REVISTA FARMÁCIA PORTUGUESA: Também envelheceu dez anos quando foi Ministro?
ADALBERTO CAMPOS FERNANDES: Felizmente não. Acho, aliás, que as funções públicas de governação, exigentes como são, até nos fazem reavivar algum tipo de características. Não sinto que tenha envelhecido, sinto-me em boa condição física e psicológica.
Sentiu-se condicionado pela situação económica e pela dependência em relação ao Ministério das Finanças?
Não. Em matéria de rigor orçamental e de exigência das contas públicas, eu disse uma vez no Parlamento, em resposta a um deputado da oposição, uma das frases que ficará para a antologia das frases ditas no meio político...
«Se me pergunta se eu gostava de ter tido mais recursos, mais meios, com certeza que sim»
«Somos todos Centeno» …
O que eu quis dizer com isso é que temos que compreender o momento do país, quais são as prioridades, quais são as dificuldades. E temos que fazer dentro do Governo um exercício de grande cumplicidade estratégica e de grande solidariedade. Se me pergunta se eu gostava de ter tido mais recursos, mais meios, com certeza que sim. Teria executado mais facilmente o Programa do Governo e teria, de facto, andado mais depressa na resolução dos problemas do SNS. Mas isso, se quiser, em termos políticos, são os custos de contexto de um país que saiu de uma situação muito difícil, que é preciso que nenhum de nós esqueça que foi vivida, que foi real, que foi concreta.
«Temos de compreender o momento do país, quais são as prioridades, quais são as dificuldades»
Somos todos Centeno. Mas não é dar-lhe trabalho a mais levar ao juízo das Finanças a contratação de um médico, de um enfermeiro, de coisas urgentes para um hospital ou centro de saúde?
Bom, sabe que também nesta matéria muitas vezes são mais as vozes do que as nozes. Eu acho que é muito inadequado que um titular de uma pasta justifique a sua dificuldade em resolver problemas com problemas de relação entre ministérios ou secretarias de Estado. Eu não fiz isso, nunca o faria e não acho que isso seja adequado. Existem tramitações internas, em qualquer governo, e isso é importante que fique claro. Em qualquer governo e em qualquer contexto, a soberania das Finanças sobre o conjunto das pastas sectoriais existe. E ainda bem que existe, porque só assim as repúblicas e os governos e os países podem ter equilíbrio, solidez e sustentabilidade. E mal dos países, aliás na nossa história recente, mal dos momentos em que essa soberania do Ministério das Finanças não existe, porque naturalmente o impulso das pastas sectoriais é fazer o mais possível e o mais depressa possível. Têm de ser as Finanças o elemento estabilizador.
Onde julga que transformou mais a vida de mais pessoas? Quando foi ministro ou quando dirigiu hospitais, designadamente o de Santa Maria?
O juízo do próprio é sempre distorcido. A melhor avaliação deve ser feita por terceiros. E sempre algum tempo depois.
Para avaliar os efeitos?
Repare, nós hoje estamos a viver as consequências de medidas tomadas há muitos anos, que foram julgadas extraordinárias e hoje representam problemas que herdámos. Dou-lhe os exemplos do numerus clausus, a falta de planeamento dos recursos humanos, a empresarialização dos hospitais, feita com pouco critério, algumas medidas sobre o sector das farmácias que foram intempestivas e de excessiva magnitude.
Tratando-se desta revista, temos de lhe pedir que concretize essas medidas sobre as farmácias que lhe pareceram exageradas.
Num primeiro tempo, foi uma certa agressão ao sector do ponto de vista político. Depois, foram também medidas restritivas, ao nível do preço e das margens, que atingiram o sector sem critério. Não salvaguardaram, por exemplo, o serviço público das farmácias do Interior, que servem as populações mais isoladas. Aquando da intervenção externa, talvez uma discriminação positiva dessas farmácias tivesse acautelado danos que ainda hoje se sentem.
«Voltando ao meu tempo, acho que daqui por alguns anos vamos analisar positivamente algumas coisas, como as medidas de promoção da saúde e do exercício físico»
E no seu mandato?
Voltando ao meu tempo, acho que daqui por alguns anos vamos analisar muito positivamente algumas coisas, como por exemplo as medidas de promoção da saúde. O programa do exercício físico da Organização Mundial da Saúde foi lançado em Lisboa. A taxação sobre o sal, o açúcar e as bebidas açucaradas. A introdução das consultas de exercício físico nos cuidados de saúde primários. O programa, que eu considero estratégico, da hospitalização domiciliária, que está a seguir o seu caminho. E também a livre escolha dos cidadãos das unidades de saúde dentro do SNS.
