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14 setembro 2018
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins Fotografia de Direitos Reservados Fotografia de Direitos Reservados

O bastonário inimigo da pantufa

​​​​​​​​​​​Nome de Alfredo Albuquerque é incontornável na história da Ordem.​

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Um fala-barato, Luciano contava estórias estapafúrdias, intercaladas de sábios conselhos – «Que Deus nos livre dos homens de verdade absoluta, daqueles que só vêem a sua verdade». Era o involuntário responsável por um registo nada institucional, o que menos se esperaria em editoriais do Boletim Informativo da Ordem dos Farmacêuticos (OF).  Talvez Luciano servisse ao autor – como heterónimo ou alter ego – para dizer o que não podia dizer na farda de bastonário. Mas nem disfarce era, porque assinava sempre A. de Albuquerque, por vezes juntando o cargo e o grau (prof. doutor).

No primeiro editorial em que convocou conversas com o amigo Luciano, em meados de 1987, Alfredo Albuquerque, falecido em Junho aos 90 anos, esclareceu que «o humorismo é uma maneira que considero menos maçadora, mas também válida, de dizer coisas sérias». O título – “Istórias [sic] da carochinha” – não enganava. Em prosa culta, mas divertida, dizia verdades, as suas verdades, mas universais. Anos antes, já se mostrara avesso a paninhos quentes. O incansável fundador-director-redactor do boletim abrira logo no número inaugural, em 1983, a caça ao comodismo. «Dá um triste sinal de si uma classe que teima em não tomar conhecimento dos seus problemas», escreveu, desafiando os farmacêuticos a largarem «a pantufa» e «a telenovela». E a questionarem-se, à boa maneira de John Kennedy: «Que tenho feito em favor da minha Ordem?».

Numa década mal medida como bastonário – interinamente de 1981 a 1983, substituindo Alberto Ralha; eleito entre 1983 e 1989 – deixou marcas duráveis. A classe, como assinalou a OF na hora da despedida, deve a Alfredo Ribeiro Guimarães de Amaral e Albuquerque parte do prestígio adquirido e a instituição colhe os frutos do processo de modernização que empreendeu. Nascido no Porto em 4 de Junho de 1928, filho do professor de Farmácia Aníbal Albuquerque, estava talhado para voos académicos. Licenciado em Medicina e em Farmácia, em 1957, doutorou-se oito anos na faculdade que o pai chegou a dirigir. Até à aposentação como catedrático, em 1997, foi regente de mais de duas dezenas de disciplinas, das áreas da Farmácia Galénica, Farmacognosia e Farmacodinamia/Farmacologia.


Foi regente de mais de duas dezenas de disciplinas na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto


No período em que a Faculdade de Farmácia da Invicta era a única do país, sublinha o obituário da Universidade do Porto, muitos futuros farmacêuticos frequentaram as suas aulas. Entre eles, a filha mais velha. «As pessoas tinham a sensação de que eu era favorecida, mas sofri um pouco, porque ele era mais exigente comigo», afirma. Para Fátima Albuquerque, a carreira farmacêutica surgiu como natural. Já dois irmãos seguiram Medicina, a outra formação do pai. Um deles, Aníbal, hoje com 63 anos, recorda as suas directrizes. «Disse-me: "Tens de tirar um curso. Agora, escolhe". Somos uns privilegiados por termos cursos superiores».

«Um dos professores mais brilhantes que tive». Rocha e Costa, que foi desafiado por Alfredo Albuquerque para a equipa da OF, não o faz por menos. Vogal da Direcção (1983-1986) e presidente, até 1989, da Secção Regional do Porto, acompanhou o seu percurso. Não duvida de que na Ordem «desenvolveu a sua vocação societária». No meio universitário, «enfrentou alguns obstáculos para singrar na carreira». Como «não entrava em jogos palacianos» e, sendo reservado, não gostava de se destacar…

A actividade associativa no Sindicato Nacional dos Farmacêuticos, convertido em Ordem em 1972, tê-lo-á seduzido mais do que a docência. Presidente da Secção Regional do Porto, em 1973, não foi afectado pela mudança de regime político: manteve-se no cargo até 1980 e, por inerência, integrou a primeira Direção da OF eleita após o 25 de Abril de 1974. Tão reservado e discreto quanto perspicaz e inteligente – na descrição de Rocha e Costa – como bastonário travou de peito aberto várias batalhas. Destaca duas, ambas em 1987, que venceu: a defesa do papel da classe, ameaçado pela tentativa de alteração da lei da propriedade de farmácia, através de uma declaração de inconstitucionalidade; e a manutenção do direito dos farmacêuticos a exercerem funções de directores-técnicos de laboratórios de análises clínicas. Para combater o regresso ao modelo da Ditadura, criou um 'gabinete de crise'. Não se inibiu de entrar em conflito com a Ordem dos Médicos. O Supremo Tribunal de Justiça dar-lhe-ia razão.

Rocha e Costa menciona a aquisição do edifício onde hoje funciona a secção portuense da OF como um importante legado dos mandatos de Albuquerque. E regista o facto de ter sido «o grande impulsionador do relacionamento com farmacêuticos de países de língua oficial portuguesa e com Espanha». O Consejo General de Colegios Oficiales de Farmacéuticos atribuiu-lhe o título de Consejero de Honor. Bem merecido, já que era «um homem do mundo, com vistas largas».

Na história da Ordem, o seu nome é incontornável. Está inscrito no primeiro Código Deontológico da profissão; na fundação do Centro de Informação do Medicamento; no 1.º Encontro Nacional de Farmacêuticos; na instituição do Dia do Farmacêutico (26 de Setembro); na criação da Medalha de Honra, que ele próprio receberia, em 2001. Cinco anos volvidos, a instituição, então liderada por Aranda da Silva, prestou-lhe homenagem.



Durante anos director-técnico da companhia portuense Paracélsia, Alfredo Albuquerque participou activamente no Conselho de Deontologia da APIFARMA. Nos anos 70, bateu-se na OF pelo enquadramento da actividade farmacêutica, através da criação dos colégios de especialidade. Assim se tornaria um dos primeiros farmacêuticos portugueses com o título de especialista em Indústria Farmacêutica. Uma farmácia é que nunca quis abrir, nem nos tempos em que era um bom negócio, por entender que não se compaginava com as funções de bastonário.

«Deixa imensa saudade e um exemplo de bondade, profissionalismo e integridade», diz o filho. Aníbal Albuquerque sublinha o empenho do pai na ajuda aos mais desfavorecidos: em 1974, criou a Associação Portuguesa para a Defesa da Família, entretanto extinta, que concentrava preocupações nas famílias numerosas. Como a sua, que, alargada a netos, noras e genros, reunia invariavelmente nos almoços de domingo.

Apreciador de arte antiga e de música clássica, «gostava de fotografar, embora, paradoxalmente, tivesse muito poucas fotografias dele próprio». À escrita, primorosa, juntava o hobby do coleccionismo. Acumulou peças de farmácia, em porcelana, dispostas com tanto método como as velhas máquinas fotográficas, que encantavam quem o visitava. «A paixão dele eram essas máquinas, compradas em leilões um pouco por todo o mundo, que reparava. Estão todas funcionais», afiança Aníbal Albuquerque.


Todas as máquinas fotográficas da sua colecção estão funcionais, porque tratou ele próprio da reparação
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