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12 outubro 2020
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes

«Cada euro investido em Saúde multiplica-se por 14»

​​​​​Entrevista a Sara Cerdas, eurodeputada.

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REVISTA FARMÁCIA PORTUGUESA: É verdade que em criança já sonhava ser médica, mas também pintar prédios? 
SARA CERDAS: Sim [risos]. Tanto eu como o meu irmão tivemos muita liberdade para sonhar. Os nossos pais sempre nos disseram que nos apoiariam, independentemente das nossas escolhas. Mas também nos incutiram que os resultados chegam com esforço. Pintar prédios encantava-me, não sei porquê. A Medicina foi o meio que encontrei para realizar a minha imensa curiosidade relativamente ao funcionamento do corpo humano. A curiosidade foi sempre o meu motor. Fiz sempre muitas perguntas: Porque é que uma colega tinha melhores resultados do que eu na natação? O que tornou possível que uma das pessoas mais importantes da minha vida desaparecesse em apenas três meses, com cancro?


«A Medicina foi o meio que encontrei para realizar a minha imensa curiosidade relativamente ao funcionamento do corpo humano»

E a política? 
A política surgiu através da própria Medicina. Costumo dizer que a especialidade que escolhi, Saúde Pública, é a mais política de todas. Sempre procurei perceber como é que as condições em que nascemos, vivemos, trabalhamos e morremos influenciam e são influenciadas pelo nosso bem-estar. A Saúde Pública permite ao médico ter à sua frente toda uma população, não apenas um doente. Isso é algo fascinante. 


«A Saúde Pública permite ao médico ter à sua frente toda uma população, não apenas um doente, o que é fascinante»

Como encarou o convite do Partido Socialista-Madeira para integrar a lista do partido às eleições europeias? 
​Aceitei-o de braços abertos. A minha ideologia identifica-se com a ideologia do Partido Socialista. Até me tornei militante! Para mim é uma causa. Quero contribuir para a vida partidária. Somos oposição, não conseguimos superar o desafio maior de ganhar o Governo, mas temos um belo projecto para mudar e melhorar a Madeira com o contributo de todos. Foi exactamente nesse espírito que fui recrutada da sociedade civil, para trazer ao Parlamento Europeu as minhas vivências e um pouco daquilo que é a juventude, somados às linhas do PS-Madeira e do PS nacional.

Como foi fazer campanha para umas eleições que suscitam sempre pouco interesse popular? 
Não foi só tirar o peixe da água: foi pô-lo na montanha! Foi um desafio tentar explicar a posição de Portugal e o que a União Europeia significa para nós. Em especial para a Madeira, sendo uma região ultraperiférica, com tudo o que isso implica. Mas foi um belo momento, guardo-o com muito carinho. Permitiu-nos delinear um dos grandes objectivos deste mandato: a criação de condições para que os cidadãos madeirenses conheçam melhor o projecto europeu e o que ele representa nas suas vidas. Nisto, a proximidade é uma pedra basilar, e faço questão de não perder o elo de ligação com a região e os meus constituintes. 

 



Foi por isso que abriu na Madeira o Gabinete da Europa? 
A proximidade é um dos objectivos do meu mandato. Estamos nas redes sociais e no nosso website, mas o contacto presencial é importante, para que os cidadãos sintam que têm um acesso fácil ao eurodeputado. Promovemos ainda duas iniciativas de envolvimento com os cidadãos: o concurso Europe Calling e o Roteiro Geração Madeira. O concurso resulta da percepção, durante a campanha, de um certo afastamento dos mais jovens relativamente às temáticas europeias. É uma iniciativa dirigida aos alunos do ensino secundário, para que possamos enraizar desde cedo a importância da União Europeia. Já o Roteiro, que nos levará ao longo do ano aos 11 concelhos da região, pretende ser uma iniciativa de democracia participativa e consequente. 

Consequente? 
Sim, não estamos ali só para uma conversa. Discutimos com as pessoas os mais diversos assuntos, e desses fóruns já surgiu, por exemplo, uma pergunta à Comissão Europeia, que esperamos venha a resultar também numa intervenção em plenário. Sabe? O maior indicador de sucesso do meu mandato seria a diminuição da taxa de abstenção. Queremos que mais pessoas se envolvam, exerçam o seu direito de voto e participem nas eleições para o Parlamento Europeu. 

Falta-nos identidade europeia? 
Acho que ainda não nos sentimos verdadeiramente cidadãos europeus. Somos mais atentos quando os assuntos são debatidos em Portugal. Mas os 450 milhões de cidadãos europeus podem votar para escolher 751 deputados – e quem serão esses 751 deputados vai condicionar muitas coisas. Esquecemo-nos que o voto e a abstenção nestas eleições têm consequências reais. 

