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7 junho 2021
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira Vídeo de André Torrinha Vídeo de André Torrinha

O militante do ânimo

​​AVC obriga António Colaço a dar de novo recados ao cérebro.​

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Ânimo, segundo o dicionário da Porto Editora: «força moral do homem; espírito; coragem; valor; disposição da vontade». A palavra persegue António Colaço há mais de 40 anos. Na vida do artista plástico, Ânimo é nome de projectos. «Uma holding», diz. Será, mas a matriz do modelo de negócio é cidadã. E pode sintetizar-se numa frase: incutir o «vício de pensar». Ânimo é, portanto, uma atitude. 

Acidente: «acontecimento repentino, fortuito e desagradável». Se acidente vascular cerebral, pia mais fino. Colaço, homem cuja biografia também inscreve o radialista, dinamizador do movimento de legalização das rádios-piratas, nos anos 1980, e o assessor de imprensa, no Parlamento, sofreu um AVC em Março de 2018. Internado no hospital de Abrantes, depois numa clínica no Montijo, foi afectado do lado direito. Cansa-se mais depressa, mas adapta-se. Precisa de novas posturas para pintar. Vê-se aflito para escrever, ou teclar no órgão, outra paixão. Através de exercícios, muitos dos quais na sua horta, testa quotidianamente as capacidades. Ou melhor: dá de novo «recados ao cérebro». 


​O ateliê, no Ninho de Empresas de Mação, é «uma casa aberta a todos»

Quem toma como máxima a ideia de que «a arte não existe, a arte somos nós» foi apanhado na curva. O AVC impôs-se; «deixou uma obra-prima». Todavia, não venceu, porque o hospedeiro o olha de frente. «Nunca desanimei. Digo para mim próprio: agora é assim, mas vou conseguir fazer melhor. Não chego lá de uma maneira, chego de outra». Ânimo, terapia de reabilitação. «Os médicos dizem que tive muita sorte. Quero aproveitá-la». 

“Ânimo ― artes plásticas e comunicação” é nome de ateliê, no Ninho de Empresas de Mação. 


Cada peça conta um pedaço da história de Colaço. Descreve-as quase com sofreguidão

Abre o portão devagar, para que se note a evocação, na maçaneta, do amigo Jorge Aleixo, falecido pouco antes da abertura do espaço, cuja inauguração tem sido adiada pela pandemia. Música de Bach na recepção – até pode ser executada pelo Colaço organista, titular da igreja matriz da vila. Ali, cada peça conta um pedaço da sua história. Descreve-as quase com sofreguidão. Fala a correr, tão frenético que, por vezes, é difícil seguir o galopante raciocínio. Dir-se-ia que um sentido de urgência o move, não vá o tempo esmaecer o dourado, a mais frequente cor da sua obra. Quem diria que teve um AVC?

​​O Citroën “arrastadeira” de 1938, que fixa a sua memória de garoto de cinco anos, está ausente, para reparação. A viatura é igualzinha àquela de onde saiu, num largo de Gavião – a terra natal – uma senhora que o beijou e lhe deu cinco tostões. Está coberta de «escrita transfigurada», imagem de marca das instalações artísticas de Colaço, sensível ao lado gestual, atraído pela caligrafia dos documentos antigos, influenciado pela professora primária que lhe impunha letra bonita. «Integro a escrita na obra para passar uma mensagem», afirma o artista plástico – não decorador! – que adora brincar com as palavras. A chaimite que levou para Mação é “Palavril”. Junta a expressão oral ao mês associado à democratização e logo se percebe o que homenageia. A exposição de carreira, que passou pela Assembleia da República, por Mação e por Gavião, oferece “50 anos a fazer P.Arte”. E ao projecto artístico em desenvolvimento gosta de chamar “Mação valente e imortal”. 


Não é esquisito na escolha de materiais. Ainda se dedica a «converter lixo em luxo»

Não é esquisito na escolha de materiais. Já no espaço Ânimo – Arte ao Domicílio, em tempos aberto no Montijo, convertia «lixo em luxo». «Se alguém está prestes a atirar uma coisa para o lixo, vou lá e o objecto, convertido, passa a ter lugar na sala». Bom exemplo é a velha balança por si transformada. Se o prato que simula barras de ouro perde peso, ganha o outro, onde está a Constituição, e os direitos que corporiza. 

O triplo A dos AAAnimados Almoços, sessões de debate com personalidades que promoveu durante anos na Associação 25 de Abril, acolhe Ânimo, Associação e Abril. 

«Tudo o que sou, se é que sou alguma coisa, tudo o que fiz, se é que fiz alguma coisa, devo-o ao 25 de Abril», proclama, indisponível para admitir que alguém ponha em causa a data histórica, de que foi um dos protagonistas. Não surpreende, por isso, que o ateliê esteja pejado de obras que a evocam. 

O cravo oferecido por uma mulher, quando Colaço integrava o destacamento da Escola Prática de Administração Militar que ocupou a RTP, faz parte, diz, do «relicário do meu 25 de Abril». Como se fosse peça religiosa, porque para si o evento adquiriu uma dimensão sagrada. Não menos associado a ele – embora produzido em Dezembro de 1973 – é o «desenho cubista», a sua “Guernica”. Explica com carinho cada traço da reprodução (ofereceu o original a Otelo Saraiva de Carvalho). É um libelo contra a ditadura. 

Ânimo foi nome de efémera revista e de blogue. Veículos de cultura, claro. 

Da “revista-contributo para intercâmbio cultural” entre concelhos da região – fundada em 1979, ainda os municípios não dispunham de serviços culturais – só saíram dez edições. O blogue, sob o lema “para tornar os dias mais leves” e com logotipo tomado de empréstimo ao designer italiano Piero Fornasetti, durou até ceder às credenciais tecnológicas do Facebook, no qual Colaço anuncia actividades e deposita testemunhos fotográficos da sua reabilitação, para que outros em idêntica situação acreditem que é possível. 

De comum, aquelas plataformas têm o empenhamento cívico. Que anos antes, ainda a democracia gatinhava, o levou a apregoar o «sindicalismo agrícola» montado na motorizada “Andorinha”, de 1968, agora no centro do ateliê – caligrafada, é claro! 

Ou que motiva a colocação de peças ao serviço de causas, como a que no 80.º aniversário de Abrantes serviu de rastilho à aquisição de um laser óptico para o hospital local. Ou que o impeliu a dar dignidade artística a objectos destruídos pelos incêndios de 2017, expostos em Mação, que viu arder 80 por cento do território. 


A primeira obra feita por António Colaço após o AVC (ao centro) só podia chamar-se “Reconstrução”

Aparas de tijolos, peças em ferro, a caneta usada para reaprender a escrever, uma tijela abrantina, uma garrafa: a primeira instalação feita por Colaço após o AVC só podia chamar-se “Reconstrução”. Concebida aos poucos, incorpora as datas marcantes da sua evolução. A 20 de Abril de 2018, voltou a conseguir assinar. Três anos volvidos, fervilha em projectos. Retomados os AAAnimados Almoços, agora descentralizados, está a “Abrir Abrantes”, às segundas-feiras, no Luna Hotel Turismo. É outro formato de debate, que recupera o título do seu programa na rádio Antena Livre, há mais de 30 anos. Prepara-se para expor no Sardoal, no âmbito dos “Encontros de Piano” – propõe-se pintar um piano, que oferecerá à vila. E aguarda um carro de mulas antigo, a submeter a operação semelhante. 

Chama-se a isto ânimo. Para continuar.

 

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