E na área do medicamento?
A disponibilização progressiva de medicamentos sólidos hospitalares na proximidade, através do canal farmácia comunitária. Fizemos o programa inicial de teste, na área do VIH-sida. Essa medida introduz maior protecção das pessoas, pela não necessidade de se deslocarem centenas de quilómetros para levantarem medicamentos quando o podem fazer junto de casa.
Consegue compreender que três anos depois só os doentes do Hospital Curry Cabral, de Lisboa, tenham esse direito?
Não. Não consigo compreender. Embora, em abono da verdade e da justiça, eu reconheça que o sistema tem inércias. Tem muitas vezes razões que a razão desconhece e não decorrem da vontade política. Às vezes, o decisor político tem a vontade de fazer as coisas rápido, mas há questões administrativas, logísticas, operacionais.
«Estou certo de que a actual equipa governativa vai resolver o problema», diz o ex-ministro da Saúde, a propósito dos doentes obrigados a ir a um hospital só para levantar medicamentos
E lá ficam os doentes a fazer quilómetros mais uns anos...
Estou certo de que a actual equipa governativa vai resolver o problema. Creio que está sob a tutela do secretário de Estado António Sales, que é médico, e terá naturalmente uma particular sensibilidade para a importância da humanização do sistema, que também passa por gestos como este, de não violentar as pessoas para acederem a medicamentos ou quaisquer outros produtos necessários à sua saúde.
O que o levou a assinar o acordo com as farmácias?
As farmácias são um pilar do sistema de saúde. Prestam uma dimensão importante de serviço público. Já o dizia antes de ir para o Governo. Eu não tenho uma visão maniqueísta das entidades que estão no sector da Saúde em função do seu direito ser privado, social ou público. Daí que não compreenda estas polémicas de natureza muito política em torno das relações com o sector privado ou o sector social...
Não entende a polémica das PPP…
Fundamental é garantir que o serviço público é acautelado e que as pessoas têm acesso aos serviços nas melhores condições possíveis. Em tom de ironia, cheguei a dizer no Parlamento que a maior PPP que existe em Portugal há décadas é a PPP com as farmácias. Em média, 70 por cento do orçamento das farmácias depende de fundos públicos. Nalgumas, mais. Ora, estamos a falar de uma parceria público-privada, em que o Estado utiliza o canal de distribuição “farmácias” para dispensar medicamentos às pessoas, fazer acompanhamento dessas pessoas em proximidade. Fazer aconselhamento e reconciliação terapêutica a pessoas idosas que vivem com polimedicação. Nalguns locais do país, infelizmente, a farmácia é o único sítio perto do bairro, perto das famílias, para uma primeira interacção com a Saúde.
Como explica a dificuldade de os governos levarem até ao fim acordos e protocolos?
Não sou tão pessimista. Acho que, nas diferentes áreas sectoriais, os acordos que vão sendo estabelecidos vão sendo cumpridos. Muitas vezes, o que pode comprometer a efectividade da sua execução? É a momentânea escassez de meios financeiros. É o Governo, quando assina o acordo, fazer uma avaliação de que as possibilidades e os recursos podiam ser mobilizáveis mais depressa e não são. Mas, no essencial, existe aquilo que eu chamo a boa fé, a good will entre as partes. O sector da Saúde tem sido até um bom exemplo. Veja o caso do Programa Troca de Seringas, ou dos testes rápidos de VIH-sida nas farmácias. Às vezes pode haver hesitações ou atrasos porque os recursos não são facilmente mobilizáveis, mas de uma forma geral tenho uma posição até bastante optimista em relação a isso.
Estava prevista a implementação nas farmácias de serviços de saúde pública. A troca de seringas correu muito bem, mas o Acordo previa o apoio aos doentes crónicos, era explícito em relação à diabetes. Não era uma boa ideia?
Não vejo nenhum impedimento, desde que haja consenso entre os profissionais. Isso foi suscitado, à senhora bastonária da Ordem dos Farmacêuticos que, em concertação com a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Nutricionistas e dos Enfermeiros, estabelecesse um consenso sobre as tipologias de serviço e a natureza dos profissionais que deviam prestar esse serviço. Não é correcto fazer isso num quadro de confrontação entre os profissionais de saúde. Eu entendo que o farmacêutico comunitário deve ter uma excelente relação com o médico de família, com o enfermeiro de família, deve ser o terceiro elemento de um tripé que é fundamental na regulação e gestão do acesso. O que eu disse sempre aos bastonários foi que nós acompanharíamos de um ponto de vista legislativo aquilo que fosse um consenso técnico, profissional, desejado por todos, tendo como preocupação única o interesse das pessoas. E a portaria publicada foi tão longe quanto possível. Mas creio que continua a haver espaço, e os médicos desejam isso. Os médicos de família usam muitas vezes a farmácia e o diálogo com o farmacêutico para acompanhar, obter informação, para apoiar, para recomendar.
