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14 julho 2020
Texto de Maria Jorge Costa Texto de Maria Jorge Costa Fotografia de José Pedro Tomaz Fotografia de José Pedro Tomaz

«Não estamos a usar as farmácias devidamente»

​​​​​Presidente do Centro Hospitalar Universitário de São João defende remuneração dos serviços farmacêuticos e incentivos às farmácias do Interior.

​REVISTA FARMÁCIA PORTUGUESA: É mais difícil ser presidente do conselho de administração de um hospital do que governante? 
FERNANDO ARAÚJO​: No Ministério da Saúde estamos enclausurados naquele bunker, na Avenida João Crisóstomo, em Lisboa, muitas vezes fora da realidade. Aqui estamos próximo das pessoas. Vêm falar connosco, apontam problemas, colocam questões. Temos de responder porque é que a consulta ainda não foi marcada, a cirurgia não foi realizada. Temos de dar mais de nós próprios, estamos mais expostos. Mas também lhe digo, é muito mais realizador estar nesta frente. E quando as coisas acontecem ver a alegria e a satisfação dos profissionais e dos utentes.


«Aqui estamos mais próximos das pessoas. Temos de responder porque é que a consulta ainda não foi marcada, a cirurgia não foi realizada», relata o ex-secretário de Estado

O que o deixou mais orgulhoso no Ministério da Saúde? 
Acima de tudo conseguir juntar pessoas, profissionais, em volta de causas, de projectos. Um secretário de Estado ou um ministro, mesmo conhecendo muito bem a área, tem muito para aprender. Juntar equipas focadas em projectos e depois vê-los acontecer foi o mais importante e a lição que retive.


«Conseguimos a tributação das bebidas açucaradas, o que vai terum impacto positivo na diabetes do futuro»

​E houve alguma iniciativa que não tenha conseguido? 
A Saúde Pública, no sentido da promoção da saúde e prevenção da doença, sempre foi vista como um patinho feio. Não é muito apelativa porque não aparece na primeira página dos jornais. Apostas nesta área demoram cinco, dez anos, uma geração a ter resultados. Foi das áreas em que mais me empenhei e conseguimos fazer algumas mudanças. Tenho pena de não termos conseguido ir mais longe. Conseguimos introduzir a tributação das bebidas açucaradas, após muita discussão e hoje é reconhecida como uma excelente medida, reduziu o consumo de açúcar nos jovens, e vai ter impacto na diabetes no futuro. Tenho pena de não termos feito o mesmo relativamente ao sal. Era uma medida extremamente bem delineada, feita pela Ordem dos Nutricionistas, e não passou no Parlamento.

Era secretário de Estado da Saúde quando o Governo assinou o último acordo-quadro com as farmácias, em 2017. Que balanço faz? 
Um balanço muito positivo. O sector das farmácias é imprescindível para o país, mas não o estamos a utilizar devidamente. É a maior rede de prestação de cuidados de saúde, muito maior do que os centros de saúde e extensões. As farmácias estão em todos os locais e têm a característica única de os portugueses confiarem nos farmacêuticos. É uma área à qual tentámos dar um novo impulso. Ainda há muito para fazer na relação com as farmácias e os farmacêuticos, e das farmácias com a comunidade.


«O Estado é uma máquina pesada, por vezes complicado de ultrapassar para que as coisas aconteçam mais rapidamente»

A verdade é que havia uma série de iniciativas previstas no acordo que não avançaram. Porquê? 
​Há vários problemas. O Estado é uma máquina pesada, por vezes é complicado ultrapassar e pressionar para que as coisas aconteçam mais rapidamente. Há outros interesses instalados, como se viu, por exemplo, com os meios de diagnósticos rápidos. Com bons líderes e algum tempo é possível mudar e fazer acontecer, e nós conseguimos abrir algumas áreas. Um bom exemplo são os testes para o VIH/ sida, que eram um problema enorme. Havia alguma vontade de alguns sectores da Saúde em não fazer acontecer e o certo é que conseguimos. Colocámos os testes nas farmácias. Primeiro, realizados por farmacêuticos. Numa segunda fase, permitimos aos utentes comprar o teste e fazê-lo ao domicílio. Foi um projecto ganho, com sucesso, mas precisou de tempo, de ganhar a confiança dos vários sectores, foi necessário mudar legislação. As farmácias estiveram sempre do lado da solução, a tentar concretizar o projecto. Eu acho que é um bom exemplo de que se houver vontade, determinação e liderança, conseguimos.

