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29 dezembro 2022
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de Nuno Santos Vídeo de Nuno Santos

Na terra do bem-haja!

​​​​​​​​Os albicastrenses têm as qualidades de bem receber e da simpatia. Bem-haja!, dizem todos.

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Em Castelo Branco ainda há zonas que não parecem deste século. Onde se vive num ambiente de aldeia, «do chocalho das cabras e ovelhas a passarem à porta, do dono do rebanho a chegar a casa com o leite para fazer queijos». É assim e vai continuar a ser, acredita Ana Paula Lopes. Há cada vez mais pessoas saturadas da confusão das grandes cidades que ali procuram quintinhas, compram um rebanho, cultivam a terra. Há estrangeiros a fazer o mesmo, muitos ingleses, confirma a enfermeira que, aos 14 anos, deixou Proença-a-Nova para se tornar albicastrense de coração. «É um luxo acordar com o chilrear dos passarinhos e a água a correr no riacho», reconhece.


A enfermeira Ana Paula Lopes no Parque do Barrocal, onde há ​pedras graníticas com 310 milhões de anos

Onde vive, no centro da cidade, Ana Paula ouve a sinfonia da passarada no castelo dos Templários, o seu local favorito na região. Gosta de trepar a pé a encosta, ao fim do dia, e admirar o espetáculo da paisagem. A luz dourada que pinta o granito das torres, o pontilhado da cidade em volta, o contorno escuro da serra ao fundo. Na noite fria, sente-se o cheiro da lenha que crepita nas lareiras.

Ana Paula lamenta apenas duas coisas: a distância até ao mar [quase duas horas de caminho] e o clima austero. «Só temos verão e inverno, praticamente. Passamos do chinelo para a bota e da bota para o chinelo», conta, a rir. Tudo o resto elogia. O sossego, a hospitalidade, o artesanato, a gastronomia generosa, com o cabrito estonado e a broa de milho de Oleiros, as migas de peixe de Vila Velha de Ródão, a tigelada de Proença-a-Nova, o maranho e o bucho da Sertã. Na Boutique do Presunto vende-se o premiado queijo de Malpica do Tejo, pão, broas e biscoitos, azeitonas, enchidos e presuntos, que enfeitam uma parede inteira. Até há artesanato da serra da Estrela, porque, como diz o simpático funcionário, Tiago Pinto, «temos de dar força às Beiras!».

 Na Boutique do Presunto vende-se o premiado queijo de Malpica do Tejo e muitas outras iguarias

Sabe bem palmilhar a zona histórica, com ruas estreitas e casas centenárias, algumas apalaçadas, debruadas a granito. Entrar no interior aquecido dos cafés, sentir o aconchego da madeira escura nos barrotes dos tetos. Traz uma sensação de robustez, algo que perdura. O frio enxota os albicastrenses das ruas, a missa na Sé Catedral está repleta de fiéis. «As pessoas aqui ainda cuidam da parte espiritual», justifica Ana Paula Lopes.


Sé Catedral, onde as missas continuam a ser muito procuradas pelos albicastrenses

A cidade foi residência dos bispos da Guarda e, a partir de 1771, o Paço Episcopal acolheu a entretanto criada diocese de Castelo Branco. O jardim, ou retiro de São João, era um «local de meditação e busca de saúde espiritual, repleto de simbologia», explica Maria Adelaide Salvado, professora apaixonada pelo tema da religiosidade popular. Por ali caminhavam os bispos, entre sebes, flores, lagos, cascatas e uma profusão de estátuas, que representam «o mundo dos homens e os valores que os devem reger»: os elementos, as estações do ano, os signos do zodíaco, as virtudes. Do outro lado da estrada, as antigas hortas do Paço Episcopal transformaram-se no Parque da Cidade, espaço de lazer com direito a cinema ao ar livre nas quentes noites de verão.


