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25 março 2021
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de Hugo Costa Vídeo de Hugo Costa

Mértola, cruzamento de culturas

​​​​Nesta «mescla fantástica de civilizações», revela-se a história do Mediterrâneo.​

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Quando o arqueólogo Cláudio Torres visitou Mértola pela primeira vez, estava longe de pensar que aquela seria a sua casa até hoje, já lá vão 40 anos. «Foi um arrebatamento ver este conjunto urbano excepcional, esta paisagem interminável fantástica», conta, ao recordar o dia em que visitou a vila pela primeira vez, atraído pelas descrições que fazia da terra Serrão Martins, então presidente do município e seu aluno na Faculdade de Letras de Lisboa.  

Hoje a vila tem pouco mais de mil habitantes, mas ao longo da História teve uma grande importância: foi «um porto fluvial fundamental, onde chegavam barcos do Oriente para recolher o cobre que fazia falta ao mundo mediterrânico», explica o arqueólogo. Fenícios, cartagineses, romanos, árabes, ingleses, várias foram as culturas atraídas primeiro pelo ouro e a prata, depois pelo estanho e, sobretudo, cobre da mina de São Domingos. O minério era depois escoado até ao mar, através dos 66 quilómetros de um Guadiana navegável ao sabor das marés.  

Em Mértola encontra-se uma «mescla fantástica de civilizações» que, mais do que se substituírem, se complementam, como Virgílio Lopes faz questão de frisar. «O que encontramos aqui é uma grande continuidade, temos a Idade do Ferro, o período romano, o primeiro cristianismo, o período muçulmano e a reconquista cristã, e disto tudo há vestígios que se sobrepõem, misturando-se», avança o investigador, que trabalha há 31 anos no Campo Arqueológico de Mértola, dirigido por Cláudio Torres. «A arqueologia ensina-nos que, embora haja momentos de ruptura, não há uma destruição massiva. As pedras deixam de fazer parte de um templo e passam a fazer parte de uma igreja e, depois, de uma mesquita». A igreja/mesquita de Mértola é disso exemplo, como também o é o castelo, com vestígios que vêm da Idade do Ferro.  

As escavações começaram em 1978, pela mão de Cláudio Torres, no bairro islâmico. Ali se encontra um bairro com mais de uma dezena de casas islâmicas, que chegaram à conquista cristã no século XII. É visível o pátio central, ao redor do qual vivia a casa típica do Mediterrâneo. A casa «virada para dentro», protegida da luz e do calor, e refrescada pelas águas conduzidas para o pátio. Tão modernas que havia latrinas, algumas com fossa asséptica e outras com um sistema de saneamento que empurrava as águas sujas para fora da muralha. 

Virgílio Lopes fala com a mesma paixão dos vestígios arqueológicos das diferentes épocas. Mais do que «os fogachos ou os cromos», interessa a «equipa toda», garante. Mostra o que, possivelmente, terá sido um complexo religioso, identificado por dois baptistérios, do século V, a que se acede por um corredor ricamente decorado com mosaicos que deveriam contar uma história, pois, explica o investigador, «a evangelização faz-se pela imagem e não pela escrita». Desce ao criptopórtico, a galeria abobadada subterrânea construída no século III ou IV com preocupações defensivas, visíveis nas seteiras, que foi depois usado como cisterna e, ainda, como lixeira «Foi aqui que a escavação começou, com os objectos encontrados pelas crianças que cá vinham brincar», conta.  

Mais de quarenta anos de escavações não esgotaram os tesouros de Mértola. «Continuamos a ter boas surpresas e, seguramente, ainda há muito para descobrir», garante o investigador. Os tesouros destas quatro décadas alimentam oito museus, que atraem à vila 50 mil visitantes por ano, para além de muitos investigadores, alguns dos quais criam raízes à terra.  

A dedicação de Cláudio Torres a Mértola frutificou e a arqueologia conseguiu levar o desenvolvimento à pequena vila alentejana. No quintal da sua casa, na encosta que leva ao castelo, entre as sombras das laranjeiras e a ampla paisagem sobre o casario branco, com o Guadiana ao fundo, o arqueólogo conta apaixonadamente o caminho que percorreu ao longo dos anos. Logo no início, a necessidade de, encontrado «o caco, o objecto, o artefacto», o expor ao mundo, associando-lhe «uma linguagem rápida, clara, evidente, daquilo que era a sua função no passado».  

O desejo de trazer uma massa de gente que não se limitasse a visitar os museus, mas alimentasse a hotelaria, a restauração, o comércio local, misturado com o receio de que demasiada gente provocasse uma invasão. A estratégia escolhida foi «evitar criar circuitos». A ausência de sinalética obrigava os visitantes a perderem-se ruas fora, perguntar, comunicar com as pessoas da terra. «Muitas vezes havia o convite para entrar, beber um refresco, um paleio que se prolongava. Isso criou uma dinâmica interessante entre o visitante, curioso, e o indígena, que se abria à novidade. Foi uma das grandes vitórias deste projecto», assegura. Perder-se nas ruas de Mértola é, seguramente, algo que vale a pena.

 

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