Pode dar exemplos? 
A crise de refugiados no Mediterrâneo. Por apenas dois votos, a proposta de resolução que basicamente dizia vamos salvar vidas, vidas de pessoas reais, chumbou. Por dois votos! Isto é algo trágico. Para mim, que estava no plenário, foi um murro no estômago. E nós, eurodeputados, não decidimos apenas se vamos ou não salvar aquelas vidas. Decidimos sobre a qualidade do ar que respiramos, da nossa água, dos medicamentos que temos e que tomamos, sobre a acessibilidade aos mesmos e aos cuidados de saúde, sobre a inteligência artificial e a transição digital, sobre a nossa posição no mundo geopolítico, o nosso posicionamento ecológico… Temáticas, todas elas, que influenciam o nosso quotidiano e vários momentos da nossa vida. Muitos cidadãos ainda não perceberam isto. 


Sara Cerdas foi considerada uma das eurodeputadas mais influentes do Parlamento Europeu na área da Saúde

Como acolheu a distinção como segunda eurodeputada mais influente na área da Saúde?
Com muita honra. Para mim é um orgulho, no primeiro ano de mandato, receber esta distinção. Acima de tudo, e tendo em conta que o colega posicionado à minha frente tem 26 anos de Parlamento Europeu, é um sinal de que eu e a minha equipa estamos no rumo certo. Sem dúvida que nos dá ainda mais e maior motivação para trabalhar e continuarmos a melhorar a saúde e a vida das pessoas na União Europeia.

O Grupo de Trabalho da Saúde integra a maior comissão do Parlamento Europeu: Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentar, conhecida por ENVI. O que se pretende com a incorporação da Saúde no Ambiente?
A própria dimensão da ENVI, com 81 membros, mostra bem o foco e o cuidado que se pretende colocar nestas questões, profundamente relacionadas. O Ambiente está intrinsecamente ligado à Saúde Pública, é uma das grandes determinantes da doença e do bem-estar das populações, por isso tem de ser protegido. Antes, olhávamos a natureza como um dado adquirido, não era algo em que se pensasse muito. Hoje, a protecção ambiental está na ordem do dia. Foi declarada uma emergência climática e, como diz a Greta Thunberg, não existe um planeta B. Há imensos estudos que nos mostram, sem espaço para equívocos, não apenas os impactos directos das alterações climáticas sobre a saúde, mas também os indirectos. Veja que, embora sem estatuto próprio ainda, já existem refugiados climáticos. 

A pandemia de COVID-19 veio evidenciar ainda mais a necessidade de olhar o Ambiente e a natureza com outros olhos…
Trouxe uma nova consciência sobre o conceito de saúde planetária, sobre o círculo fechado que representa o impacto da actividade humana no ambiente e como isso se reflecte novamente nas populações. 


«A pandemia comprovou que sem Saúde não há sector Económico nem Social»

E multiplicou a importância e o pacote financeiro destinado à Saúde. 
A Saúde está e continuará a estar no centro da discussão da política europeia. No novo quadro financeiro plurianual 2021/27, passámos de um envelope de pouco menos de 500 milhões de euros para 9,4 mil milhões de euros. É uma diferença… substancial! A pandemia do SARS-CoV-2 pôs em absoluta evidência junto dos que não sabiam, ou estavam pouco atentos, a interconexão da Saúde com todos os outros sectores. Ficou comprovado que, sem Saúde, não há sector social, nem sector económico. 


«Temos batalhado muito, no Parlamento Europeu, para que a visão sobre a Saúde vá muito além da prestação de cuidados», conta Sara Cerdas

A União Europeia nunca tinha enfrentado uma crise assim. 
As políticas europeias e legislativas tiveram de sofrer uma readaptação completa num curto espaço de tempo, de modo a que a União Europeia pudesse dar uma resposta coordenada, não apenas no combate à COVID-19, mas também na disponibilização rápida dos mecanismos financeiros para a flexibilização do financiamento dos Estados-Membros. Conhecemos o lay-off português: é só um exemplo. Temos batalhado muito no Parlamento Europeu para que a visão sobre a Saúde vá muito além do sector da prestação de cuidados, tantas vezes olhado como um fardo consumidor de recursos. A Saúde tem de ser vista com uma abrangência muito maior e ser encarada como um investimento.

Foi nomeada pelo seu grupo político no Parlamento Europeu relatora do novo programa de Saúde da Comissão Europeia, o EU4Health, o tal para o qual foram propostos 9,4 mil milhões de euros. Acha que é agora que a Saúde passa a ser investimento, em vez de despesa? 
No grupo dos socialistas e democratas estamos a trabalhar para que a Saúde conste verdadeiramente em todas as políticas. 