Jardim do Paço Episcopal, também conhecido por retiro de São João, onde os bispos procuravam a paz espiritual

No bonito edifício da Praça de Camões, que já foi casa da vila, cadeia e biblioteca, a Oficina-Escola de Bordado de Castelo Branco perpetua a arte que distingue a cidade. As bordadeiras reúnem-se em redor de uma peça de linho, pintando minuciosamente, com fios de seda coloridos, pássaros, flores e árvores da vida, os temas de eleição. «Tudo tem um significado», garante Ana Paula Lopes. O cravo evoca o homem, a romã a fertilidade. As colchas, a estrear na noite de núpcias, eram bordadas anos a fio, pelas jovens casadoiras e suas mães, conta Lurdes Batista, bordadeira há 34 anos. Antigamente, o bordado era uma profissão natural para muitas raparigas quando terminavam a escola primária, hoje poucas dominam a arte.


O Centro de Interpretação do Bordado de Castelo Branco alberga colchas e painéis tradicionais e modernas peças de vestuário

O Centro de Interpretação contíguo à oficina alberga colchas e painéis tradicionais, ao lado de elegantes peças de vestuário, que resultam do desafio que o município lançou a designers de moda, estudantes e jovens licenciados em design de moda. O assessor para as áreas da cultura e educação, Fernando Manuel Raposo, aponta a estratégia: «É preciso inovar, sem pôr em causa a identidade do bordado, para ir ao encontro de novos púb​licos». Se importa diversificar os suportes, os temas há muito saltaram dos têxteis para se espalharem por loiça Vista Alegre, azulejos dos prédios e até pela calçada da cidade. «Castelo Branco é a única cidade onde se pisa arte com os pés», comentou, com graça, um turista espanhol.


Nas ruas estreitas da parte antiga da cidade há casas centenárias, debruadas a granito

Há apenas dois anos, a cidade ganhou um dos seus parques mais especiais. O Barrocal, separado dos prédios altos por uma avenida, é uma viagem por entre pedras graníticas com 310 milhões de anos, carvalho-negral, oliveiras, giestas e iaras, que na primavera cobrem o espaço de amarelo e branco. «Cada visita é diferente», garante a guia Sofia Salavessa, que salta da cama com prazer para trabalhar. Vê-se, ou pressente-se, javalis, raposas, coelhos e lagartos, esvoaçam gaios, abelharucos, pintarroxos e borboletas. Um passadiço de madeira conduz, por três quilómetros, a mirantes, uma ponte suspensa e estruturas de madeira e ferro, como o Túnel do Lagarto, obras de arte em harmonia com o espaço natural. Para trás fica o ruído da cidade. Respira-se paz no cimo da estrutura cónica do Observatório dos Abelharucos. A madeira em ripas apontando ao céu lembra um templo.


Voluntária da Quercus liberta uma águia recuperada no Centro de Estudos e Recuperação de Animais Selvagens (CERAS)

Uma águia sobrevoa o céu. A poucos quilómetros, uma jovem águia será em breve devolvida à Natureza, depois de dois meses de cuidados no Centro de Estudos e Recuperação de Animais Selvagens (CERAS). O momento comove os voluntários deste projeto da Quercus que, por ano, resgata cerca de 400 animais feridos, alguns em risco de extinção. São sobretudo aves ― grifos, abutres, cegonhas, garças, corujas ― mas também lontras, texugos, raposas, ouriços-cacheiros e morcegos. «É o ponto alto do trabalho que fazemos aqui», resume o ornitólogo Samuel Infante, coordenador do CERAS.

Nas instalações cedidas pela Escola Superior Agrária de Castelo Branco, há gaiolas feitas de rede, por onde os animais transitam no processo de recuperação. O túnel circular foi o último espaço por onde passou a jovem águia, que recebeu alta depois de treinar o voo contínuo e as aptidões de caça. Pequenas casas rústicas, com barra azul, servem de enfermaria e área de apoio. Há um medronheiro carregado de frutos, verde a toda a volta, um chilrear ininterrupto. Debaixo de uma latada, em redor da mesa de pedra, os voluntários conversam. Nos rostos, sorrisos e olhares serenos. Um sentimento de que faz sentido estar ali. Bem-haja!


 
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