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9 novembro 2021
Texto de Maria Jorge Costa Texto de Maria Jorge Costa Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira Vídeo de André Oleirinha Vídeo de André Oleirinha

Miss Alentejo

​​​​​​​​​Vila das artes tem mão feminina.

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As jovens casadoiras de Nisa faziam o enxoval para juntar dinheiro no início de vida. Começavam bem cedo na arte de bordar pela mão experiente de bordadeiras, as “mestras”. Na véspera do casamento, as artes feitas pelas moças eram expostas no quarto da noiva para venda. As melhores bordadeiras conseguiam verdadeiros dotes. Noivas talentosas eram os melhores partidos.


Quarto de noiva: o enxoval era exposto para vender com o objectivo de ter uma vida melhor no casamento

Havia bordadeiras em todas as casas. Famílias endinheiradas, de Norte a Sul, garantiam encomendas para o sustento de muitas famílias. As mulheres de Nisa tiveram um papel determinante em tempos de guerra e pobreza, na primeira metade do século XX.


O recorte de tecido é uma das técnicas das bordadeiras de Nisa

Hoje, as poucas artesãs que continuam activas não têm mãos a medir. O interesse pela arte ganhou dimensão internacional. As capas de Nisa, feitas em feltro e com aplicações bordadas, ficaram tão famosas que até a rainha de Espanha, D. Letizia, já tem uma.

O sucesso económico dos bordados traçou o destino a uma geração de mulheres de Nisa. Era a forma mais segura de acederem ao mundo do trabalho. «A minha vocação não eram os bordados, o que eu queria mesmo era ser engenheira electrotécnica», conta Maria Denis, 78 anos. Já leva 60 anos na arte, aprendida com a mestre do asilo da Santa Casa da Misericórdia de Nisa.


Maria Denis Galucho é uma das últimas bordadeiras em actividade

Denis Galucho, alcunha de família, não dá conta de tanto trabalho. Mesmo assim, só conseguiu recrutar uma outra mulher para a ajudar. «Já não há quem queira pegar nisto. É muito trabalhoso, as jovens hoje em dia querem outra vida», lamenta. Recentemente, recuperou três dos estandartes da Câmara de Lisboa, que nos dias de festa são exibidos nas varandas da Praça do Município.


Alexandra Marçal tomou conta da farmácia do avô, no centro histórico da vila

A farmacêutica que nos convida é outro exemplo de persistência feminina. Nascida em Angola, regressou a Sines com a família depois do 25 de Abril. O avô tinha uma farmácia em Nisa, onde ela passava as férias de Verão. Tomou-lhe o gosto. Licenciou-se em Ciências Farmacêuticas, em Coimbra. Há 23 anos, pegou na farmácia do avô. Casou aqui e aqui educa as filhas. «Adoro a qualidade de vida desta vila», justifica Alexandra Marçal. Fala com orgulho da «magia do bordado» e leva-nos a conhecer a olaria pedrada, onde ele se manifesta com exuberância.


O oleiro António Piedade molda mais uma peça, que a mulher há-de decorar

Na placa de um dos três últimos casais oleiros em actividade, o primeiro nome é o de António Piedade. Ele cuida de recolher e moldar o barro. A mulher, Antónia Carita, é quem desenha e "borda" cântaros, vasos, pratos e jarras com pedras brancas de quartzo. Na garagem de casa, montaram o negócio de porta aberta. Todos os dias é vê-lo cuidar do barro, moldar na roda. «Mesmo quando trabalhava na EDP, terminava o dia aqui. Moldar o barro dá tranquilidade», garante António Piedade.

 


A pasta para as peças é composta por três espécies de barro: o branco, o preto e o vermelho, este apenas para dar a cor, num processo de tingimento final. A preparação do barro tem várias fases, entre misturar com água e libertar o excesso de humidade. Está pronto para trabalhar depois de «atirar o barro à parede». O oleiro tem uma parede de cimento à qual arremessa a massa húmida. Quando começa a descolar sozinha, é sinal de que pode ser trabalhada. 


Antónia Carita decora um vaso de barro com pedras de quartzo

Em Nisa, a magia tem sempre mão feminina. A entrada da garagem-oficina é o poiso de dona Antónia, junto de uma mesa de madeira corrida. Com uma agulha de coser na mão direita, risca um vaso rapidamente, com pequenos sulcos formando desenhos de flores. Os movimentos obedecem a uma coreografia de arabescos e voltas num bailado perfeito, enquanto se ouve a roda do oleiro um metro ao lado. Pergunta-se pela inspiração nos desenhos e D. Antónia responde com um enorme sorriso nos doces olhos azuis: «o Amor». Em voz baixa e tão meiga como o olhar, explica o processo de separação das pedras por tamanhos. Quando pega nas peças que o marido moldou, decide fazer uma de “primeira” ou de “segunda”, consoante é mais ou menos rica em desenhos e pedraria.


