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13 agosto 2018
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«O fado obriga as pessoas a parar»

​​​​​​​​​​Para a fadista Gisela João, cantar o fado é cantar as histórias da vida de toda a gente. 

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​A música acompanha-a desde sempre?
A minha mãe sempre teve o cuidado, com o pouco dinheiro que havia, de comprar algumas colecções de discos. Lá em casa havia uma deusa, Elis Regina. Mas lembro-me de ser miúda e ouvir a Ella Fitzgerald, a Billie Holiday, o Frank Sinatra, o Jobim, o Vinicius, a Gal Costa e a Maria Bethânia. E eu fui ouvindo e conhecendo essas coisas. Mas nós éramos muitos, aparecia tudo partido, discos desenhados e riscados.

 Cresceu a tomar conta dos seis irmãos.
Sim. E acho que é por ser a mais velha dos sete e por vir de uma família de classe baixa que canto fado como canto. Se eu não tivesse tido a vida que tive não o entendia como entendo.

 Como é que o fado apareceu na sua vida?
Um dia, tinha eu oito ou nove anos, estava na cozinha e passou na rádio o “Que Deus me perdoe”, da Amália. E, ao ouvi-la cantar, achei que ela estava a falar sobre mim. Porque eu era miúda e não tinha tempo para brincar. Queria fazer as minhas birras, mas não podia porque tinha de ser o exemplo. Depois, ela diz: «Que Deus me perdoe, mas quando eu estou a cantar não há maldade no mundo». E eu identifiquei-me. Porque, quando cantava sozinha em casa gritava contra isso e punha para fora tudo o que sentia.

 


 O que mudou naquele momento?
A partir daí comecei a cantar fado nos intervalos da escola e em festas. Também participei numa espécie de “Chuva de Estrelas”, em Barcelos. Levava os sapatos da minha avó e umas roupas prateadas que fazia com a minha mãe – às vezes encontro fotografias e penso que «já naquela altura, gostava de surpreender». A minha mãe fazia-me uns papelotes. Como o meu cabelo era muito liso, caía tudo (risos). 

 Os seus amigos também a apoiavam?
Eu cresci a ouvi-los dizer que eu cantava música de velhos. E sempre foi muito irritante não conseguir explicar que a poesia é para toda a gente. Porque eu tinha oito ou nove anos e aquele poema cantado pela Amália disse-me alguma coisa. Para mim, isso era sinal de que toda a gente conseguia perceber.

 Conseguia lidar bem com isso?
Até à adolescência sim. Mas depois cheguei à ‘idade do armário’, em que achamos que sabemos tudo e o que os outros pensam de nós é muito importante. E aí já não era cool cantar fado. Só as pessoas mais próximas é que sabiam. Quando comecei a sair à noite, no meio da loucura das festas de techno e house, cantava fado ao ouvido dos meus amigos. E foi assim que consegui mudar a opinião deles.

 Hoje acha que qualquer pessoa pode ouvir fado e identificar-se?
Claro. O fado são histórias da vida de toda a gente. Está na sua génese. É uma música que vem do povo, das ruas. E para mim só faz sentido se eu estiver a cantar uma letra que tanto possa ser entendida pela minha avó, que fez a quarta classe, como por um senhor doutor muito letrado e viajado pelo mundo inteiro. Cada um com a sua vivência.  

 É isso que a encanta no fado?
O género musical que eu canto e amo tem um poder: obriga as pessoas a parar. Com este corre-corre em que vivemos, deixámos de sentir as nossas emoções e de ouvir o nosso corpo. E isso para mim também é muito importante. 

 


 Nos concertos sente que consegue fazer as pessoas parar?
Seria hipócrita se dissesse que não. Uma das coisas que eu penso muitas vezes é "se houver uma pessoa ali no meio que esteja atenta, é para essa pessoa que eu vou estar a cantar". Isso faz toda a diferença.  

 Os seus espectáculos são muito intimistas.
Sim. Eu costumo pedir às pessoas que imaginem que estão no meu jardim e que somos todos amigos. E que eu estou ali a contar-lhes histórias sobre o amor e sobre a vida. Porque eu acredito que a música só funciona assim. Não pode haver um distanciamento entre quem está no palco e quem está no público.

 E qual é a reacção do público estrangeiro?
Costuma-se dizer que a música é a linguagem universal e de facto é. A música ultrapassa a palavra. As pessoas não percebem o que eu estou a dizer, mas percebem a profundidade que o género tem. Os instrumentos dão poder ao poema. E o que eu canto em palavras, as pessoas sentem em música, exactamente da mesma forma. 

 O que mudou do primeiro para o segundo disco?
Sinceramente, não mudou nada. O primeiro chama-se “Gisela João” – sou eu. Na altura foi tudo tão grande e fugaz que, quando quis gravar o segundo disco, confesso que estava assustada. A expectativa era muita e só temos o factor novidade uma vez na vida. Eu sei que muita gente estava à espera que eu fizesse algo diferente. Mas um dos meus maiores medos é perder-me no processo e fazer por fazer. Gosto de arriscar – ou pôr a cabeça no cepo, como se diz na minha terra – mas não de forma fácil. O segundo disco chama-se “Nua”, porque quando canto mostro tudo o que sou. É como se fosse criança outra vez.

 E como é o processo de selecção das músicas?
Muito difícil. Eu não lido bem com escolhas (risos). Escolher músicas que vão ficar gravadas para sempre é complicado. Eu faço uma lista muito grande e depois acaba por ser uma selecção natural. E escolho sempre músicas que falem do mesmo tema: o amor. 


 
 Porquê o amor?
Nós vimos ao mundo por causa do amor. E, quando vamos embora, o que levamos da vida não é o dinheiro. São as partilhas de amizade, que é a forma mais pura de amor, para mim. A verdadeira riqueza é a forma como nos damos às pessoas. Sem capas e sem filtros.  

 E o que sente ao ver o disco editado?
Antes são uns nervos miudinhos, que nem sei explicar. Quando ele sai, sei que fiz o meu melhor e aquilo em que acreditava. Às vezes recebo mensagens a dizer que alguém comprou o disco e o enviou para uma pessoa que está do outro lado do mundo. E fico muito feliz.  

 Há pouco tempo estreou-se no teatro. Como foi a experiência?
Espectacular. Nem tenho palavras. Foi super desafiante. A repetir!

 Tem energia para dar e vender. O que a mantém equilibrada?
Fazer exercício físico é fundamental para mim. Não só porque sou muito inquieta, mas também porque melhora a minha capacidade em palco. Dormir bem e manter uma alimentação saudável também é muito importante. E, acima de tudo, resguardar-me. Se me convidam para beber um copo numa esplanada num dia de vento, já sabem que vou recusar (risos). 

 O que lhe falta fazer?
Tanta coisa. Todos os dias tenho mil ideias. Nunca paro. E sou muito picuinhas, às vezes até demais. Mas acho que, se não fosse assim, eu não seria a Gisela que sou. Nós devemos estar em paz com quem somos e não querer ser aquilo que não somos.

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