O bastonário dos médicos até defende a criação de ferramentas de comunicação entre os médicos e as farmácias.
Claro. E ele sempre teve essa posição. Creio que o processo legislativo estará no fim. É preciso que exista, de baixo para cima, um consenso profissional técnico, científico, clínico, seguro de que isso resulte num benefício para o cidadão em concreto.
Basta pensarmos nos idosos que vivem sozinhos…
O isolamento dos idosos é hoje um problema seríssimo, com risco inclusivamente para a qualidade de vida e para o tratamento das pessoas. Quantos idosos vivem sozinhos, polimedicados, com problemas de confusão terapêutica? Por si só, o médico não consegue ter a certeza de que aquele doente está a fazer a terapêutica em condições de segurança. Porque os contactos do médico são esporádicos, ao longo do tempo. Que melhor aliado pode ele ter? Naturalmente, se houver apoio domiciliário, visitação com a enfermagem, os enfermeiros fazem isso com certeza muito bem. Mas pode não haver. E o diálogo daquele idoso ser com a farmácia comunitária. E o farmacêutico pode ser o primeiro a perceber que o doente está descompensado, porque provavelmente está a fazer uma terapêutica errada. O sistema de Saúde precisa de muito menos confrontação e muito mais cooperação. Como dizia Lord Nigel Crisp, todos temos um papel a desempenhar nesse lugar. Em nome daqueles que servimos. Porque nós servimos os cidadãos todos, os políticos, os farmacêuticos, os médicos. E a confrontação entre as profissões é inútil, não traz valor nenhum. O diálogo permanente e a concertação estratégica entre os profissionais é fundamental.
No ano passado, no concelho de Loures, a participação das farmácias aumentou em 33 por cento a cobertura vacinal dos grupos de risco contra a gripe. Como se explica aos farmacêuticos e aos cidadãos de risco do resto do país que, este ano, só os de Loures voltam a ter o mesmo direito?
Não quero tecer comentários sobre uma matéria que estará a ser analisada pela actual equipa governativa. Eu acho que tudo deve ser feito para maximizar as oportunidades de vacinação. Quanto maior abertura tivermos e mais momentos possíveis de as pessoas acederem à vacinação, melhor. Não lhe escondo que considero as farmácias um instrumento de alargamento dessa oportunidade e de maximização da cobertura vacinal. E acredito que, também com tempo, a ponderação sobre esse assunto será feita. E seguramente avançaremos.
Como comenta o facto de hoje não existir nenhum acordo-quadro entre o Estado e as farmácias, quando 120 mil portugueses assinaram a petição “Salvar as Farmácias, Cumprir o SNS”?
Eu acredito que há motivação e vontade política da equipa governativa para retomar esse caminho. Tenho a certeza. Ele é tão evidentemente útil, que eu tenho a certeza de que é uma questão de tempo. Houve eleições, há uma mudança de Governo, há sempre seis meses que se perdem quando há campanhas eleitorais. Estou convencido que a medida é tão interessante e tão positiva que seguramente será retomada.
No acordo com as farmácias, é sempre um problema de dinheiro, ou há outro tipo de resistências, culturais, políticas, ideológicas?
O dinheiro tem as costas largas. Se analisar, nos últimos dez anos, quantos seminários, quantos workshops, quantos colóquios foram feitos sobre o tema do financiamento e sustentabilidade do SNS? Encontrará centenas! Os sectores privado, social e público dependem em grande parte de recursos públicos. É natural que haja um grande enfoque nas questões do financiamento. Como referi há pouco, em média, 70 por cento do orçamento das farmácias depende de dinheiro público. Mas quando saímos daí e vamos à organização, à gestão, à racionalização, encontramos um certo embaraço. Há uma tentação de resistência à mudança. Toda a gente deseja a mudança e fala da mudança, mas quando se trata da própria pessoa mudar, os problemas aparecem. E qual é a resposta mais fácil? «Ah, eu não faço porque não tenho recursos financeiros». O sistema de Saúde é rígido, tem uma inércia pesada.
É aquela coisa territorial: «Se os doentes neste momento são tratados aqui, porque é que hão de ser tratados lá fora»?
Sim, sim.
Sentiu isso como ministro?
