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20 julho 2022
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins

Na curva da história

​​​​Maria do Castelo, a primeira mulher a liderar o Grémio Nacional das Farmácias.

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​«Têm-me acusado de ser demasiado dura (...) Não deixarei, por essa acusação, de me bater com toda a força de que sou capaz pelo ideal que foi a minha entrada na Direção do Grémio: unir e prestigiar». A 8 de abril de 1974, ao tomar posse como presidente do organismo que então representava os proprietários de farmácia, Maria do Castelo Mendes Correia projetava um mandato de três anos. Volvidos apenas 17 dias, um golpe militar derrubou o regime, frustrando as suas expetativas.

Da fama de durona, tiraria proveito, a avaliar pelos testemunhos de quem a conheceu. Após seis anos na Direção, tornou-se a primeira mulher a liderar o Grémio Nacional das Farmácias (GNF). Prometia pulso de ferro, mas foi traída pelas curvas da história. Ainda a aquecer o lugar, viu-se obrigada a travar uma batalha em duas frentes: adaptar-se à mudança de agulha política e travar os ímpetos do grupo de associados que acabara de bater nas urnas. Não se saiu mal em nenhuma delas. O seu nome seria mesmo inscrito nos anais, por participar na transição para a ANF.

O programa de Maria do Castelo não era conservador, nem progressista. Incorporava velhas propostas do Grémio: combate ao fornecimento exclusivo e à concessão de descontos, atividades que introduziam grãos na máquina concorrencial, praticadas, inclusive, por associados; aumento da margem de comercialização de medicamentos, num país que reservava à farmácia a mais baixa percentagem de lucro da Europa, apenas 13%. Mas também propunha uma revisão estatutária, que na ótica do novo presidente da Assembleia-Geral (AG), António Jorge Macedo, conduziria à criação de um centro de estudos – «de livre pensamento», assim o caraterizava em vésperas do 25 de Abril – para debater o futuro do setor.

O exercício de democraticidade interna, então raro, proporcionou uma votação sem precedentes – a lista eleita, que entre outros integrava Eurico Pais, arrecadou 501 votos, contra 109 da adversária. Contudo, causou feri​das que tardaram a sarar. Os vencidos contestaram os resultados e levaram troco. Em editorial no Boletim Informativo da entidade, datado de abril de 1974, foram acusados de desenvolver «uma perniciosa atividade para a classe». 


As atas revelam a forma como o Grémio se adaptou à nova realidade política​

O GNF revelou-se mais rápido a perceber que teria de acertar o passo com o novo poder do que algumas instituições do regime deposto, como a Secretaria-Geral das Comissões Corporativas de Lisboa, que o convocou para uma reunião, quando o pano já tinha caído. O grémio farmacêutico, de facto, logo se esforçou por cair nas boas graças da Junta de Salvação Nacional: a 30 de abril, aprovou o envio de um ofício ao general Spínola, manifestando-lhe «incondicional apoio e colaboração». Três dias depois, invocou a «data histórica» para amnistiar todos os processos disciplinares.

Assim se compreende que a cooperação com a Junta inspire a moção aprovada a 6 de maio pelo Conselho Geral, instando a Direção a apresentar-lhe as reivindicações da classe (sim, a expressão já entra no léxico). Da reunião em que pela primeira vez no seio do Grémio é referida a constituição de uma «associação livre», sai uma comissão encarregada de desencadear o processo. Em menos de um fósforo, a Direção suspende a cobrança de quotas e promove um referendo. 797 associados (só 39 votam contra) dão luz verde à manutenção em funções dos corpos gerentes, até serem eleitos os da nova entidade.

​​Conflitos internos são percetíveis no Boletim Informativo do Grémio de abril de 1974

O braço-de-ferro interno, porém, está em curso. A 26 de maio, quando os proprietários de farmácia se juntam na sede da Ordem dos Farmacêuticos, o clima é de cortar à faca. Presente em substituição de Maria do Castelo – ausente na União Soviética, imagine-se! – Eurico Pais propõe a convocação de novas eleições, mas o grupo derrotado não desarma: exige aceder ao ficheiro de agremiados, para controlar presenças em nova reunião, marcada para 2 de junho. Leva nega.

Nesta reunião, na Faculdade de Farmácia de Lisboa, os ânimos andam tão à solta que até ameaças de expulsão se ouvem, como recordaria Eurico Pais 26 anos depois, na revista Farmácia Portuguesa. A peleja abre uma janela de oportunidade para o Grupo de Cascais. Dinamizado por jovens, não quer dirigir o Grémio, mas «instituir-se como um grupo que faz estudos e assessora a Direção política», segundo afirma João Silveira no livro “Uma história das farmácias”, editado em 2015. Deste núcleo, nascerá a Comissão Central de Estudos e o documento “Formulação da Farmácia do futuro integrada numa política nacional de saúde”, conhecido como “Manifesto do Grupo de Cascais”. 

No primeiro dia de julho de um verão ainda pouco quente, reúne pela primeira vez a Comissão Administrativa do GNF. A chamada “Comissão dos 22” é generosa no número, porque ambiciosa no propósito. Apostada em agregar tendências, inclui membros da Direção do organismo e da Comissão Central de Estudos. Para «não causar maior cisão», Maria do Castelo comunica que se afasta. Todavia, ainda dirigirá a AG de 8 de setembro, em Coimbra, na qual é eleita a Comissão Instaladora da ANF. Sem surpresa, o órgão integra antigos protagonistas (Medeiros de Almeida, João Augusto de Matos e Eurico Pais) e nomes emergentes, três dos quais futuros presidentes da Associação: Luís Teodoro, João Veiga e João Cordeiro.
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