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9 novembro 2021
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins

O homem omnipresente

​​João Gomes Esteves apoiava discretamente os menos afortunados.​

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Margarida e Ana só após o falecimento de João Gomes Esteves, em Agosto, perceberam por que passava o pai tanto tempo ao telemóvel. E só agora descobriram algumas das actividades a que ainda se dedicava – de apoio aos sem-abrigo, a vítimas de catástrofes ou de deficiências –, que lhe exigiam contacto permanente e um ritmo de trabalhador que sai de casa de manhã e regressa ao fim da tarde. «Nunca soube ser aposentado», afirma Ana, engenheira industrial de formação, radicada no Canadá. «Trabalhou até ao último segundo», afiança Margarida, psicóloga responsável pela comunicação numa multinacional.

As duas filhas do presidente histórico da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA) sabiam há muito que a família e os amigos eram os «pilares» da sua vida. Nele, as duas dimensões completavam-se, criando o habitat natural de um homem que «não gostava de se isolar»; pelo contrário, adorava casa cheia. «Se alguém precisava de alguma coisa, o meu pai já estava presente. E resolvia», diz Ana. Dos amigos, extraía grande parte da sua motivação. Na família – alargada, bem entendido – «tratava de tudo»; era o «patriarca». Ao longo de um casamento de décadas – conheceram-se no Liceu de Portalegre – construiu uma relação de complementaridade com a esposa, Maria Júlia. Ele mais expansivo, ela mais introvertida.


Era um homem de família, sempre atento às filhas

O «amor incondicional» de um pai «sempre pronto para nos ouvir e aconselhar», que «dava opiniões mesmo que não as pedíssemos», mas apoiava, ainda que não concordasse com a decisão final, é registado por Margarida e Ana. «Muito inspirador, um modelo que cada uma de nós seguiu à sua maneira», marcou-as pelo sentido ético, pelo entusiasmo com que mergulhava em projectos e pela atitude para com o próximo – tratava da mesma maneira o CEO de uma multinacional e o porteiro da fábrica. «Como gestor, sentia-se completamente responsável por quem geria. Lutava por toda a gente». Por isso no velório apareceram pessoas com quem trabalhou há 40 anos. 

O retrato traçado pelas filhas de Gomes Esteves coincide com o de outras pessoas que com ele privaram. Não restam dúvidas de que era na vida privada o que revelava na pública. «Daquelas pessoas que sabemos que estão presentes quando precisamos delas», que «deixam de cá estar quando ainda fazem muita falta e estão na posse de todas as suas faculdades», descreve Maria de Belém, que o conheceu nos anos 90, quando era ministra da Saúde. Discrição, bondade e generosidade são as palavras que mais usa, ao referir-se ao amigo. Sintetiza: «homem de família, homem de bem, homem de palavra».

Presidente da Direcção da APIFARMA durante cerca de 12 anos, até 2006, Gomes Esteves ainda cumpriu mais 14, entre 2007 e 2021, na Mesa da Assembleia Geral (AG). Rui Rolo esteve com ele anos a fio, no tempo em que o Norte Alentejano «dominava» a associação: a Esteves, nascido em Nisa em 1944, juntavam-se Rolo, de Portalegre, presidente do Conselho Geral, e Chaves Costa, de Castelo de Vide, da AG. A amizade entre Rui Rolo e Gomes Esteves, que provinha do Gabinete da Área de Sines, assentava em alicerces sólidos, já que entraram no mesmo dia, 2 de Janeiro de 1997, para a Merck. Admitido como director da divisão veterinária, a sua área de formação, destacar-se-ia no grupo empresarial, até em cargos internacionais. «Dizia sempre que desejava que terminássemos os mandatos na APIFARMA ainda mais amigos do que quando os iniciávamos», diz Rolo, lembrando a atitude gentil: a cada convite para se candidatar aos corpos sociais, perguntava se estava disponível «para o acompanhar». «Era um senhor!». 