O facto desse projecto, o Fast-Track Cities, ser um programa da ONUSIDA foi importante para avançar? 
Foi determinante. A grande vantagem do programa é unir os vários parceiros. Portugal tem, continua a ter, uma das maiores taxas de incidência de VIH/sida na Europa. Temos de usar todas as armas disponíveis para conseguir identificar precocemente os casos e trazê-los para tratamento. Isso só é possível se juntarmos as várias forças, as autarquias, as ONG, as farmácias, enfim, todos os que nos possam ajudar. Não foi fácil, mas o exemplo vai seguramente ajudar a acelerar a meta que todos queremos, que é Portugal livre da epidemia de VIH/sida. Tendo atingindo as metas da ONUSIDA – 90 por cento das pessoas com VIH diagnosticadas, 90 por cento delas em tratamento, 90 por cento das pessoas em tratamento com carga viral indetectável, – estamos no caminho de passar para as metas de 95/95/95. Depois virá, seguramente, o objectivo fundamental: erradicar a epidemia do VIH/sida em Portugal.

Esteve no lançamento do projecto-piloto que permitiu aos doentes com VIH/sida do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, escolher uma farmácia comunitária para levantar os seus medicamentos anti-retrovirais.
​​​O objectivo é a melhoria do acesso aos medicamentos, através das farmácias comunitárias próximas do local de residência dos doentes. Queríamos muito trazer a proximidade para melhorar a adesão, reduzir custos com deslocações, reduzir a pressão nos hospitais. Havia um conjunto de constrangimentos, havia vários sectores do lado da Saúde que não viam isso como vantagens, por razões várias. Tivemos de ultrapassar, obstáculo a obstáculo, questões legais, técnicas, científicas. O projecto em Lisboa foi um sucesso. Os doentes aderiram e ainda se mantêm a receber a terapêutica nas farmácias. Devo recordar que a escolha de uma farmácia comunitária por parte dos doentes é voluntária. Poderiam, a qualquer altura, voltar a receber a medicação no hospital, mas quiseram continuar a receber na farmácia. 


«Até ao fim do ano, queremos que a remuneração das farmácias seja um dos resultados do projecto-piloto Farma2Care»

Foram os elevados índices de satisfação dos utentes que o levaram a trazer esse projecto para o Hospital de São João? 
O facto de ter sido um sucesso foi a razão para trazer para o Norte, para o São João. Com o apoio da ANF, achámos que era possível melhorar. O nosso projecto, que se chama Farma2Care, vai replicar e melhorar algumas questões da experiência do Curry Cabral, nos sistemas de informação, na distribuição dos fármacos, na forma da adesão dos doentes. O projecto arrancou a 1 de Dezembro do ano passado, Dia Mundial da Luta Contra a Sida. Os primeiros doentes começaram a receber os seus medicamentos na comunidade muito antes de ter acontecido a actual pandemia. 

Explique melhor a população abrangida. 
São doentes do Hospital de São João (HSJ), mas distribuídos por toda a região Norte. Temos doentes de Viana do Castelo, de Vila Real, de Bragança, de Braga. O projecto neste momento está focado nos doentes seguidos no hospital, mas que podem residir noutros distritos. Mesmo alguém que more no Porto, prefere por vezes receber os medicamentos na farmácia da sua rua, em que pode ir ao final do dia buscá-los, durante o fim-de-semana, em vez de ter de se deslocar ao hospital, com mais dificuldade de acesso. Os grandes objectivos são a abrangência regional e a avaliação da satisfação dos doentes. Estando bem estruturado, o projecto pode facilitar a proximidade no acesso a medicamentos de uso exclusivamente hospitalar e que forçam os doentes, ou as famílias, todos os meses, ou de três em três meses, a vir ao hospital sem necessidade clínica. 

Vão ter supervisão, avaliação externa? 
Sim. Uma das dimensões importantes é a avaliação. Queremos escrutínio, avaliação por várias partes, para termos a certeza de que está a ser bem feito. Temos o apoio da Ordem dos Farmacêuticos, que nos dá um cunho técnico-científico. Contamos igualmente com avaliações do ISPUP (Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto), do CEMBE (Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina de Lisboa) e do CEFAR (Centro de Estudos e Avaliação em Saúde da ANF). Queremos aferir resultados, o que está a acontecer. Queremos que o Infarmed acompanhe o projecto. Tem de ser o mais transparente possível, para que não haja dúvidas sobre cada uma das etapas, em termos de segurança e qualidade.

