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3 dezembro 2021
Texto de Maria Jorge Costa Texto de Maria Jorge Costa Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira Vídeo de André Oleirinha Vídeo de André Oleirinha

Nisa: até no nome é mulher

​​​​​​​​​Vila das artes tem mão feminina.​

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As jovens casadoiras de Nisa faziam o enxoval para juntar dinheiro no início de vida. Começavam bem cedo na arte de bordar pela mão experiente de bordadeiras, as “mestras”. Na véspera do casamento, as artes feitas pelas moças eram expostas no quarto da noiva, para venda. As melhores bordadeiras conseguiam verdadeiros dotes.

Havia bordadeiras em todas as casas. Famílias endinheiradas, de Norte a Sul, garantiam encomendas para o sustento de muitas famílias. As mulheres de Nisa tiveram um papel determinante em tempos de guerra e pobreza, na primeira metade do século XX.

O interesse pela arte ganhou dimensão internacional. As capas de Nisa, feitas em feltro e com aplicações bordadas, ficaram tão famosas que até a rainha de Espanha, D. Letizia, já tem uma.

O sucesso económico dos bordados traçou o destino a uma geração de mulheres de Nisa. Era a forma mais segura de acederem ao mundo do trabalho. «A minha vocação não eram os bordados, o que eu queria mesmo era ser engenheira electrotécnica», conta Maria Denis, 78 anos. Já leva 60 anos na arte, aprendida com a “mestre” do asilo da Santa Casa da Misericórdia de Nisa.


O sucesso económico dos bordados traçou o destino a uma geração de mulheres da região

Denis Galucho, alcunha de família, não dá conta de tanto trabalho. Mesmo assim, só conseguiu recrutar uma outra mulher para a ajudar. «Já não há quem queira pegar nisto. É muito trabalhoso, as jovens hoje em dia querem outra vida», lamenta. Recentemente, recuperou três dos estandartes da Câmara de Lisboa, que nos dias de festa são exibidos nas varandas da Praça do Município.


Alexandra Marçal tomou conta da farmácia do avô há 23 anos

A farmacêutica que nos convida é outro exemplo de persistência feminina. Nascida em Angola, regressou a Sines com a família depois do 25 de Abril. O avô tinha uma farmácia em Nisa, onde ela passava as férias de Verão. Há 23 anos pegou na farmácia do avô. «Adoro a qualidade de vida desta vila», justifica Alexandra Marçal. Fala com orgulho da «magia do bordado» e leva-nos a conhecer a olaria pedrada, onde ele se manifesta com exuberância.

Na placa de um dos três últimos casais oleiros em actividade, o primeiro nome é o de António Piedade. Ele cuida de recolher e moldar o barro. A mulher, Antónia Carita, é quem desenha e “borda” cântaros, vasos, pratos e jarras, com pedras brancas de quartzo.


Dona Antónia dá vida ao vaso moldado pelo marido com desenhos e pedras brancas de quartzo

Em Nisa, a magia tem sempre mão feminina. A entrada da garagem-oficina, junto de uma mesa de madeira corrida, é o poiso de dona Antónia. Com uma agulha de coser na mão direita, risca um vaso rapidamente, com pequenos sulcos formando desenhos de flores. Os movimentos obedecem a uma coreografia de arabescos, enquanto se ouve a roda do oleiro um metro ao lado. Quando pega nas peças que o marido moldou, decide fazer uma de “primeira” ou de “segunda”, consoante é mais ou menos rica em desenhos e pedraria.

Os tempos também são de reconhecimento para a olaria pedrada, candidata a Património Cultural Imaterial da Humanidade. Em 2004, a artista plástica Joana Vasconcelos concebeu uma peça de grandes dimensões a partir dos bordados de Nisa, em articulação com as artesãs da vila. A obra está integrada na série “Valquírias”. Esteve exposta no Museu Colecção Berardo, em Lisboa, e pode agora ser vista no Cine-Teatro de Nisa.


A olaria foi “bordada” na rua com as cores do barro e o branco das pedras

Recentemente, a olaria foi “bordada” na rua. A “Ruinha”, assim carinhosamente chamada pelos nisenses, foi pavimentada com as cores do barro e o branco das pedras de quartzo. Nas paredes, vasos de barro pedrado alinhados.

No ano passado, já em tempo de pandemia COVID-19, as iluminações de Natal na Praça da República surpreenderam os residentes. As imagens de um grande cântaro iluminado invadiram as redes sociais e contribuíram para um Verão de 2021 com mais turistas do que era habitual. De noite, a obra ilumina-se de luzes encarnadas vertendo uma cascata para um lago de águas sossegadas a espelhar o esplendor da instalação.