Em 19 de Dezembro de 2000, na assinatura do protocolo deontológico entre a Ordem dos Farmacêuticos e a APIFARMA

Gomes Esteves iniciou a carreira profissional como assistente da Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa, onde se licenciou, mas a sua biografia está indelevelmente ligada ao campo associativo da indústria – não apenas farmacêutica. Além da presidência da APIFARMA e da presença nas direcções das duas associações internacionais do sector, foi o primeiro vice-presidente da CIP, cuja Comissão Instaladora liderou. Nesta qualidade, representou a CIP/CEP, entre 2001 e 2014, junto da Confederação Europeia das Federações Empresariais.

«Tenho como primeira memória de quando cheguei à APIFARMA um andar de habitação adaptado a escritório, sombrio e solene, com móveis pesados e tristonhos reposteiros de veludo», escreveu Gomes Esteves na obra evocativa dos 75 anos da organização. Rapidamente percebeu que entre as prioridades teria de figurar a criação de um corpo técnico profissional. Daí a contratação de Isabel Saraiva, em 1987, ainda no mandato de Chaves Costa. Gomes Esteves, com quem trabalhou até 2006, já integrava a equipa. «Como presidente, tinha visão estratégica para a indústria farmacêutica. Traçava objectivos e cumpria-os», assinala hoje Isabel Saraiva, dando como exemplo o debate sobre o ajustamento da legislação nacional às normas europeias, no âmbito do Mercado Interno.

Convicta de que a sua ligação a empresas multinacionais consolidou ideias que já tinha acerca da importância de aspectos científicos e de inovação, Isabel Saraiva alude à dimensão internacional – isto é, à visibilidade adquirida além-fronteiras pela APIFARMA, durante os mandatos de Gomes Esteves. E sublinha o seu papel «pioneiro» na ligação a associações de doentes e nas questões deontológicas (em particular, a reformulação do Código Deontológico) – «a indústria deve-lhe isso para sempre».

«O grande legado dele na indústria farmacêutica foi melhorar substancialmente as relações entre os diferentes interesses no seio da APIFARMA», garante Rui Rolo, testemunha privilegiada da sua actuação. A mudança do modelo de quotização baseado na facturação, para o de «uma companhia, um voto», princípio democrático, retirou poder às grandes empresas e obrigou a um exercício de maior conciliação. «Não era fácil, mas conseguiu-o graças ao seu espírito de liderança». Um dos momentos em que Gomes Esteves se revelou «negociador com muita inteligência e paciência», na óptica de Rolo, foi o que conduziu à primeira baixa de preços de medicamentos, no tempo de Cavaco Silva. O líder da APIFARMA logrou assegurar que fosse mitigada. Nem sempre «ganhou as guerras», mas sabia equilibrar os interesses do Estado, cidadãos e indústria.

Maria de Belém assinou em 1997 o primeiro protocolo de colaboração entre o Governo e a Apifarma, que visava a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, ao fixar a contribuição da indústria para o controlo do crescimento de encargos com medicamentos comparticipados. Quase 25 anos volvidos, reconhece que «implicou grande confiança entre as partes». O facto de Gomes Esteves ser «muito respeitado no sector» ajudou ao desfecho. Nessa altura, contou também com a sua colaboração nas políticas de cooperação com estados africanos lusófonos – através, por exemplo, do fornecimento pela indústria farmacêutica de medicamentos a países afectados por epidemias. 


Foi condecorado pelo Presidente da República Jorge Sampaio, com a comenda da Ordem de Mérito

Entre ambos nasceu uma amizade que «perdurou para lá das funções ministeriais». Daí que ele tenha aceitado integrar o Conselho Geral do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, a que Belém preside, e participar nas actividades da Associação Dignitude, em que também está envolvida. Gomes Esteves – «sempre preocupado com a valorização da sociedade civil, quer na vertente privada, quer de economia social», segundo Isabel Saraiva – exerceu pro bono cargos em muitas outras instituições, como as fundações Portuguesa de Cardiologia, AFID Diferença – Associação Nacional de Famílias para a Integração da Pessoa Deficiente, AIP e Merck Sharp & Dohme. Agraciado pelo presidente da República Jorge Sampaio com a comenda da Ordem de Mérito, em 2006, foi ainda distinguido com medalhas de ouro pela AIP (2008) e pelo Ministério da Saúde (2015).
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