Para este projecto, as farmácias prestam serviços muito para lá dispensa: adesão à terapêutica, monitorização da adesão à terapêutica, eventuais situações de segurança. São serviços suportados pelas farmácias. Está prevista alguma forma de remunerar este serviço farmacêutico? 
É uma questão muito pertinente. Até agora, as farmácias estiveram disponíveis para o fazer de forma gratuita, e vale a pena sublinhar isso, porque senão tínhamos muita dificuldade em implementar. Um dos outputs deste projecto é determinar o valor acrescentado desse serviço e a remuneração das farmácias. Se há um trabalho que deixa de ser feito pelos hospitais, se há um encargo que o SNS deixa de ter do lado dos hospitais, é justo que essa mais-valia seja partilhada com quem vai prestar o serviço, neste caso as farmácias. Queremos que a remuneração das farmácias seja um dos resultados finais deste projecto.

Há previsões de quando se conseguirá determinar o valor em saúde do Farma2Care e passar à discussão da remuneração? 
Esperamos que até ao final deste ano seja possível. Nessa altura, teremos um ano de distribuição de fármacos anti-retrovirais, teremos eventualmente seis meses de distribuição de medicamentos para a esclerose múltipla e alguns oncológicos. Teremos, na minha opinião, as bases para ter um cálculo sobre o valor em saúde que o projecto traz e como podemos remunerar todos os parceiros.

 


​Todos os dias as farmácias prestam serviços não remunerados. A indústria farmacêutica é remunerada de acordo com critérios objectivos consagrados na lei, em função do que acontece num conjunto de países europeus. A remuneração das farmácias não tem essa garantia e está muito dependente do preço dos medicamentos. Qual é a sua opinião sobre isto? 
Cada vez mais temos de fugir do critério do volume de medicamentos vendidos para o dos serviços. Em muitos casos, o volume até pode induzir uma maior venda. Se temos especialistas nas farmácias com excelente formação, como são os farmacêuticos, devemos aproveitar esse grupo de profissionais de saúde. A remuneração dos serviços, para mim, faz todo o sentido. Muito mais do que o volume de vendas, quando por vezes isso não traz valor acrescentado para os doentes. Temos de perceber como pode ser feito sem afectar a sustentabilidade das farmácias. Como trazer valor para a sociedade sem afectar a rentabilidade dos próprios estabelecimentos, naturalmente. Esta questão dos anti-retrovíricos, a distribuição dos medicamentos hospitalares, pode ser um bom caminho para perceber o valor e tentar remunerar as farmácias pelo serviço e não pelo volume das embalagens vendidas.

Há centenas de farmácias em risco de falência, sobretudo as mais pequenas, que servem populações mais isoladas. Como garantir que não fecham as portas? 
Mais uma vez, não pode ser por volume de fármacos vendidos, porque por aí não serão sequer sustentáveis, mas por serviços prestados. O modelo tem de ser adaptado a regiões do Interior, porque o risco que corremos é essas farmácias fecharem. O SNS, o Estado, não tem respostas adequadas para as pessoas nesses locais. Tem de haver alguma diferenciação do serviço farmacêutico prestado no Interior. 

Em muitas regiões, a população não tem outros profissionais de saúde de acesso fácil. Se também fecharem as portas, isso não é um problema para a Coesão Territorial, objectivo estratégico do Governo? 
Quando a Saúde deixa de estar presente, o resto da comunidade acaba por desfazer-se rapidamente e extinguir-se. As pessoas vão embora. A Saúde é um bem fundamental que dá segurança à população. E as farmácias nisso são muito importantes. Quando se fala em coesão territorial, em equidade, significa que uma pessoa em Bragança deve ter os mesmos direitos que um habitante do Porto ou de Lisboa. Isso implica acesso e disponibilidade a serviços de saúde. Temos de olhar para as farmácias como esses bastiões que garantem a presença de profissionais de saúde e, com isso, agregam as populações. Dão confiança e segurança às pessoas de que têm uma resposta por perto quando têm problemas de saúde. O SNS tem de as englobar, de pensar na forma de as manter sustentáveis, de as manter activas neste sistema para dar resposta aos utentes.

 


Isso implica algum tipo de incentivos. 
Seguramente. Quando se fala nas várias formas de incentivar a coesão, as farmácias têm de ser colocadas no topo da agenda dessa discussão.

Como interpreta o facto de a petição "Salvar as farmácias, cumprir o SNS" ter sido a maior da anterior legislatura, com mais de 120 mil assinaturas? 
É muito relevante perceber a confiança que os portugueses depositam nas farmácias. E o SNS, o sistema de saúde em geral em Portugal, tem de aproveitar esse capital, depositar nas farmácias outras respostas que elas podem dar, para servir as pessoas. São soluções mais económicas para o Estado. 

