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3 agosto 2023
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de João Lopes e Rodrigo Coutinho Vídeo de João Lopes e Rodrigo Coutinho

«No palco transformo-me num super-herói»

​​​​​​​​António Ferrão, próximo de todos e cada um,​ é um de nós e é o super Toy, a personificação da festa.​

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[Toy]: Antes de começarmos, podemos tratar-nos por tu?

Nasceste na música ou a música nasceu em ti? 
Não sei, um pouco de ambos. A música faz parte de mim desde que me conheço. A minha mãe dizia que eu comecei a cantar antes de falar. Contava que estava ao colo dela aos oito meses, a minha irmã começou a cantarolar e eu imitei-a na entoação. Aos cinco anos já tinha preceito a tocar bateria. Ninguém me ensinou.

Influência do pai, músico amador?
Facilitou, é claro. O meu pai, quando ia tocar nos bailes, levava sempre a mulher e os filhos. Lembro-me de pegar numa guitarrinha de plástico e ir para cima do palco com ele. Em casa tínhamos um violino, um banjo, um contrabaixo… Ele ensinou-me o dó maior e eu aprendi o resto sozinho. Não toco violino porque não tenho pescoço, mas os instrumentos de cordas deixaram de ter segredos.


«A música é fácil para mim: ouço uma canção, pego na guitarra e toco»

Tiveste formação musical?
Estudei solfejo, com 11 anos, mas sou preguiçoso para as coisas que acho chatas, e não avancei muito. Na verdade, não precisava. Tinha e tenho um ouvido bom, é o que me safa! Tão bom que o maestro da orquestra do coro infantil de Setúbal, onde tocava guitarra, estava convencido de que lia as pautas, quando ouvia os outros a tocar no primeiro ensaio e no segundo já sabia aquilo de cor.

Cordas, bateria…
…E teclas. Aprendi de forma muito engraçada. Vivi na Alemanha e quando regressei a Portugal entrei para uma editora discográfica, a Discos- sete, pela qual lancei alguns álbuns, fui ao Festival da Canção em 1990, etc. O Ricardo Landum, produtor, sofreu um acidente e, na sua ausência, a dona da editora convidou-me para produzir um disco da Chiquita. «Você tem jeito para isto», disse ela, e eu aceitei. No processo, dei-me conta de que precisava de um teclista. Eu tinha noção da localização das notas num teclado, mas não sabia tocar. Ainda assim, pus-me a comparar com a guitarra, e percebi que a combinação de dó, sol e mi faz dó maior; a combinação de sol, si e ré faz sol maior… Uma vez apreendida a dinâmica, toca-se. E toquei, sem saber, todas as trilhas de teclas daquele álbum.
 

Toy tem uma legião de fãs, a quem dá muita atenção em todos os concertos

És o homem dos sete instrumentos?
Acho que sou o típico português: um desenrascado, por necessidade. Sempre achei importante tocar um instrumento, para me acompanhar a cantar: o instrumento faz a harmonia, a voz faz a melodia. Esse era o meu forte, não era escrever letras. Mas como não tinha ninguém que mo fizesse, comecei a escrever e continuei. Há quem considere que escrevo muito bem e neste momento também acho. Quando quis ir a estúdio gravar, como não tinha dinheiro para contratar um maestro, comecei a fazer os arranjos, e quando percebi que as músicas eram gravadas por pistas, passei a gravar todos os instrumentos. Hoje é diferente. Tenho ótimos músicos, muito melhores do que eu, que chamo para trabalhar comigo. Mas ainda sou eu, por exemplo, que faço os procedimentos todos dos espetáculos para as câmaras municipais. O tempo que vou perder a ensinar alguém, faço eu.

Dirias que és perfecionista?
Sim, em tudo. E chato com o meu pessoal, embora não tenha razão de queixa: são todos ótimos. Tem a ver com a qualidade do concerto. O espetáculo tem de ser bom e para tal é preciso haver homogeneidade entre os músicos, a iluminação, o som. Isso tem de ser ensaiado, conversado, trabalhado. Mas houve uma altura em que não pensava assim.

Porquê?
A música é fácil para mim: ouço uma canção, pego na guitarra e toco. Para quê ensaiar? Estava errado e talvez por isso muitos colegas meus, porventura com menos faculdades musicais, têm muito sucesso, porque trabalham imenso na produção. Para mim, a imagem não era importante, o que importava era saber cantar, e siga. Mas não é assim. Tendo nascido com o handicap de não ser um homem bonito, tenho de esforçar-me um bocadinho mais. Embora hoje, com tudo o que faço, as pessoas já não olhem para mim como um músico. Veem-me antes como um entertainer, um gajo porreiro, um louco saudável.


«As pessoas já não olham para mim como um músico. Veem-me como um entertainer, um gajo porreiro, um louco saudável»

E é assim que te sentes, um entertainer?
Para mim, é isso mesmo. Sabes, sou alguém que gosta de se sentir em família. Quando estou com o público é assim que me sinto, em família e com amigos. Adoro o palco. O que mais gosto é de estar em cima de um palco, com a banda atrás, a suportar este louco que faz 75% de alinhamento e 25% de loucura. Há uma energia específica, especial. Quando vemos aqueles filmes de super-heróis, em que eles vestem o fato e se transformam, é o que acontece comigo quando entro em palco:  transformo-me. Fico com mais força, mais energia.