E como se pode tornar essa visão realidade? 
Avaliando o real impacto de todas as políticas sobre a saúde das populações, e não apenas sobre os cuidados de saúde. E trabalhando em intervenções a longo prazo. O conceito não é novo, foi trazido à discussão pública em 2007, com a Presidência finlandesa do Conselho Europeu. Sei que estou a falar de um ponto de vista macro, mas se formos explorar toda a legislação europeia percebemos concretamente onde, e de que forma, podemos actuar. E garanto-lhe que existe uma grande margem de manobra.

Ainda vamos agradecer à crise pandémica essa transformação? 
​Seria excelente se assim fosse, mas se vir o debate de há dois dias sobre o EU4Health verificará que ainda há metade dos meus colegas eurodeputados que falam da Saúde referindo-se à doença, ou seja, à prestação de cuidados. Claro que, olhado por outro prisma, significa que 50 por cento já perceberam a envolvência real da saúde com todas as áreas da sociedade. A revisão sistemática dos estudos com melhor evidência científica em Saúde Pública revela que, por cada euro investido, temos um retorno a longo prazo, em termos sociais e de saúde, de 14 euros. Imaginemos que aplicamos os 9,4 mil milhões em intervenções de Saúde Pública, e obtemos um retorno valorizado em 14 vezes mais: isto só pode ser um excelente investimento! Sociedades saudáveis, com bons recursos, boa acessibilidade a cuidados de saúde, mas também com boas condições de habitabilidade, boas condições sociais e de emprego, permitem-nos mais ganhos em saúde e menos carga de doença. E se quisermos falar em patologias, podemos trabalhar para uma melhor prevenção primordial, em termos legislativos, e primária, no sentido de capacitar os cidadãos para a tomada de decisões mais acertadas e estilos de vida mais saudável. Isto levar-nos-á, mais uma vez, a pessoas mais produtivas, não apenas nos empregos, mas nas relações sociais, familiares, pessoais. 

Como é que encaixa o papel das farmácias nessa visão? 
As farmácias são o primeiro, e muitas vezes a última interface entre as pessoas e os sistemas de saúde. Isso coloca-as num ponto central, não apenas na organização dos sistemas de saúde, mas também da sociedade. Pretendemos, por isso, desenvolver uma boa articulação com o sector neste novo programa para a Saúde.

 



Que missões o EU4Health deverá pedir às farmácias? 
Prevenção primária, uma das nossas prioridades. É uma área onde existe um potencial enorme. A transição digital em saúde é outra vertente. Precisamos de melhores dados, mais fiáveis, com boa segurança e confidencialidade, e as farmácias podem ser boas fontes. De resto, e de um modo mais lato, estamos a trabalhar numa proposta – de que também fui relatora – sobre a escassez de medicamentos na União Europeia. Como é que os Estados-Membros podem comunicar entre si para perceber as reais necessidades e salvaguardar a acessibilidade? Também percebemos nesta pandemia que, por exemplo, 80 por cento do paracetamol consumido na União Europeia vem de países terceiros, como a Índia, dos quais nos tornámos muito dependentes. Queremos contrariar isso, chamando a indústria à Europa. 

A COVID-19 também veio pôr a nu as fragilidades do projecto europeu. 
Sim, é verdade [pausa]. Sou uma firme defensora de que devemos aprender com tudo o que nos acontece, bom ou mau, e existem muitas lições a retirar deste período. Tem sido, de facto, um teste em tempo real à nossa capacidade enquanto seres humanos e enquanto seres que vivem em sociedade. A Europa passou por uma situação atípica, muito aguda, nos meses de Fevereiro e Março. Como é que o projecto europeu respondeu a isto? No início, com muito egoísmo por parte de cada Estado-Membro, é certo, mas julgo que fruto de muito medo, muita incerteza. Contudo, tenho de saudar o papel da Comissão Europeia, assim como das restantes instituições. Mal verificaram que estava cada membro para seu lado, puxaram os travões, disseram «Calma aí. Vamos coordenar-nos. Somos uma união de 27, vamos perceber onde é que estão as dificuldades e as lacunas, e tentar resolvê-las». E veja-se o que fizemos: lançámos o concurso público comum para aquisição de material médico que estava em falta em muitos Estados-Membros; estabelecemos corredores verdes para os transportes, não apenas de medicamentos e material médico, mas para produtos básicos e essenciais; coordenámo-nos para fechar fronteiras; iniciámos o mecanismo europeu de protecção civil. Juntos!

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