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22 dezembro 2017
Texto de Rita Leça Texto de Rita Leça Fotografia de Anabela Trindade e Luís Falcon Fotografia de Anabela Trindade e Luís Falcon

Feliç Natal ye na rue

​​​​​​​​​​​​​​​​​​​O Natal mais alegre de Portugal fala mirandês.

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Um tractor passa na rua principal. «Bom dia, Sr. José», diz Cândida Viana, com um sorriso aberto. Mais tarde, uma carroça segue na estrada para a serra, puxada por um burro. «Coisa rara nos dias que correm», explica-nos a farmacêutica. No final da viagem, entre os vales, aponta: «Ali à frente, do outro lado do rio, já é Espanha».

Estamos longe do rebuliço das cidades. E é por isso mesmo que Cândida Viana não tem dúvidas: «Não quero sair daqui nunca!». Estamos em Sendim, vila de 1.370 habitantes, a cerca de 25 quilómetros de Miranda do Douro, sede do município. A nossa anfitriã é a proprietária da farmácia da terra.

O frio enregela. Nem mesmo quando o relógio está a pique e no topo da igreja ecoam as doze badaladas que impõem a pausa para o almoço, a temperatura se ameniza. 

«Nós, aqui, estamos habituados. Lembro-me, quando era criança, de ir para a escola com medo de escorregar na neve. Não havia um Inverno que não nevasse. E tanto que até formava estalactites. Hoje, já não há invernos assim tão rigorosos», conta-nos Cândida Viana.

Talvez por isso, os habitantes de Sendim continuem, tranquilamente, a repetir os gestos que há séculos fazem parte desta época festiva. Sim, porque aqui a tradição ainda é o que era.



Tudo começa ao anoitecer de 24 de Dezembro. Famílias inteiras reúnem-se para dar início às festividades. Com a ajuda de todos, uma grande fogueira é ateada junto à Igreja Matriz. «É a época do ano em que recebemos mais visitantes. Seja familiares que vivem em Lisboa ou no estrangeiro, seja curiosos. Mais até do que em Agosto», assinala a farmacêutica, com um certo orgulho na voz.

Grandes troncos são queimados ao som das gaitas de foles, outra tradição viva por estas terras. Reproduzem, noite dentro, as mesmas músicas que os seus antepassados repetiram durante centenas de anos. «Quando um rapaz é gaiteiro, ou pauliteiro, tem de sentir a responsabilidade da herança que carrega», diz-nos Mário Correia, musicólogo, que há dezenas de anos é guardião da paisagem sonora da região. Grava cantos, missas e músicas tradicionais. Construiu um arquivo para memória futura, a que deu o nome de Sons da Terra.

«Quero gravar, registar e catalogar o mais possível. Recuperar gravações domésticas antes que os gaiteiros mais velhos morram. Sabia que a gaita de foles aragonesa era chamada também de gaita de gemidos? Não se pode perder este conhecimento milenar», defende este economista retirado. Deixou o Porto e os números para viver em Sendim. Até agora, reuniu cerca de 4.500 livros e mais de 6.000 CD e DVD com registos etnográficos. 

A música avança. E só quando as chamas da grande fogueira já vão no alto é que se segue o próximo passo da tradição: fazer a ronda pelas ruas principais da vila. O dinheiro para a festa é angariado com a venda de acessórios para combater o frio que marca a ocasião. Um mercado ambulante de luvas e gorros anima agora a festa. Todos se conhecem e partilham a felicidade de um Natal que se faz mais na rua do que em casa.

As doze badaladas dão o chamamento para a igreja, que rapidamente se enche para a tradicional Missa do Galo. Quando termina o padre, regressa a música ao vivo. Pela noite fora, há comida e bebida para toda a gente. O calor da grande fogueira aquece a comunidade. Só há uma regra: o fogo não pode ultrapassar a altura da torre da igreja, porque, segundo dizem, isso «chama o Diabo».


Igreja Matriz de Sendim - No Natal, à meia-noite, doze badaladas chamam toda a gente para a Missa do Galo

Todos os Natais se cumpre a tradição de fazer voltear os sinos da igreja, um teste à virilidade dos rapazes. Eles sobem ao campanário e tentam rodar o sino com tanta força e a uma velocidade tal que o consigam calar. É difícil, mas o sucesso desta missão conquista os corações das raparigas mais bonitas.

O dia seguinte começa bem cedo e com um sabor especial. O tradicional ramo mirandês, composto de roscos, bolos-reis, pão, fogaças e outras delícias, é exibido num andor que segue pelas ruas principais até à igreja. Dá-se início à "Pastorada".

O cortejo é acompanhado por músicos da terra, com a gaita de foles como anfitriã. À frente, os mais novos seguem em fila, prontos para representar o nascimento de Jesus Cristo e oferecer-lhe os melhores presentes. Cantam à entrada da igreja e celebra-se nova missa. Mais tarde, o ramo mirandês é leiloado.

Logo a seguir ao Natal, há o dia dos casados e o dia dos solteiros. Jogam uns contra os outros e fazem jantaradas em conjunto, dando fim às comemorações. 
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