E a inspiração para a vasta obra, de onde vem? 
Não sei explicar. As coisas saem-me facilmente… Por exemplo, sou capaz de decorar, em pouquíssimo tempo, o nome das pessoas que constituem uma comissão de festas. Há dias eram 70. No meio do concerto, pego na guitarra e, de improviso, faço uma canção com todos os 70 nomes. O efeito é brutal! Não conheço mais ninguém que o faça.

Dizias há pouco que foste para a Alemanha. Tinhas 17 anos, foste fazer o quê?
Casar-me. Ou casava ou ia para a tropa. Conheci cá a mãe dos meus filhos, tinha vindo de férias. Começámos a trocar uns beijinhos, isto estava mau por cá, eu queria trabalhar, ganhar dinheiro… Sempre quis ser independente. Arranquei para a Alemanha e casei-me. Fiz alguns biscates, dei aulas de Português a miúdos, formei conjuntos de baile, de jazz, de guitarras, um grupo de rock, os Prestige, com o qual gravei o primeiro single. Entretanto, o meu filho Leandro fez cinco anos. Eu tinha 25, comecei a pensar que se ele entrasse na escola alemã nunca mais me vinha embora, e decidi: «É já hoje».

Não tencionavas ficar?
De forma nenhuma. Fiz muitos amigos, mas aquilo é frio a todos os níveis: o clima, o povo… queria voltar à minha terra. Eu nem sequer saio da zona de Setúbal, onde nasci. Quero estar perto da minha felicidade e do meu bem-estar.


O carinho dos fãs é retribuído com as pausas para fotografias

Perto das sardinhas escochadas…
Sim, o petisco dos pescadores setubalenses. Adoro. A sardinha gorda do verão, conservada em sal e comida, cozida ou assada, no defeso [inverno]. O meu avô fazia, hoje faz o meu amigo Vítor, o do restaurante onde, há 16 anos, tive um AVC.

De que forma é que esse episódio marcou a tua vida?
Acho que em nada. Só me lembro nas entrevistas. O que, às vezes, não é bom. Mas estava a atravessar uma fase muito conturbada, coisas que nos acontecem na vida e que, a dada altura, se tornam muito pesadas. Estive cinco dias no hospital, e só então soube que tinha tido um AVC. Fiz medicação e dieta durante algum tempo, mas foi só. Gosto muito de comer… adoro vinho… Sou, aliás, praticamente enólogo. Cheiro e provo vinhos, distingo as castas… Para mim, o vinho é cultura em estado líquido. Pela minha carreira, sim, fiz mudanças. Entre maio e setembro, por exemplo, não bebo uma gota de álcool. É fixe, porque sempre perco peso, mas é um sacrifício em prol da profissão.

Lidas bem com o envelhecimento?
Tenho 60 anos, o que tem muita piada porque não me sinto como tal. Normalmente penso no hoje, no amanhã e no depois de amanhã. O resto, é deixar andar. 

Que outros cuidados tens devido à profissão? 
Todos os possíveis. Bebo muita água, pratico desporto, ouço muita música, e procuro ser uma voz ativa na promoção das condições necessárias para que a cultura continue a ser o alimento fundamental do espírito das pessoas.

Essa é a tua causa?
Uma delas, sim. Durante a pandemia, foram o teatro, o cinema, a literatura, a música… que “alimentaram” as pessoas que estavam em casa. Nesses dois anos, quem ainda não o tinha conseguido percebeu a falta que a cultura faz. Mas é preciso ser consequente. Um Estado que não se preocupa em ter uma sociedade educada e culta é como um pai que não educa os filhos. É preciso investir mais nas pessoas, na cultura, na educação, e menos em aviões e automóveis.


«Procuro ser uma voz ativa na promoção das condições necessárias para que a cultura continue a ser o alimento fundamental do espírito das pessoas»​

Dizias que praticas exercício, estás a falar de futebol?
Sim, jogo às segundas e quintas-feiras. E de sexo, também faz parte. É extremamente importante a pessoa sentir-se bem consigo, sentir-se viva. Assim como o é falar disto, porque, para muita gente, ainda é um tabu. É preciso encarar o sexo com maior naturalidade, porque ele contribui para a felicidade e é parte integrante da nossa saúde, física e mental. Lembro-me de ouvir conversas, queixas da minha avó à minha mãe, em que a vida íntima era um fardo. Acredito que a minha avó tenha sido infeliz a vida toda, muito por falta de comunicação. Os temas, todos os temas, têm de ser falados.

Os teus avós eram espanhóis. A fiesta corre-te nas veias?
Sim, mas neste momento o que mais gosto de fazer quando estou em casa é estar no sofá a ver uma boa série. E, para ser perfeito, com alguém a massajar-me os pés. Ah! E gosto de ir à pesca.

Já és avô.
Sim. Tenho uma netinha maravilhosa, que faz cinco anos agora em agosto, filha do Leandro.

Tens três filhos. Como é a vossa relação?
Boa. Não é por acaso que aquelas coisas que normalmente as filhas contam às mães eles contavam ao pai. O Leandro perguntou-me se havia de ir para Medicina ou para Direito, e eu mandei-o dar uma volta, porque ele gostava era de Cinema.

Algum deles herdou a tua rebeldia?
Não, eu era péssimo. O meu filho Leandro foi delicioso de criar; a Bia, a mais nova, também foi relativamente fácil. Talvez a mais exigente tenha sido a Lara, pela teimosia. Nisso sim, era como eu. Eu era muito teimoso. Sou! Estou mais culto e mais educado, mas teimoso continuo.​

 

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