E como cidadão. E como médico. E como gestor. Veja a minha experiência de Santa Maria. A dificuldade que muitas vezes era levar à prática aquilo que é um ex libris, um chavão: “O cidadão é o centro do sistema”. Na realidade, as coisas não são assim tão simples. E uma pessoa de idade, com oitenta e muitos anos, anda com um saco de plástico a percorrer os pisos, atrás dos serviços! Há um certo centralismo orgânico. Uma centralização do sistema nos serviços, nos profissionais e até na gestão. Estamos melhor, a pouco e pouco esse aspecto vai melhorando.
Mas o doente ainda não está no centro do sistema, certo?
Não, não está. E repare: o que é que os privados fazem? Procuram ser diferentes do sector público através do jogo das amenidades. Fazem o exercício de facilitar a vida às pessoas, de organizar os serviços de uma forma moderna, investem muito nas condições ambientais. E eu diria que isso, em si, não é mau. É uma abordagem com interesse económico e lucrativo, claro, mas é uma abordagem de investir também na componente humana, de relação com as pessoas.
O senhor fez isso no Hospital de Santa Maria. Transformou aquele hospital, que era horrível…
Vou contar-lhe um episódio muito engraçado. Quando fui para Santa Maria, houve algumas notícias sobre o facto de eu ser um gestor privado, de vir do sector privado. Quando cheguei, a recepção central tinha balcões com um metro e setenta de altura, justamente para evitar que o cidadão ousasse interagir com o administrativo. Partimos aquilo. Tivemos apoio mecenático de uma entidade bancária, que nos ajudou a fazer a obra. Um dia, um responsável pelas Relações Públicas assistiu a uma conversa de um casal de pessoas com muita idade. «Estás a ver, isto agora está tão bonito, parece um aeroporto», dizia a mulher. E respondeu o marido: «Tu não sabes que agora está cá um gestor privado? É por isso que isto está assim».
Já disse que não tem qualquer preconceito público – privado. Do ponto de vista do doente, qual é a melhor opção?
A melhor opção é a resposta.
«Há quatro milhões de pessoas com coberuras alternativas ao SNS. E há seis milhões que não»
O que quer dizer com isso?
Hoje, temos cerca de quatro milhões de pessoas com duas ou três coberturas. Para além da cobertura pública que temos todos, o SNS, têm subsistemas, públicos ou privados, e seguros de saúde. Isto significa que há quatro milhões de pessoas, quarenta por cento da população portuguesa, que se tiverem uma barreira no sistema público podem ir a um sistema privado ou social. E há seis milhões que não. Temos, portanto, um contexto de desigualdades…
Pois temos. E como se sai disso?
Há duas abordagens possíveis. Uma, que é fundamentalista e dogmática, que diz: "O que nós temos de fazer é destruir o sector privado, impedir que as pessoas lá acedam e reforçar a todo o custo o SNS". Estamos de acordo quanto ao reforço. Mas há aqui o factor do tempo. A transição para esse reforço demora alguns anos e, no entretanto, há pessoas que continuam a não ter acesso. Então, enquanto nós não temos a resposta do SNS qualificada e ágil, temos de permitir que essas pessoas tenham resposta.
Qual resposta?
A que existe com a cirurgia deve existir também noutras áreas de acesso ao diagnóstico e à terapêutica. Há um tempo definido, o hospital público ou o sistema público tem de dar resposta. Se não dão resposta, e aquele cidadão tem de ser servido...
Está a defender o mesmo modelo para as consultas, para os exames?
Um modelo de acesso temporário, até que o SNS vá reforçando e qualificando as suas respostas. É um sistema que daqui a quatro ou cinco anos tenderá a ter mais resposta pública e menos privada, mas até lá estas pessoas não podem ficar sem resposta.
«Ser de esquerda é preocupar-me primeiro com as pessoas e só depois com a questão dos modelos»
Fora do sistema público?
Se um hospital tem a obrigação de fazer um exame de diagnóstico, uma ressonância, e não dá resposta no tempo que o médico de família pediu, essa pessoa tem o direito de ir a outro hospital. Público, em primeiro lugar. Mas se nenhum prestador público der uma resposta, a pessoa tem de ter uma resposta no sector convencionado. Isto é defender o interesse público. E isso tem de ser feito. Se quiser uma pequena nota de natureza política, isto é que é a minha visão de ser de esquerda, ou social-democrata, ou socialista. É preocupar-me primeiro com as pessoas e só depois com a questão dos modelos e da orgânica.
