ruas feitas de pequenos quintais com laranjeiras e vista para o rio e casas debruadas a amarelo e portas vermelhas, onde gatos preguiçam ao sol nos telhados e mulheres apanham roupa nos estendais.  


Natural de Mértola, a enfermeira Elsa Alho aprecia a paz e o sossego de Mértola

Na terra onde nasceu, a enfermeira do centro de saúde aprecia a paz e o sossego. Ter tempo. Os amigos convivem ao fresco da porta de casa, nos fins de tarde de Verão, nos cafés, na casa de um e outro. Nádia Torres recebe Elsa na oficina onde exercita a arte da joalharia, no rés-do-chão da casa de dois andares onde acolhe artesãos em residência artística. A oficina é o sonho concretizado da professora de artes, filha de Cláudio Torres, e isso sente-se nas peças inspiradas em achados arqueológicos expostas nas vitrinas, nos objectos que vestem o espaço, na voz de Nina Simone e na luz quente que enchem o ambiente. Em Mértola não falta nada, ou quase. «Venham visitar-nos. Precisamos de gente cá, gente casadoira», lança Virgílio Lopes. O investigador do Campo Arqueológico de Mértola, como quase todos os autóctones, sente saudades do barulho das crianças brincando nas ruas.


A oficina de joalharia é o local de trabalho de Nádia Torres e onde recebe artesãos em residência artística

 

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