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23 julho 2018
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins Fotografia de Direitos Reservados Fotografia de Direitos Reservados

O farmacêutico dos sete instrumentos

​​​Uma vida cheia de contributos para a sociedade foi reconhecida pela Ordem e pelo Ministério da Saúde.

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«O que é o sucesso, ou melhor, como se avalia o sucesso, quando se considera o conjunto de acções que se vão desenrolando no dia-a-dia, sem que se espere uma conclusão, o resultado de cada uma, mas antes a sua projecção no futuro?». A interrogação, formulada por Carlos da Silveira em entrevista à Farmácia Portuguesa, em 1993, exprime a atitude que tomou perante a vida.

Ao antigo bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, falecido em Maio, aos 95 anos, pouco interessava a espuma dos dias. A repercussão dos seus actos no futuro, sim, fosse qual fosse a dimensão em que intervinha. E interveio em várias, sempre com reconhecida competência: como professor universitário, oficial farmacêutico naval, quadro do Ministério da Saúde ou representante institucional da classe.

Nascido em Lisboa a 17 de Abril de 1923, Carlos Fernando Costa da Silveira estudou no Liceu Camões. Poderia ter sido um artista – cedo os professores lhe detectaram queda para as letras e para a música, paixão que perdurou. O piano, confidenciam familiares, «foi desde muito novo o seu instrumento de eleição», embora nunca tivesse adquirido formação musical.

Sobrinho de António da Silveira, presidente do Grémio Nacional das Farmácias entre 1950 e 1963, foi o único membro do clã que lhe seguiu as pisadas. Contudo, para evitar conflitos familiares, não tomou de herança a farmácia do tio. Mal concluiu a licenciatura na Universidade do Porto, em 1945, vestiu a farda e foi trabalhar para uma farmácia das Forças Armadas. A carreira militar – chegou a capitão-de-mar-e-guerra, patente que nenhum outro farmacêutico atingiu até hoje – foi a sua praia durante 43 anos. Ou melhor: uma das praias onde desembarcou o seu saber técnico. Primeiro director do Laboratório de Análises Fármaco-toxicológicas da Marinha, foi ainda subchefe da farmácia do Hospital da Marinha e subdirector do Serviço de Saúde Naval. Armada reconheceu, por diversas vezes, a sua prestação. Em 1989, por exemplo, atribuiu-lhe a medalha de Serviços Distintos (Ouro).


A Armada prestou homenagem ao capitão-de-mar-e-guerra, patente que nenhum outro farmacêutico atingiu 

Aluísio Marques Leal manteve com ele uma relação de amizade de quatro décadas, recordada na referida edição de 1993 da Farmácia Portuguesa. Ambos fizeram parte do corpo redactorial de revistas especializadas; ambos se envolveram na elaboração do Estatuto de Farmácia Hospitalar, nos anos 60. O prestigiado professor, falecido em 2016, fazia questão de salientar o facto de Silveira ter realizado, «praticamente como autodidacta », a investigação conducente ao doutoramento, em 1966.

Mais do que orientador da tese, Aluísio assumiu-se como «um dos elementos de pressão», consciente de que a Universidade do Porto deveria aproveitar as qualidades do doutorando. Aproveitou-as a de Lisboa, onde se tornaria catedrático, quando já se concentrara na Bioquímica. Tendo participado na criação do Centro de Metabolismos e Genética, antepassado da Sociedade Portuguesa de Doenças Metabólicas, quando ascendeu à presidência do Conselho Científico da Faculdade de Farmácia convidou Aluísio Marques Leal, já reformado, para leccionar a disciplina de Farmácia Hospitalar.


Carlos da Silveira deixa a marca do seu saber técnico em vários domínios

Carlos da Silveira deixou o seu nome indelevelmente ligado a esta área. No Ministério da Saúde, assumiu várias funções, entre 1961 e 1974. Inspector superior de Farmácia Hospitalar e membro da Comissão Permanente da Farmacopeia Portuguesa, criou, em 1962, o Serviço de Farmácia Hospitalar da Direcção-Geral dos Hospitais, cuja direcção assumiu. Foi neste terreno que Odete Isabel o conheceu. Silveira convidou a jovem em início de carreira nos Hospitais Civis de Lisboa a desenvolver os serviços farmacêuticos nas unidades do Norte do país.

A antiga presidente da Associação Portuguesa de Farmacêuticos Hospitalares deve-lhe a paixão por esta área. Mais: garante que foi o «escultor» da sua carreira profissional. «Um amigo e um mestre, que acompanhei ao longo da vida. Com a sua morte, os farmacêuticos ficam mais pobres», afirma Odete Isabel, com emoção, lamentando que, na mesma semana, tenha partido também António Arnaut, outro grande amigo.

Membro da Comissão Instaladora do Instituto Ricardo Jorge, entre 1974 e 1976, a colaboração de Carlos da Silveira revelar-se-ia decisiva na concepção, organização e instalação do Laboratório de Comprovação de Medicamentos. Mais uma peça do seu rico património de conhecimento, que usaria entre 1989 e 1995, como bastonário da Ordem, em cuja fundação participara.


A valorização dos aspectos assistenciais da profissão foi a sua prioridade na liderança da Ordem

No cargo, prestou particular atenção aos aspectos assistenciais da profissão, quer em meio hospitalar, quer comunitário, interligados com a componente científica. A actual bastonária destaca esse legado: «Era muitíssimo intransigente em matéria de qualificação e de excelência», porque sabia que «a parte assistencial é fundamentada na formação académica de excelência». Ana Paula Martins reconhece que tal posicionamento pode ser interpretado como «um pouco corporativo». Sustenta, porém, que «a função de regulação exercida pelas ordens implica também atribuir qualificações de forma responsável, perante o Estado e os cidadãos», perspectiva de que Silveira não abdicava.

Procurava consensos. «Nunca queria concretizar projectos sozinho». Homem «do mundo global, antes da Internet», com «enorme visão estratégica», era, «antes de tudo o mais, um farmacêutico naval».

O retrato traçado pela bastonária inclui também o facto de a sua gestão na Ordem não ter sido isenta de «combate e conflito». «Soube afastar-se no momento certo», conclui.

Uma vida tão cheia de contributos para a sociedade seria reconhecida em vários momentos. Comendador da Ordem Militar de Avis, em 1962, foi distinguido com o Prémio Nacional de Saúde 2009 e, em 2012, com a medalha de Ouro da Ordem dos Farmacêuticos. «Não menos importante, porque com uma especial dimensão humana, o nosso pai foi alvo de uma particular atenção, carinho e reconhecimento da parte de antigos alunos e de muitos dos que com ele se cruzaram profissionalmente », assinalam os filhos, que subscreveram um depoimento conjunto para esta evocação.


Uma vida cheia de contributos para a sociedade foi reconhecida pela Ordem e pelo Ministério da Saúde

Profundamente culto, Carlos da Silveira detinha uma «invulgar e plurifacetada inquietação intelectual », notam os filhos. Continuou activo até ao fim, muito ligado à família. Viúvo há quatro anos, ocupava-se, na sua casa em S. Pedro do Estoril, do registo de «memórias e pensamentos», certamente com a sua rigorosa caligrafia. Nos últimos anos, dedicou-se à investigação histórica das misericórdias e das suas raízes familiares. Sempre com o piano – e CD de jazz e música clássica – por perto. Um eterno melómano, que, como nota Ana Paula Martins, aprendeu italiano a ouvir ópera.
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