Voltamos ao conceito de valor económico em saúde. 
Sim. Temos de assegurar a rentabilidade suficiente para as farmácias se manterem no jogo. Mas a base da discussão não pode ser a percentagem sobre o preço de venda, mas outro conjunto de missões muito diferentes.

Falou noutros serviços que as farmácias podem prestar. Que tipo de serviços? 
Por exemplo, dez por cento da população é diabética, a maior percentagem em toda a Europa. Um em cada dez portugueses é diabético. Metade da população é obesa ou tem excesso de peso. Um em cada três portugueses tem tensão arterial elevada e corre riscos de doenças cardiovasculares. As farmácias podem ser excelentes pontos de promoção da saúde, do ponto de vista da prevenção da doença, assim saibamos utilizá-las, integrá-las nesse sistema e torná-las agentes activos nessa área. 

 


Estava no Governo quando foi lançado o projecto-piloto da integração das farmácias na vacinação contra a gripe na população com mais de 64 anos. Os números indicam um aumento significativo da cobertura vacinal de um grupo de risco. Porque é que dois anos depois só funciona em Loures? 
É uma boa pergunta. Esse exemplo tem de ser disseminado, precisa de uma liderança clara do ponto de vista político. A dispensa de prescrição médica nos grupos abrangidos, a integração dos dados dos utentes vacinados no registo electrónico nacional, tudo isso é possível. E é desejável, porque reduz a pressão sobre os cuidados primários e hospitalares. Se pudermos disseminar essa experiência, mais facilmente conseguimos a adesão das pessoas à vacinação e maior facilidade para os serviços de saúde, ao verem reduzida essa carga de trabalho. É uma das áreas em que acho que faz sentido aprofundar, aproveitar a mais-valia e replicar. Nos grupos considerados de risco, em que é recomendada a vacinação, é possível e desejável termos um circuito muito simples, flexível, sem burocracias. Para que as pessoas possam aceder à vacina a que têm direito e com isso proteger-se de infecções mais graves, que as levam ao serviço de urgência, com outras complicações, que ficam muito mais dispendiosas para o SNS.

Vacinou-se contra a gripe? 
Sim.

Há muitos anos, ou só desde que esteve no Governo? 
Sempre me vacinei. Há aqui no hospital um programa activo nesse sentido anterior à ida para o Governo. Sou adepto de nos prevenirmos e continuarei a vacinar-me.

É a melhor forma de prevenir a gripe? 
A vacinação é um bom exemplo da evidência científica. A ciência demonstra os benefícios da vacinação para o indivíduo e para a sociedade. Temos de combater as pseudociências de alguns movimentos inorgânicos que põem em causa fundamentos bem alicerçados. As vacinas aprovadas, e que estão no plano oficial, são um bem essencial para o país.


Fernando Araújo elogia «maior transparência» no Orçamento de Estado, mas lamenta «falta de medidas de prevenção da doença»

Que análise faz ao Orçamento de Estado (OE) para 2020, relativamente à Saúde? 
Antes de mais, é dada prioridade política à Saúde e isso é bom. O OE tem quatro dimensões novas: reforço financeiro; aumento da autonomia; recursos humanos e investimento. Relativamente à primeira, mais do que o reforço, os 940 milhões de euros inscritos, há uma antecipação do que se fazia durante o ano. Em vez de fazer extensões extraordinárias de capital ao longo do ano, colocá-lo logo à partida torna o Orçamento mais transparente, mais exigente, e isso é bom. Quanto à autonomia, nomeadamente dos hospitais EPE, também é boa, porque aumenta a respectiva eficiência. Na terceira área, dos recursos humanos, prevê a contratação de 8.400 profissionais em dois anos, 4.200 cada ano. Por fim, o investimento de mais 170 milhões de euros em Saúde. São áreas muito importantes para reforçar o SNS. A questão é ver como vamos aplicar essas medidas. Uma das áreas em que fiquei mais decepcionado foi a da Saúde Pública. Não houve nenhuma medida, além das que já existiam, para a prevenção da doença. Portugal é o país europeu que menos aplica dinheiro na prevenção. Menos de um por cento do OE está ligado à prevenção da doença. 

E há evidência científica de que a prevenção traz poupança mais à frente. 
​É verdade! Essa é a grande questão. O sistema, em si, não é sustentável. Os fármacos têm um valor cada vez mais elevado, sobretudo nas doenças crónicas com uma prevalência muito impactante na sociedade portuguesa. A única forma de conseguir um orçamento sustentável é reduzir a carga da doença. Promover a saúde é prevenir a doença. Enquanto não o fizermos, andamos sempre atrás do prejuízo, a ver como conseguir mais verbas para pagar mais medicamentos.
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