A Porta de Montalvão, mandada erguer pelo rei D. Dinis, no final do século XIII, ainda hoje dá acesso às ruas estreitas de origem medieval, onde predominam casas brancas debruadas a amarelo. Na rua Dr. Francisco Miguéns, conhecida como "Rua Direita", há uma exposição em homenagem aos moradores. Fotografias a preto e branco junto às casas vivem protegidas pela sombra de toldos gigantes.

O processo de renovação chegou à antiga cadeia, transformada no Núcleo Central do Museu do Bordado e do Barro. Carla Sequeira é a guardiã do espaço. A técnica superior da Câmara Municipal perde-se a contar a importância do artesanato na economia local. Apaixonada por Nisa, desfia a importância da região desde o tempo dos romanos, que descobriram ouro na terra agora denominada Conhal do Arneiro. «Aqui em Nisa as pedras chamam-se conhos», explica Carla Sequeira. Os conhos eram retirados dos locais de exploração do minério.

Há registos de presença humana neste território há mais de 15 mil anos. Um dos exemplos do período megalítico é a Anta de São Gens, de planta simples circular, com cinco esteios de granito inclinados para o interior. É uma das poucas com cobertura em chapéu, formado por uma laje única, na estrada de Alpalhão.


Da Ermida de Nossa Senhora da Graça o horizonte alarga-se até às serras de São Mamede e da Estrela

A Ermida de Nossa Senhora da Graça, padroeira de Nisa, fica no alto de um monte a três quilómetros da vila. O local convida ao recato e ao silêncio. O horizonte alarga-se até às serras de São Mamede e da Estrela. Ouve-se o vento a fazer festas nas árvores, o som dos grilos e dos pássaros. Os sentidos apuram-se. Cheira a rosmaninho, a flores silvestres. Ao longe, o ladrar de cães. E depois chega a festa de cor no momento em que o sol se põe. Quando o último raio de luz desaparece, a floresta cala-se, como numa união de todos os seres vivos a agradecer mais um dia na Terra.​


A farmacêutica troca a bata ao final do dia pelo equipamento desportivo e corre quilómetros num dos 11 trilhos do concelho

«É isto que me alimenta a alma», diz em sussurro a farmacêutica. “Isto” é a comunhão com a Natureza. Alexandra Marçal conhece os 11 percursos pedestres do município. Ao final do dia, troca a bata por equipamento desportivo. Vale a pena descobrir ao nascer do sol o Trilho da Barca d'Amieira, a partir do Miradouro Transparente do Tejo. Pode ir de carro até a um pequeno parque de estacionamento. Aí começa o passadiço de madeira que segue em direcção ao rio. A meio do percurso, encontra os “Baloiços Instagramáveis da Árvore Lilás”. Pode pedir as brochuras no posto de turismo do centro da vila, ou aceder através do site da Câmara Municipal.

Continue para o Muro de Sirga. Os caminhos de sirga foram durante muitos anos a forma de puxar barcos a partir da margem, através da força de animais ou pessoas, em rios navegáveis. Grossos cabos de sisal eram utilizados ao longo das margens dos rios. Antes de o caminho-de-ferro chegar a Abrantes e da abertura da linha da Beira Baixa, em 1891, os muros de sirga eram de uso corrente para a navegação até ao Porto do Tejo, em Vila Velha de Ródão. A maioria ficou submersa pelas barragens de Belver e de Fratel.

A Nisa que hoje existe nasceu como ponto de defesa do território conquistado aos mouros. A região foi entregue à Ordem do Templo em 1199, pelo rei D. Sancho I. Pouco depois, o rei português patrocinou a vinda de colonos franceses, que se instalaram junto das fortalezas dos Templários. Diz-se que é da influência francesa que surgem os nomes de várias terras da região: Nisa seria uma derivação de Nice; Arez viria de Arles; Tolosa virá de Toulouse.

A proximidade dos rios Tejo e Sever especializou a cozinha regional no arroz de lampreia e na sopa de peixe do rio. Para quem gosta de comida mais encorpada, sugere-se os maranhos e os pezinhos de coentrada. Há um prato, chamado feijões da festa, ligado às tradições casamenteiras. Os banquetes aconteciam nos quintais. Era costume as famílias mais abastadas abrirem os seus às bordadeiras mais pobres, para proporcionar uma festa. As sobremesas eram doces conventuais: bolos de azeite, tigeladas, nisas, barquinhos, esquecidos e rebuçados de ovos. Se cair nestas tentações, leve a sério a sugestão de caminhar e correr nos trilhos e passadiços, à procura de vestígios megalíticos.

 

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