«Se um hospital tem a obrigação de fazer um exame de diagnóstico, uma ressonância, e não dá resposta no tempo que o médico de família pediu, essa pessoa tem o direito a ir a outro hospital»
O professor Vaz Carneiro considera urgente avaliarmos melhor a inovação terapêutica e as novas tecnologias, porque não vamos ter como pagar tudo. Partilha deste alarme?
Sim. A inovação inquestionavelmente útil, que traz valor à vida das pessoas, essa tem de ser incorporada no sistema. E onde é que vamos buscar esse dinheiro? O melhor fundo que nós temos para ir buscar dinheiro é a eficiência. É o corte no desperdício, por exemplo, na comparticipação de medicamentos que não são úteis ou de reduzido valor terapêutico. É a própria revisão terapêutica da utilização dos fármacos. Há muita sobremedicação inútil, portanto a revisão terapêutica acrescentaria muito valor aos recursos que temos disponíveis.
E isso não devia ser um serviço farmacêutico?
Também. Mas também pode ser feito num centro de saúde, pelo enfermeiro de família. É o que lhe digo, tem de haver espírito de equipa. É o profissional que no momento, no contacto, estiver mais habilitado. Se o idoso que toma muitos medicamentos o que faz é frequentar a farmácia uma vez por semana, porque gosta de conversar, tem uma oportunidade de dizer: «Olhe, o que faço com este medicamento, estou confundido» e de sair de lá esclarecido. Eu sei que muitas vezes as farmácias são um ponto de interacção com as pessoas porque elas lá vão apenas para conversar. Mas também pode ser na consulta de enfermagem. Não tem necessariamente de ser na consulta médica. Nós temos de mobilizar os recursos disponíveis em função dos momentos de contacto e de oportunidade.
A rede de farmácias recebe mais de meio milhão de pessoas por dia. Os contactos são muito mais frequentes...
Pois são, por isso provavelmente a oportunidade surgirá muito mais vezes.
«O farmacêutico pode sinalizar ao médico problemas muito para lá da sobremedicação»
Mas isso só é rentabilizado se depois houver cooperação com os outros profissionais.
É fundamental haver essa rede e que seja estruturada com canais automáticos, tal como dizia o bastonário da Ordem dos Médicos. Porque o farmacêutico pode sinalizar algo para além da questão da sobremedicação, que seja útil partilhar com o enfermeiro de família ou o médico de família.
Muitas vezes é o farmacêutico que ouve as primeiras queixas, que detecta o primeiro sintoma, não é?
Exactamente! E tem de poder dizer assim: «Olhe, senhor enfermeiro, esteve aqui um doente do centro de saúde e eu fiquei preocupado, veja lá se não é melhor chamá-lo, ou irem lá a casa». E vice-versa, o médico e o enfermeiro contactarem a farmácia. Precisamos deste espírito. De sentir que há uma aliança entre as profissões que intervêm e acompanham as pessoas. E depois, enfim, que intervenha aquele que estiver mais bem colocado, até por força, como dizia e bem, da frequência de contacto. Porque ao médico, a pessoa pode ir seis vezes por ano, à consulta de enfermagem pode ir dez, 12 vezes. Mas à farmácia, se calhar, vai de 15 em 15 dias, até para conversar. Porque as pessoas gostam e normalmente encontram na farmácia um ponto de apoio.
Há centenas de farmácias que na sua região já são o único serviço de saúde e, muitas vezes, o único profissional de saúde disponível.
Exactamente!
Acha que faz sentido haver uma política específica para salvar essas farmácias, mesmo que economicamente elas sejam a cada dia que passa menos viáveis, ou o SNS pode retirar-se, como se retiraram muitos outros serviços?
Não. Não pode. Aliás, o actual Programa do Governo e, se reparar, a composição do Governo, vão ao contrário disso. Aliás, temos um ministério que se chama da Coesão Territorial. Não podia haver sinal político mais forte. Eu estou particularmente à vontade, porque estive envolvido, enquanto membro do Governo, na elaboração do decreto-lei da descentralização da Saúde, nalgumas áreas, para os municípios. Os municípios são nossos aliados na sustentação de ideias inovadoras, na compreensão do papel útil das farmácias nas comunidades. Creio que a vinda deles para dentro deste processo vai ser um poderoso aliado para o reconhecimento importante dos serviços públicos e privados de proximidade. Porque, lá está: nós temos serviços públicos de proximidade e temos serviços privados de proximidade. E quando um serviço privado usa recursos públicos e presta um serviço público, ele integra uma missão pública. E isto é tão simples de perceber que sobre as farmácias, felizmente, ninguém veio pôr em causa a existência nesta parceria entre o Estado e o sector privado, porque seria absurdo que o fizessem.