 Joana Vasconcelos concebeu a "Valquíria" para celebrar os bordados de Nisa

Os tempos também são de reconhecimento para a olaria pedrada, que é candidata a Património Cultural Imaterial da Humanidade. Em 2004, a artista plástica Joana Vasconcelos concebeu uma peça de grandes dimensões a partir dos bordados de Nisa, em articulação com as artesãs da vila. A obra está integrada na série “Valquírias”. Esteve exposta no Museu Colecção Berardo, em Lisboa, e pode agora ser vista no Cine-Teatro de Nisa.


Passar na "Ruinha" é como entrar numa peça de olaria pedrada

Recentemente, a olaria foi "bordada" na rua. A “Ruinha”, assim carinhosamente chamada pelos nisenses, foi pavimentada com as cores do barro e o branco das pedras de quartzo. Nas paredes, vasos de barro pedrado alinhados.

No ano passado, tempo de pandemia COVID-19, as iluminações de Natal surpreenderam os residentes. As imagens de um grande “cântaro” iluminado invadiram as redes sociais e contribuíram para um Verão de 2021 com mais turistas do que era habitual. De noite, a obra ilumina-se de luzes encarnadas vertendo uma cascata para um lago de águas sossegadas a espelhar o esplendor da instalação. Começou por ser pensado como exposição temporária, ganhou um lugar de destaque permanente na Praça da República.


A Porta de Montalvão, mandada erguer por D. Dinis, dá acesso ao centro medieval

A Porta de Montalvão, mandada erguer pelo rei D. Dinis, no final do século XIII, ainda hoje dá acesso às ruas estreitas de origem medieval, onde predominam casas brancas debruadas a amarelo. Cortinas de renda deixam entrar luz nas janelas e portas com arcadas de pedra de inspiração manuelina. Na rua Dr. Francisco Miguéns, conhecida como "Rua Direita", há uma exposição em homenagem aos moradores. Fotografias a preto e branco junto às casas vivem protegidas pela sombra de toldos gigantes. Coincidência ou não, a Câmara Municipal de Nisa é presidida por uma mulher. Estas obras de requalificação do centro histórico têm a sua assinatura.

O processo de renovação chegou à antiga cadeia, transformada no Núcleo Central do Museu do Bordado e do Barro. O museu tem uma exposição permanente dedicada à olaria e ao bordado. Carla Sequeira é a guardiã do espaço. O edifício medieval de paredes grossas está adaptado com tecnologia moderna. Além dos artigos expostos, o visitante tem à disposição vídeos interactivos, em que os protagonistas são os artesãos, alguns ainda vivos.

A técnica superior da Câmara Municipal perde-se a contar a importância do artesanato na economia local. Apaixonada por Nisa, para onde foi trabalhar há vinte anos, desfia a importância da região desde o tempo dos romanos, que descobriram ouro na terra agora denominada Conhal do Arneiro. «Aqui em Nisa as pedras chamam-se conhos», explica Carla Sequeira. Os conhos eram retirados dos locais de exploração do minério. 

Com marcação prévia, podemos subir ao topo do Museu e apreciar uma vista de 360°, abrangendo toda a região envolvente. Em dias limpos, avista-se ao longe uma mancha branca urbana. É Castelo Branco, a 50 km de distância. À saída do Museu, a Rua Dom António Lobo da Silveira liga aos Paços do Concelho, junto aos quais se encontra o Pelourinho, do século XVII, e a Igreja da Misericórdia.


Ana Fortunato é queijeira, como os pais e avós

Na freguesia da Tolosa, 14 quilómetros a sul da vila, encontramos os verdadeiros queijos de Nisa. Mãos femininas cuidam do produto mais conhecido da gastronomia local. Ana Fortunato está à frente dos Queijos Fortunato, criados pelos avós. É a fazer queijo que se sente feliz. «Tal como a minha mãe, que ainda cá vem de vez em quando, eu respiro queijo».

Estudou gestão e ainda trabalhou cinco anos na área, mas o «bichinho» não saía e decidiu voltar para a queijaria. O marido, engenheiro agro-pecuário, assegura a produção de leite: tem 500 cabras e 700 ovelhas num monte das redondezas. A Ana cabe o fabrico do queijo. «Só trabalho com leite fresco», conta, enquanto mostra a linha de fabrico em sistema de «marche em frente». Em todo o processo, o passo seguinte não pode voltar ao anterior. «É a forma de garantir a esterilização dos produtos», explica.

 


O casal preparou a empresa para as exigências de qualidade e segurança da União Europeia, com um sofisticado sistema de rastreabilidade. Se alguém tiver um problema com algum dos queijos, é fácil identificar imediatamente o lote. Nota-se a formação de gestora no cuidado com rótulos, embalagens e distribuição. «Vendemos 80 por cento da produção na loja do mercado de Portalegre», conta a queijeira de Tolosa. A crise não chegou aqui.


Anta de São Gens, na estrada de Alpalhão, remonta ao período megalítico

Há registos de presença humana neste território há mais de 15 mil anos. Um dos exemplos do período megalítico é a Anta de São Gens, de planta simples circular, com cinco esteios de granito inclinados para o interior. É uma das poucas com cobertura em chapéu, formado por uma laje única na estrada de Alpalhão. Muito perto ficam as Termas da Fadagosa, de água sulfurosa, procuradas para tratamento de problemas respiratórios e do foro reumatológico.

A Ermida de Nossa Senhora da Graça, padroeira de Nisa, fica no alto de um monte a três quilómetros da vila. O local convida ao recato e ao silêncio. O horizonte alarga-se até às serras de são Mamede e da Estrela. Ouve-se o vento a fazer festas nas árvores, o som dos grilos e dos pássaros. Os sentidos apuram-se. Cheira a rosmaninho, a flores silvestres. Ao longe, o ladrar de cães. E depois chega a festa de cor no momento em que o sol se põe. Quando o último raio de luz desaparece, a floresta cala-se, como numa união de todos os seres vivos a agradecer mais um dia na Terra.

 


​«É isto que me alimenta a alma», diz em sussurro a farmacêutica. “Isto” é a comunhão com a Natureza. Alexandra Marçal conhece todos os 11 percursos pedestres do município. Ao final do dia, troca a bata por equipamento desportivo. Num dia normal, corre nove km. Aos fins-de-semana, explora os trilhos. Com ou sem companhia, ela sobe e desce serras a pique, que em alguns pontos acompanham o curso do Tejo.


A farmacêutica nos passadiços da Barca d'Amieira, preparada para mais uma corrida

Os percursos pedestres são menos exigentes. Estão muito bem sinalizados e um deles cruza com os Caminhos de Santiago. Alexandra Marçal teve dificuldade em escolher, mas acabou por decidir-se pelos da Barca d'Amieira e do Conhal. No percurso da Amieira, o melhor é começar no Miradouro Transparente do Tejo, ao nascer do sol. Pode ir de carro até a um pequeno parque de estacionamento. O acordar da floresta e as cores do amanhecer dão a energia para começar a caminhada, ou corrida, no caso da farmacêutica. Aí começa o passadiço de madeira que segue em direcção ao rio. A meio do percurso, encontra uns baloiços gigantes, a que a brochura de apoio ao caminhante chama de “Baloiços Instagramáveis da Árvore Lilás”. Pode pedir as brochuras no posto de turismo do centro da vila, ou aceder através do site da Câmara Municipal.

Se tiver forças, continue para lá deste ponto, chegando ao Muro de Sirga. Os caminhos de sirga foram durante muitos anos a forma de puxar barcos a partir da margem, através da força de animais ou pessoas, em rios navegáveis. Grossos cabos de sisal eram utilizados ao longo das margens dos rios. Antes de o caminho de ferro chegar a Abrantes e da abertura da linha da Beira Baixa, em 1891, os muros de sirga eram de uso corrente para a navegação até ao Porto do Tejo, em Vila Velha de Ródão. A maioria ficou submersa pelas barragens de Belver e de Fratel. Um dos sobreviventes é este passadiço que termina na Barca d'Amieira, nome que ficou dos tempos em que uma barca fazia a passagem das pessoas para as duas margens do rio. 

O Trilho da Mina de Ouro do Conhal do Arneiro deve o seu nome a uma grande área de extracção mineira a céu aberto, do tempo dos romanos, explorada com recurso a energia hidráulica. Feito o passeio, pegue no carro e vá até à ponte de Vila Velha de Ródão, que faz a fronteira entre o Alto Alentejo e a Beira Interior. O curso do rio Tejo gravou um sulco profundo no vale, entalado entre duas longas escarpas de mais de 170 metros de altura. Estas formações geológicas são as famosas Portas de Ródão. Aqui vive a maior colónia de grifos de Portugal.

A Nisa que hoje existe nasceu como ponto de defesa do território conquistado aos mouros. A região foi entregue à Ordem do Templo em 1199, pelo rei D. Sancho I. Pouco depois, o rei português patrocinou a vinda de colonos franceses, que se instalaram junto das fortalezas dos Templários. Diz-se que é da influência francesa que surgem os nomes de várias terras da região: Nisa seria uma derivação de Nice; Arez viria de Arles; Tolosa virá de Toulouse.

A proximidade dos rios Tejo e Sever especializou a cozinha regional no arroz de lampreia e na sopa de peixe do rio. Para quem gosta de comida mais encorpada, sugere-se os maranhos e os pezinhos de coentrada. Há um prato, chamado feijões da festa, ligado às tradições casamenteiras. Os banquetes aconteciam nos quintais. Era costume as famílias mais abastadas abrirem os seus às bordadeiras mais pobres, para que tivessem a sua festa garantida. As sobremesas eram doces conventuais: bolos de azeite, tigeladas, nisas, barquinhos, esquecidos e rebuçados de ovos.

Se cair nestas tentações, leve também a sério a sugestão de caminhar e correr nos trilhos e passadiços, à procura de vestígios megalíticos. A farmacêutica, que toda a gente cumprimenta na rua, estimula a prática de actividade física e dá ela própria o exemplo. Leva a promoção da saúde às escolas, centros de dia e à Universidade Sénior. «Adoro cuidar das pessoas», afirma Alexandra Marçal, antes da despedida.​